No mês de fevereiro, recebemos para mais uma edição do Com a Palavra… a curadora, crítica de arte e jornalista Daniela Name. Daniela compartilha conosco o seu olhar a partir da exposição “Linhas da vida”, da artista japonesa Chiharu Shiota, em exibição no CCBB Rio de Janeiro.

Chiharu nasceu em Osaka, em 1972, e vive há muitos anos em Berlim. Daniela começa a visita pontuando a importância de ampliarmos nosso mapa de percepção da arte ao conhecermos o trabalho de uma artista não branca e não europeia, visto que a regra nesse campo é justamente fazer o oposto. 

Linhas da vida

Logo de início, Daniela chama nossa atenção para o nome da exposição, que diz muito sobre a produção da artista e a materialidade usada em suas criações. A linha é um elemento constante no trabalho de Chiharu em sua forma visível, como acontece na costura das roupas e nas próprias linhas de um desenho, mas também em sua forma invisível, quando representa nossas conexões de afeto, nossas memórias e, por fim, também o que nos liga ao universo.

A linha também pode ser lida como o desenho de um ciclo, de uma linha do tempo que se encerra e, eventualmente, logo se emenda de volta ao início. Quando olhamos para a fotoperformance “Tente e vá para casa”, vemos que a artista se arrasta penosamente em um solo de terra e lama e com isso nos confunde quanto às suas possíveis intenções de fuga ou de pertencimento a esse espaço. Chiharu também deixa dúvidas sobre a cronologia das fotos, que podem nos remeter à continuidade de um ciclo formado por vida e morte.

Mais adiante, a convidada nos fala sobre a simbologia desse encontro entre o corpo feminino e a terra. Em uma breve consulta ao Dicionário de Símbolos (dicionariodesimbolos.com.br), vemos, por exemplo, que “a terra é o oposto do céu. Enquanto a terra tem a função de sustentar ou amparar, o céu tem a função de cobrir. A terra, considerada um dos quatro elementos alquímicos, tem o significado de nascimento e criação. A terra representa a mulher, e sua função é maternal. Ela é a Grande Mãe, porque dá origem”.

Conseguimos perceber aqui como Chiharu se utiliza da poética do corpo, da terra e de outros símbolos ao longo da exposição, tendo como objetivo tecer relações entre nascimento, vida e morte – experiências comuns a todos nós.

Pintura expandida

A pintura expandida é um marcador bastante visível na obra de Chiharu Shiota, que evidencia sua necessidade de expressão artística para além da pintura tradicional, que corresponde à sua primeira formação. Sobretudo a partir da década de 1960, o conceito de “campo expandido” vem sendo utilizado de forma a alargar os limites de práticas e linguagens artísticas.

Essa transformação na trajetória da artista pode ser nitidamente notada na obra “Tornando-se pintura”, de 1996, em que a artista transforma o próprio corpo em uma superfície pictórica e se banha de tinta vermelha, bem como no conjunto de telas que formam a obra “Pele”, de 2018, na qual a tinta não é mais utilizada. Ao longo da visita, Daniela Name traz alguns comentários acerca desse processo, ao longo do qual a superfície da tela passa a ser costurada, e o fio vermelho que marca outros trabalhos passa a também desenhar sobre a tela, explorando sua tridimensionalidade.

No trabalho intitulado “Dois barcos, uma direção”, Daniela aponta como o movimento do corpo do espectador pode alterar a percepção da obra. A esse respeito, a sombra formada pelos barcos pode revelar ou esconder o encontro entre os objetos, dependendo do ponto de vista de quem os observa, nos remetendo, assim, a diferentes momentos e sensações atravessados ao longo de cada trajetória de vida. A curadora destaca ainda que os barcos têm um sentido muito significativo na história japonesa, uma vez que se trata de um país insular, e esse objeto é um emblema das migrações.

Daniela também chama atenção ao simbolismo dos objetos que protagonizam a mesma obra, considerando a história da arte. Barcos geralmente remetem ao destino, à transição, à possibilidade de se alcançar um outro mundo, de se chegar do outro lado – que pode, inclusive, ser a morte. Além desse simbolismo e de interpretações muito semelhantes, trazidas com frequência nas narrativas dos visitantes da exposição, há também uma associação possível ao barqueiro de Hades, Carontes, que na mitologia Grega carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios que dividiam o mundo dos vivos em relação ao mundo dos mortos.

Presença e ausência

O vestido é outro elemento presente em mais de um trabalho de Chiharu. Diante desse elemento, Daniela fala sobre como a artista consegue trabalhar a dualidade entre presença e ausência, e, para além de sua dimensão poética, essa mesma dualidade toca em uma questão formal da história da arte, que é a oposição entre cheio e vazio.

Essa questão se faz igualmente presente também nas esculturas de nome “Estado de ser”, nas quais os espaços vazios de formas que lembram origamis são preenchidos com linhas, porém mantendo esses mesmos vazios ainda visíveis através da trama.

No mesmo segmento da exposição, encontramos essa ideia também na obra “Linha interna”, composta por três vestidos que se conectam a cerca de 10 mil fios vermelhos, trazendo como inspiração a lenda japonesa Akai Ito. Segundo esse mito, todos nascemos com uma linha vermelha invisível que parte do nosso coração e sai da ponta do nosso dedo mindinho esquerdo, nos conectando às pessoas importantes que vão cruzar nossas vidas. Em diálogo com a obra de Chiharu Shiota, Daniela afirma que nossos encontros poderiam ser entendidos, na verdade, como reencontros.

No trabalho “Em silêncio”, composto por uma série de três fotografias que nos mostram um piano em chamas, Daniela Name faz uma leitura que se relaciona aos ciclos de vida e morte, chamando atenção ao silenciamento do instrumento após ser queimado. E completa: “esse silêncio vem pelo fogo, que na alquimia é associado à transmutação”.

Universo

O último núcleo expositivo da exposição “Linhas da Vida” revela uma conexão entre todos nós e entre nós e o universo. Aqui, também podemos pensar na ideia de universos particulares, considerando todas as singularidades de cada indivíduo que vão compor o universo maior ao qual pertencemos.

Esses universos particulares são o nosso íntimo, o que carregamos conosco e só compartilhamos com quem é de nossa confiança – assim como quando damos uma chave a alguém. Cada universo é uma porta, e cabe a cada um de nós decidir quem deixamos passar por ela. Daniela traz a chave como elemento de entrega e como metáfora das heranças e desejos que carregamos.

Nesse núcleo, junto às chaves, o elemento barco volta a se apresentar, e Daniela consegue enxergar ali uma referência muito próxima ao processo de migração e ao trânsito que se dá por motivos diversos e adversos. “O que deixamos para trás e o que queremos encontrar? Que portas queremos fechar e que novas portas esperamos abrir?”.

Memória

Daniela Name fala ainda sobre a instalação “Além da memória”, construída no espaço da rotunda do prédio do CCBB RJ. A curadora destaca sua forma ambígua e orgânica, que lembra um tornado ou um tufão, ambos capazes de levar para longe as nossas memórias. Ao mesmo tempo em que nos remete ao caos, a instalação também nos acolhe como se fosse um casulo, traçando essas memórias e as transformando, como acontece durante os processos de metamorfose das lagartas que abandonam seus antigos corpos antes de se tornarem borboletas.

Por ser montado para um espaço específico, esse mesmo trabalho também pode estimular uma analogia à efemeridade das relações, nos lembrando de que tudo está em movimento constante e tudo pode afetar e ser afetado pelas relações que estabelecemos ao longo da vida.

Encerro esse relato com muitas reflexões em aberto, trazidas tanto pela convidada Daniela Name quanto pelo trabalho de Chiharu Shiota. Nessa exposição, sua obra percorre caminhos de dentro para fora, partindo do universo de sentidos, sentimentos e memórias que guardamos debaixo da nossa pele e chegando às nossas conexões com o mundo externo e nos lembrando que é justamente isso o que nos faz ser – e sentir – parte de um todo.