Sediado em Brasília, o Coletivo Antônia se dedica já há uma década a estudos e investigações teatrais para a chamada primeira infância, tendo como pressuposto a criação de dinâmicas horizontais entre crianças e adultos, baseadas em uma visão que considera as habilidades e sensibilidades emocionais, poéticas e estéticas de seus pequenos colaboradores. Convidada a conduzir um encontro do curso Processos Compartilhados em maio de 2019, a artista e pesquisadora Cirila Targuetta dividiu com o público do CCBB DF alguns capítulos importantes da trajetória do grupo, assim como um amplo conjunto de aprendizados reunidos ao longo dos últimos dez anos.

Entre esses aprendizados, por exemplo, figura uma declarada recusa ao termo teatro infantil, justificada pela própria origem da expressão. “A palavra infância vem lá do latim e significa ‘aquele que não fala’. Se a gente já entende a criança como alguém que não tem algo, isso nos coloca num lugar de verticalidade, de olhar de cima para baixo. É como se as crianças não fossem nada, não entendessem nada do mundo, e fossem salvas à medida que crescessem, adquirissem conhecimento e se tornassem, enfim, seres completos”, reflete Cirila, chamando atenção à sensação de incompletude que, pelo contrário, segue nos acompanhando também na idade adulta.

Com intenção de superar essa perspectiva, a artista conta que os trabalhos do grupo tiveram início com uma série de visitas a uma creche da cidade, onde os criadores envolvidos no primeiro trabalho do grupo se dedicaram essencialmente à observação. “Nesse processo, depois de dois ou três meses, nós já estávamos na sala de ensaio criando cenas e continuamente testando essas cenas com as crianças. Pela característica do que a gente faz, não tem como criar se não testando, porque esse confronto nos coloca diante de muitas desconstruções”, aposta. 

Entre as desconstruções necessárias a essa caminhada, destaca Cirila, figura a ideia de que os trabalhos voltados a crianças precisam necessariamente ensinar alguma coisa. “É importante entender cada criança como um ser pleno, inteiro, poroso, capaz de produzir subjetividades tanto no sensível quanto no estético. Em vez de pensar em limites, crostas e cascas, o que me parece interessante é reconhecer a capacidade dessas crianças de se maravilharem exatamente com a vida como ela é. A questão, então, talvez seja como não estragar essa potência? Como voltar a esse lugar do jogo e do brincar?”.

Três passos para começar

Desviando-se de metodologias universais e re-definindo a atividade como um “processo compartilhado de incertezas”, a artista apresentou ao público do encontro três aspectos que, a partir de sua experiência junto ao Coletivo Antônia, podem servir como orientação à criação de arte para bebês e crianças. “A primeira coisa é que a gente entende o bebê como um ser completo, absolutamente capaz de entender o mundo e de se relacionar com ele, capaz de perceber e de produzir mundo, a partir de uma inteireza”, sintetiza.

O segundo aspecto apresentado por Cirila refere-se à questão do tempo, preocupação que por vezes ronda a criação de trabalhos para crianças. “Hoje em dia, a gente não tem medo do tempo. A gente entende que eles lidam com a vida de uma maneira muito mais fácil do que a gente. Eles sofrem, claro, mas têm outra relação com os medos e as inseguranças. Há uma série de questões que não necessariamente são delas, mas estimuladas pelos próprios adultos, a partir de determinados contextos econômicos e sociais, por exemplo”.

Por fim, fortalecendo a ideia de que carregamos desde muito cedo saberes que ultrapassam nossa existência visível, a artista sugere uma potente associação entre as crianças e aqueles que vieram antes de nós. “As crianças são a memória de toda a ancestralidade. Quando você vai observar uma criança muito pequena, que ainda não foi socializada, acaba percebendo que ela vai criar brincadeiras que têm a ver com o contexto sócio-cultural dela. Cada criança tem sua semântica, e a gente precisa cuidar disso”, defende.

Livre, leve, sem compromisso

Como forma de estimular a imaginação dos participantes do curso e desafiá-los ao ato criativo, Cirila Targhetta propôs um breve exercício voltado à concepção de uma possível obra para crianças. Divididos em três grupos, eles foram convocados a escolher alguns elementos disponibilizados pela artista, dentre os quais livros, textos e objetos. “O seu mote é o que você tem. Não precisa ser tudo, e pode haver outros elementos. O que estamos trazendo são provocações para subsidiar um processo criativo entre pessoas que não se conhecem”, orientou a artista.

Após a escolha dos elementos, algumas perguntas foram lançadas ao participantes, novamente abrindo espaço para a criação. “O que eu quero criar? Pode ser uma intervenção, uma performance, um espetáculo, um solo de dança, um concerto ou mesmo um recital de poesias. Quando isso acontece? Pode ser de manhã, de tarde, de noite, na madrugada, no Natal, na hora do recreio etc. E onde acontece? Em uma área aberta, numa sala, no teatro, no ônibus, no parque, no Lago Paranoá?”.

Tendo como horizonte a criação de um jogo definido pela própria artista como “livre, leve e descompromissado” e considerando as reflexões anteriormente compartilhadas, os participantes aceitaram o desafio, sendo os resultados de seus esforços mais adiante compartilhados e comentados pelo grupo. “Vamos pensar em um trabalho que não sabemos se vamos realizar. Pode ser o que vocês quiserem. O mais importante é lembrar para quem estamos criando”.