A exposição “Egito Antigo – Do Cotidiano à Eternidade” está em cartaz no CCBB Brasília desde o dia 06 de fevereiro de 2021. Oriundas do Museu Egizio de Turim, na Itália, as peças expostas correspondem, em sua maioria, a objetos e artefatos de cunho religioso e cultural relacionados à civilização egípcia. 

Quando trazemos à tona a temática do Egito Antigo, costumamos levar nossos olhares a representações cujo caráter imagético se assemelha ao proposto por filmes, séries e livros que frequentemente têm como objetivo ocidentalizar o pensamento Egípcio – ou seja, ajustar os hábitos, costumes e práticas não-ocidentais frente às práticas disseminadas pelo processo colonial.

Ao propor um encontro com o filósofo e professor Wanderson Flor do Nascimento, o Com a Palavra oferece ao público um convite a pensar o Egito Antigo a partir de um pensamento que não o exotiza, mas busca vinculá-lo às Filosofias Africanas, em meio às quais o Antigo Egito, ou Kemet, produziu ciências, artes e cultura, servindo como berço para o que se conhece como filosofia ocidental.

Uma das atitudes mais importantes pra começar a se pensar no Egito Antigo como um legado e como uma produção de conhecimentos potentes corresponde à alteração do olhar eurocêntrico que geralmente empregamos nas filosofias, ou seja: à rejeição da ideia de que toda a construção do pensamento humano e seus desdobramentos são legados vindos da Europa. A proposta inserida na discussão, por outro lado, é que se afirme um olhar voltado para o Egito, sempre consciente de que a nação se localiza no continente africano e que os egípcios tinham, desde a Antiguidade, suas próprias formas de pensar a existência e, consequentemente, de influenciar outras culturas.

É muito interessante observar a forma com que Wanderson conduz a mediação à mostra, pois, diferentemente do que inicialmente propõe a curadoria, o mediador nos faz perceber que as grandes temáticas da exposição – ou seja, o cotidiano, a religião e a eternidade – estão diretamente ligadas. Segundo sua visão, tais temáticas não podem ser separadas de uma compreensão sobre como são compostos os pensamentos presentes naquela antiga civilização.

O rio Nilo e o sentido da vida

Um bom exemplo dessa visão se apresenta quando o convidado fala que o pensamento dos egípcios não está “separado em caixas”: para essa cultura, as coisas coexistem sem se anular e sem se perder em dualismos – como, por exemplo, o real e o virtual. Quando, ao longo da visita, ele nos mostra e nos fala sobre a barca, ele sugere que as esferas envolvidas no objeto não são só físicas, mas também expressam uma vivência que faz parte do cotidiano dos egípcios, sempre transitando entre o visível e o invisível – sendo essas duas perspectivas integrativas dependendo de seus significados para existir. 

O sentido do Rio Nilo, por sua vez, é colocado como uma metáfora. Mesmo sendo um fenômeno físico e natural, o rio é considerado a partir de todas as funções que ele desempenha: ao correr para a frente, proporcionar a cheia, apresentar desafios, o curso d’água é encarado da mesma forma que a vida. 

Outro pensamento compartilhado por Wanderson refere-se ao fato de que todo o continente africano respeita uma ideia geral de continuação da vida: em vez de existirem dois mundos diferentes, um mundo dos vivos e um dos mortos, na verdade existiria um só mundo, criado a partir da coexistência entre eles. O convidado frisa ainda a ausência de um pensamento dualista que supõe céu e inferno: quando as pessoas morriam no Antigo Egito, elas não tinham outra vida, mas apenas experienciavam a própria vida de uma maneira diferente. 

Wanderson também falou a respeito da forma como os egípcios enxergavam o corpo, destacando como essa visão levou a reflexões sobre equilíbrio e convivências plurais, em uma sociedade feita de pessoas e estilos de vida que demandam um nível mínimo de interação social para efetivamente coexistir. Chamando atenção às diversas formas de vida e de pertencimento à natureza, o convidado questiona o emprego da palavra “religião” entre os egípcios antigos, uma vez que eles não haviam se distanciado do divino e da observação da natureza.

A filosofia Iorubá e a noção de pessoa 

Partindo da premissa apresentada por Wanderson sobre a filosofia africana, em sua relação com a pluralidade e a coexistência entre várias filosofias, pretendo apresentar alguns aspectos da cultura Iorubá, considerando principalmente a ideia da continuação da vida, presente em todo o continente africano. Segundo os pensadores Bobou Hama, da Nigéria, e Ki-Zerbo, de Burkina-Faso, o tempo tradicional – sob uma perspectiva africana – engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. 

O território Iorubá é um território ou região cultural que compreende as áreas hoje ocupadas por Nigéria, Togo e Benim, em África. A região também é denominada Yorubaland, porém não é só nesses lugares que se pratica a religião tradicional ou filosofia iorubá. Como se trata de uma filosofia diaspórica, suas influências também podem ser encontradas em países como Cuba e Brasil.

Os iorubás tem alguns aspectos muito parecidos com os keméticos, ou egípcios, sobretudo quando se considera a noção de pessoa, e no que se refere aos “sete elementos dos corpos”. Enquanto, para os egípcios, a noção de pessoa estava diretamente ligada a sete elementos, a mesma noção, para os iorubás, dependia de alguns princípios vitais: Ará, como corpo físico, Okan, como coração, e Emi, o sopro divino. Quando traduzidos ao egipcio, tais princípios vitais podem nos remeter a Khat, o corpo físico, Ib, o coração, e Ar, a centelha divina.

Pensamento em construção

Ainda a partir da fala do convidado, é importante destacar também a questão da pluralidade: as sociedades africanas são plurais entre si, e a filosofia iorubá também incorpora o coletivo, ou Egbé, termo que se refere às comunidades que existem no mundo intangível e ao mesmo tempo no mundo tangível. “Não é porque não enxergamos, que não existe”, frisa o convidado. 

Wanderson destaca a relevância de se pesquisar outras filosofias africanas de modo a acrescentar perspectivas aos estudos e constatações sobre o Egito Antigo, reiterando que o mesmo está inserido no continente africano. O convidado afirmou também que existem vários “Egitos Antigos” e que há vários conhecimentos sendo construídos agora. 

Em sua visão, a exposição é uma oportunidade de se olhar para esses objetos e artefatos como parte de um registro produzido naquele território. É a partir desses registros que conseguimos conhecer, pensar, sentir e perceber parte da experiência de construção de pensamento que hoje conhecemos como filosofia. E qual é o legado deixado pelo Egito Antigo para a construção de um pensamento a partir dessas existências no mundo atual?