Na edição de abril de 2021 do Com a palavra…, recebemos no CCBB SP, durante a exposição “Ivan Serpa – A expressão do concreto”, a crítica de arte e curadora Daniela Bousso. Este relato une elementos da conversa com Daniela e pensamentos que surgem das práticas educativas realizadas durante o encontro com o público.

Ivan Serpa foi um artista brasileiro, nascido na cidade do Rio de Janeiro, que viveu entre os anos de 1923 e 1973. Além de artista plástico, também trabalhou como professor e restaurador de documentos raros, sendo possível observar a influência de ambos ofícios em sua obra, como iremos comentar mais adiante. Como bem nos lembra Daniela Bousso, Ivan Serpa foi um artista que transitou e experimentou diversas técnicas, o que o converteu em um exímio conhecedor de todas elas.

Ao atuar como restaurador de documentos raros na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, por exemplo, passou a dominar e valorizar a matéria prima, incorporando inclusive fragmentos de papéis com os quais trabalhava em uma série de colagens denominada “Anóbios”, presente na mostra. Sua carreira como artista se desenvolve de maneira contundente nos anos 1950, a partir de produções em diálogo com o concretismo brasileiro, movimento artístico no qual Serpa teve grande destaque.

Expressões do concreto

Organizada de modo cronológico, a mostra em cartaz no CCBB SP tem início com um conjunto de obras concretas realizadas pelo artista, que nos dão indícios do porquê Serpa se torna uma figura notória daquele período. As experimentações que o artista se permitia incorporar em sua obra são observadas já nesse primeiro momento de sua carreira, por vezes contrariando os rígidos ideais concretos que defendiam outros artistas da mesma época.

Em “Biombo concretista”, de 1952, Serpa se apropria de um elemento do cotidiano – um biombo – para apresentar sua criação. Embora puramente plástica, uma vez que apresenta somente elementos geométricos e lineares, a criação deixa transparecer “a mão do artista”, visto que sua materialidade não é visualmente chapada, mas notoriamente artesanal.

Ainda sobre a primeira metade dos anos 1950, Daniela Bousso ressalta a liderança de Serpa junto a um grupo de artistas que, assim como ele, acreditavam na flexibilidade da arte concreta a partir de experimentações e misturas com outras tendências da história da arte. O coletivo ficou conhecido como Grupo Frente e fazia oposição aos pensamentos defendidos por artistas mais tradicionais, como os que viviam em São Paulo e compunham outro coletivo, o Grupo Ruptura.

Saindo desse primeiro conjunto de obras concretas, somos conduzidos a uma parte da produção de Ivan Serpa que aponta ao chamado Neoconcretismo. Nascido com o Grupo Frente a partir de um manifesto escrito em 1959, o movimento defende uma arte mais libertária e contrária aos ideais ortodoxos levantados pelo concretismo de influência europeia. Ao passo que esta transformação ocorre, também vemos o artista alçar outros experimentos, como por exemplo as séries “Anti-letra”, “Bichos” e “Op-erótica”, nas quais seus repertórios como restaurador, professor e estudioso das artes servem como subsídio e estímulo à criação.

Por fim, somos conduzidos à sua última coleção de trabalhos: uma série em que mescla elementos da espiritualidade e a geometria utilizada em sua fase concreta. Daniela Bousso nos conta que Serpa encerra a própria carreira com a série “Geomântica”, despertando aos curiosos o sentimento de que se trata de uma criação premonitória, com o papel de concluir um ciclo iniciado no Concretismo

“Quem ensina, experimenta”

Além de artista plástico, Ivan Serpa teve como ofício a atividade de professor. Começou lecionando aulas de francês e depois foi convidado a ministrar artes para crianças no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Mais tarde, se tornou importante articulador da Escolinha de Artes da mesma instituição, naquele momento um dos lugares mais relevantes para o ensino de arte no Brasil.

Além de oferecer aulas para crianças, Ivan ministrava cursos voltados a adultos, tendo participado da formação de estudantes que hoje são grandes nomes da história da arte brasileira, como Hélio Oiticica, Décio Vieira, Wanda Pimentel e Aluísio Carvão. Suas experiências como professor propunham a experimentação livre, prática incentivada pela maneira com a qual ele observava a relação das crianças com o fazer artístico. A esse respeito, relatos da curadoria da mostra afirmam que Serpa por vezes reunia adultos e crianças em uma mesma turma, a fim de que os mais velhos observassem o modo destemido com o qual os mais novos encaravam a tarefa de produzir arte.

Daniela Bousso nos chama a atenção ao fato de que “quem ensina, experimenta”.Nesse sentido, não nos deveria causar espanto que Ivan Serpa tivesse domínio de tantas técnicas artísticas. Ao se comprometer com o magistério, Serpa também pôde alargar seu repertório como artista plástico, revelando a importância da experimentação para o fazer artístico.

Um artista sensível ao próprio tempo

Em meio às experimentações artísticas de Ivan Serpa, não passam despercebidas aos olhos da convidada duas séries de forte marca expressionista: “Bichos” e “Crepuscular”. Em ambas, o artista abandona a abstração geométrica e apela à figuração marcada com traços expressionistas. Em “Bichos”, salta aos olhos a influência do desenho das crianças, revelando criaturas oníricas carregadas de cores vibrantes e pinceladas rápidas. Já em “Crepuscular”, Serpa buscaria “dar sentido a tragédia humana”, exprimindo as dores do mundo em impactantes telas a óleo e pequenos desenhos feitos com nanquim.

Quando olhamos para as faces pintadas pelo artista na série “Crepuscular”, encaramos o desespero da humanidade frente aos poderes totalitários e aos horrores que as guerras promovem. Também somos convidados a refletir sobre um tempo sombrio que surge no mesmo ano em que grande parte dessas telas: a ditadura militar brasileira.

Com o público visitante, costumamos refletir sobre o quão difícil é alegar com certeza as dores e desesperos que assombravam o artista no momento exato da criação das obras mais expressionistas de sua carreira. Observamos, porém, que o contexto político e social no Brasil e no mundo eram cruéis demais para não atravessar um artista tão sensível ao próprio tempo como era Ivan Serpa.

Pensando na sensibilidade que carregava enquanto artista, podemos pensar: se Ivan Serpa estivesse vivo ainda hoje, o que retrataria em suas obras? Com essa pergunta feita por Daniela Bousso, terminamos este relato convidando a todas e todos a refletir sobre quais lugares sociais ocupam os artistas e suas obras na contemporaneidade.