A partir do desejo de abordar e refletir sobre o campo da arte segundo outros olhares e perspectivas, assim como de encontrar novas camadas de narrativas e pontos de vista culturais, físicos e afetivos perante uma ampla coleção de arte contemporânea, o encontro Com a Palavra… realizado em maio de 2021 tem como convidado o artista visual Marcos Chaves.

Durante um passeio pela exposição “1981-2021: Arte Contemporânea Brasileira na coleção Andrea e José Olympio Pereira”, Marcos nos dá a sua perspectiva sobre as diferentes camadas de uma obra de arte, desde as dimensões materiais e conceituais até os aspectos afetivos e relacionais, entendendo todos eles como possíveis caminhos para investigar os contextos de produção e atuação dos artistas exibidos na mostra. 

Como um artista que começou sua carreira na década de 1980 e vivenciou todo o período de quarenta anos de arte contemporânea trazidos pela exposição, Marcos Chaves acaba por demonstrar, durante a visita, variadas possibilidades de observação e contextualização das obras exibidas nas sete salas que compõem a mostra.

Para além de contextos estilísticos, conceituais e dos materiais presentes nas obras, o convidado nos apresenta um panorama muito nítido sobre como esses vários e várias artistas se conhecem, se comunicam, trocam afetos e compartilham não somente técnicas, interesses e temáticas, como também visões complementares sobre o que se pode perceber como contemporâneo.

Comunidades em arte: tangentes de contatos

Nascido no Rio de Janeiro nos anos 1960, Marcos Chaves possui formação em Arquitetura e Urbanismo e, ao longo de seu trajeto no campo da arte, passou por espaços de referência da capital carioca, como a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV/Parque Lage) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Nesses espaços, teve aulas com Lygia Pape e Rubens Gerchman.

Durante a década de 1980, teve experiências profissionais na Itália como assistente do artista multimídia Antônio Dias, e iniciou sua carreira como artista nesse mesmo período, quando a pintura esteve em grande destaque em suas práticas. Naquele contexto, a técnica estava sendo revisitada e atualizada por muitos criadores, dentre os quais o artista Jorge Guinle, autor de uma obra que também se encontra na mesma exposição, dentro da Sala Costela de Adão. Junto a outros e outras criadoras do mesmo período, tais artistas possibilitaram que a pintura pudesse ser vista como linguagem viva e capaz de acompanhar o tempo contemporâneo.

Apesar de ter trilhado um viés artístico mais conceitual, Marcos Chaves acabou participando de diferentes comunidades artísticas dos anos 1980, tanto diretamente quanto de forma indireta. Estabeleceu, inclusive, contatos bastante fortes com artistas dedicados a outras linguagens, como é o caso de Leonilson, cuja obra também se faz presente na mostra. A partir das diversas narrativas afetivas e relacionais evocadas pelo convidado, fica evidente a importância dessa camada de memória para que possamos rever, ainda mais profundamente, cada peça da exposição.

Considerando essas narrativas, é possível por exemplo, entender como a pintura “S/título”, de Leonilson, presente na sala “Costela de Adão”, pode tanto traduzir interesses e interações entre as comunidades da arte sobre a experimentação da pintura dos anos 1980, como também evidenciar o início da identidade artística que o definiria, segundo um ponto de vista mais historiográfico.

A obra “S/título”, de Leonilson, traz uma paisagem de formas fluidas, quase corpóreas, pintadas de forma opaca e em cores contrastantes, de modo a criar um horizonte de formas naturais que saem da parte inferior e se estendem pela extensão da tela. Conforme apontado por Marcos, desde a criação e primeira exibição dessa obra, Leonilson já trilhava em paralelo alguns experimentos que o tornariam conhecido no futuro, a partir da inserção de bordados, desenhos e elementos de escrita em seus trabalhos. A cada nova obra mostrada pelo convidado, novas camadas de reflexão são acrescidas, ampliando nosso campo de entendimento da arte para além dos materiais e linguagens usadas por cada artista, assim como de suas ideias e investigações propostas inicialmente.

Assemblages de valores, memórias e afetos

Em seu trabalho, Marcos Chaves se apropria e interage com várias mídias, criando obras que costumam ser classificadas como assemblages: composições artísticas com diferentes objetos, muitos deles presentes em nosso cotidiano.Ao combinar diferentes materiais, linguagens e conceitos, o artista busca significados e noções escondidas em objetos, hábitos e cenas rotineiras, frequentemente injetando humor e ironia em suas produções, seja pelos títulos ou pelos próprios materiais escolhidos para a criação das obras.

Ao observarmos “Stereodeath” (2002), obra criada pelo artista e presente na segunda sala da mostra, fica evidente a potência dessas misturas de linguagens e materiais. É possível perceber, por exemplo, como a obra se liga à ideia de efemeridade, presente na sala Coluna de Cinzas. Em paralelo, a mesma obra demonstra contato e semelhanças criativas com a produção de Waltercio Caldas, artista do mesmo período que possui duas obras na sala Costela de Adão: “Aquário Completamente cheio” (1981) e “Ultramar” (1981). Ambos os artistas possuem uma produção baseada em misturas de mídias e objetos do cotidiano, ampliando, a partir de obras como as aqui citadas, as formas de entender e produzir reflexões sobre o efêmero e a paisagem, respectivamente.

A partir da mediação do convidado, entretanto, essa investigação se amplia para além do que podemos acessar visualmente. Por exemplo: ao falar sobre “Stereodeath”, a narrativa trazida pelo artista nos possibilita acessar as camadas cultural e processual envolvidas na sua criação, como também perceber a importância das trocas culturais realizadas em uma residência artística.

A potência da mediação

Ao longo do encontro com Marcos Chaves, podemos perceber o caráter contextualizador e instigador que a atividade de mediação pode trazer a diferentes públicos, conformando-se como um agente de grande importância para estimular o acesso e a produção de reflexões artísticas, sociais e culturais sobre o que se exibe em museus e centros culturais, seja para públicos especialistas em arte ou visitantes ocasionais.

A mediação trazida durante essa atividade pode ser definida como um convite para pensarmos uma exposição a partir de outros campos que não somente a fruição das obras expostas. Ao destacar as relações e os contatos pessoais estabelecidos entre diferentes artistas presentes na mostra, a visita nos instiga a pensar sobre como se formavam – e se formam – as comunidades artísticas, sobre quem as formava, naquele contexto, e também sobre as maneiras como aspectos contextuais influenciaram e seguem influenciando, nos dias de hoje, diferentes produções e movimentos culturais, sociais e políticos. 

Por fim, as palavras e escolhas de Marcos Chaves mostram-se capazes de ampliar nossa percepção enquanto público observador, permitindo a criação de ligações pouco óbvias e de novas curadorias, dessa vez a partir das narrativas pessoais trazidas pelo artista sobre as obras apresentadas. Desse modo, somos convidados a perceber que o contemporâneo abraça a vida e nossos próprios contextos, permitindo, assim, que nós, como público observador, possamos estar simultaneamente dentro e fora das obras de uma coleção como essa.