Ivan Serpa é um nome fundamental para se entender a história da arte brasileira. Artista constantemente preocupado com o caráter experimental e inventivo dos processos em pintura, foi figura central na criação do Grupo Frente, no Rio de Janeiro. É a partir das pesquisas deste grupo – e também do Grupo Ruptura de São Paulo – que o concretismo dá o tom da arte brasileira na década de 1950 e, de forma direta ou indireta, também nos anos seguintes.

Nesta edição do Com a Palavra, recebemos dois pesquisadores do Laboratório de Ciências da Conservação da Escola de Belas Artes da UFMG: Giulia Giovani e Luiz Antonio Cruz Souza. Juntos, eles traçam um percurso entre as obras da exposição “Ivan Serpa: a Expressão do Concreto”, indicando caminhos de leitura dos seus trabalhos. Os pesquisadores falaram também sobre a importância de Serpa entre seus pares, destacando suas contribuições para a pintura, definidas por questões colocadas pelo Concretismo.

Uma extensão do olhar

Observar as falas de Giulia e Luiz Antônio é perceber um movimento interessante e inspirador que vai ao encontro das obras de Ivan Serpa, mas retorna o tempo todo aos campos da conservação e da restauração, apresentando ao público algumas das facetas mais potentes dessas disciplinas. Luiz Antônio destacou, por exemplo, que a partir de métodos físicos e químicos de análise de obras de arte, lançando mão de equipamentos e técnicas específicas do campo, é possível revelar camadas invisíveis a olho nu. Entretanto, o que pareceria óbvio ganha, em suas palavras, contornos mais significativos: para ele, restauradores e conservadores atuam “numa extensão do olhar”, apresentando ao mundo elementos que ampliam os possíveis repertórios de leitura de uma imagem.

A partir dessa reflexão, podemos perceber um traço excepcionalmente pedagógico na atividade do conservador/restaurador: para além de atuar na superfície da imagem, que se apresenta a nós em um primeiro contato, a mesma atividade também investiga o gesto do artista e suas implicações, considerando os caminhos percorridos durante os processos de criação – os quais nem sempre estão evidentes. No caso específico do Concretismo, esse aspecto marca uma opção estética e filosófica e o trabalho de restauração e conservação se torna dizer que esse gesto encoberto persiste e ajuda a responder às perguntas que cada artista se faz sobre arte.

Desse modo, reconstituir o percurso que leva ao surgimento de uma imagem coloca a obra no plano do real, do processo, do experimento e da descoberta de soluções para as múltiplas questões que se colocam. E a esse respeito, como nos diz Giulia Giovani, o caso de Ivan Serpa se mostra bastante ilustrativo.

Estética e materialidade

Segundo a pesquisadora, a análise dos trabalhos de Serpa evidencia uma faceta significativa da prática do artista: a experimentação. Pense, por exemplo, nos tipos de tinta que imaginamos serem os mais utilizados em uma pintura: tinta a óleo, acrílica, aquarela, têmpera. No caso de Serpa, contudo, o que se percebe é um movimento que visita tintas industriais, utilizadas na pintura naval, automotiva e de eletrodomésticos. Há também instrumentos trazidos de áreas como o design e arquitetura, como o tira-linhas, deixando evidente o interesse por recursos com os quais um artista mais purista não estaria familiarizado.

O que Giulia nos conta é que a escolha por materiais e instrumentos que a princípio não faziam parte do repertório das artes visuais não fala de um experimentalismo vazio ou aleatório, mas de um gesto que experimenta outras possibilidades estéticas – possibilidades que, naquele contexto, só recentemente estavam disponíveis para o público brasileiro. A pesquisadora destaca que o intenso processo de industrialização do Brasil na década de 1950 catalisou também o surgimento de materiais até então desconhecidos: tintas cujas características já traziam brilho e cor muito bem definidas, de modo que os artistas já não precisavam de muitas misturas para obter os resultados esperados.

Além de facilitar processos, essas novas tintas, sem brilho ou com brilho laqueado, foram fundamentais para que os artistas concretos alcançassem imagens até então pouco vistas no campo da pintura. Em seus trabalhos, blocos de cores sem textura concretizavam investigações pictóricas sobre a cor e a forma em sua integridade, sem elementos excedentes. Para tanto, pistolas para pinturas elétricas depositavam a tinta sobre o suporte de modo uniforme e objetivo, eliminando as marcas do pincel, muitas vezes indesejáveis.

A partir dessa reflexão, percebemos como a história da arte é o tempo todo impulsionada pelo surgimento de novos materiais. Sobre isso, podemos evocar as palavras do crítico Mário Pedrosa, para quem os trabalhos de Serpa revelam “uma constante inquietude experimental”, em que as experiências com tintas industriais serviam para “neutralizar a matéria e a qualidade mundana do óleo”. O movimento concreto, portanto, enseja uma série de questões sobre pintura e escultura que são respondidas com a ajuda desses novos materiais, ao mesmo tempo em que são ampliadas e potencializadas por eles. Tais experimentos corroboram uma formulação teórica concretista: toda a pintura concreta gira em torno da possibilidade de criar imagens não-representacionais: pinturas que não servem à narrativa, mas à tematização e à problematização do plano pictórico.

Obra inacabada, “cápsula do tempo”

Na última sala da mostra, há uma pintura que merece nossa atenção: trata-se de uma obra da série Geomântica (1973), não concluída pelo artista. Nessa pintura, o padrão de quadrados milimetricamente localizados no plano é interrompido de repente, deixando evidentes as marcações feitas em grafite, que parecem indicar onde a cor seria ainda depositada. “Obras inacabadas são cápsulas do tempo”, diz Luiz Antônio Cruz Souza, fazendo referência a vestígios palpáveis de um processo construtivo que, ao ser interrompido, acaba por deixar frestas que dão a ver processos que não foram totalmente encobertos – ali, as camadas estão evidentes. Quando aponta para isso, Luiz Antônio nos aproxima um pouco de seu próprio ofício: há sempre uma pista deixada pelo artista, que nos ajuda a recuperar camadas mais ou menos manifestas.

Não há, a partir de então, como não pensar em um paralelo com o nosso trabalho como mediadores culturais: grande parte desse trabalho, afinal, consiste em pensar estratégias de visibilidade – em como aspectos e leituras que estão à espera de descoberta podem emitir algum sinal que capture nossa atenção e a dos públicos. Em alguma medida, esse trabalho de escavação, que perscruta a superfície de uma imagem em busca de segredos até então invisíveis, tem fortes paralelos com o do mediador. Em ambos os casos, há sempre algo a ser preservado, uma preocupação com a integridade da imagem, não só do ponto de vista da sua sobrevivência física, mas no sentido de uma abertura às possibilidades com as quais nos deparamos quando escavamos uma imagem, tal qual em um trabalho arqueológico. Nesse sentido, o uso de instrumentos diversos para interrogar uma imagem pode revelar o retrato de uma época, assim como questões e recursos disponíveis em seu contexto de criação. A partir do encontro com a obra de Ivan Serpa, podemos perceber o quanto uma imagem é inesgotável como materialidade, mas também como fenômeno.