Imagine, então, que você está subindo uma escada. Normalmente quando subimos escadas, imaginamos chegar a algum lugar. Mas essa escada é, na verdade, a saída para algum lugar – e tem rodas. Essas rodas provocam certa instabilidade, porque fazem a escada se mexer um pouco, à medida que se anda sobre ela. Chegando ao topo, há uma plataforma e, depois desta, um abismo de onde se pode avistar apenas um fone e um grande espelho. Esse espelho, no entanto, reflete não só a sua imagem, como também todo o espaço atrás de você, incluindo outras pessoas, estejam elas lá em baixo ou sobre outras escadas.

Ao se deparar com sua imagem, você pega o fone e o coloca sobre os ouvidos. Nesse fone, há um áudio de 16 minutos, ao longo dos quais um repórter fala sobre o trânsito de São Paulo. Tanta coisa acontece que mais parece o retrato de um evento apocalíptico. Um aglomerado de 500 pessoas, fogos de artifício, carreta parada na avenida Castelo Branco, calçada da radial leste, na rua dos trilhos, totalmente ocupada, congestionamento inevitável, visibilidade prejudicada. É melhor cancelar a viagem por medida de segurança”. Junto à gravação, também existe uma suave música instrumental de fundo , que nada parece ter a ver com a situação. É trânsito, ainda que não esteja andando, e se mexe, ainda que não vá a lugar algum.

“Ser visto vendo, virar o objeto, ser a escultura”

Embora eu nunca tenha visto esse trabalho pessoalmente, trata-se de EXIT II da artista Ana Maria Tavares, convidada a conduzir a edição de março de 2019 do curso Processos Compartilhados. Por que falar, então, de um trabalho que nunca vi? Afinal, segundo o artista espanhol Antoni Muntadas, “percepção requer envolvimento”.

Durante sua participação no Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, a artista Ana Maria Tavares nos lembra que, para além de uma noção objetal, cada trabalho de arte nasce, se desenvolve e se apresenta como um sistema, envolvendo e sendo envolvido por uma série de relações durante a criação, a realização (ou montagem) e também na sua repercussão (dentro, fora e durante). Desta forma, o trabalho não está fechado em si mesmo como coisa finalizada: ele se constrói em camadas e passagens.

Não devemos nos preocupar, neste momento, com a experiência factível do trabalho (um relato de uma experiência), mas principalmente com as suas extensões: da(o) artista à obra, da obra aos públicos e ainda a todas as camadas que envolvem a experiência de uma ação artística enquanto coisa pública. Começamos, então, por uma experiência que não vivi (ou não vi vendo), porque, assim como um relato ainda não vivido, mas se torna sensível através da imagem (que foi descrita por palavras), a proposta deste texto é destacar uma ideia, ou ainda: um trabalho que, um dia, foi ideia. “Porque as ideias precisam sobreviver”, afirma a convidada. “Onde está a obra?”, “O que é a obra?”, indaga, mais adiante.

Da contemplação à vivência

Na obra Uma e três cadeiras (1965), do artista conceitual estadunidense Joseph Kosuth, existe uma definição de cadeira, a foto de uma cadeira e uma cadeira – o objeto. Ali, a expressão da obra está na ideia. Não digo que a forma está a serviço de um conceito: realmente acredito que sejam espaços intercambiáveis, mas, quando o objeto se desmaterializa, como apontar a obra? Há uma cadeira, a representação de uma cadeira e uma ideia de cadeira – para Kosuth, todas são equiparáveis. O que faz da arte ser arte, para além da institucionalização? Ou para além da nomeação da coisa pelo artista? O francês Yves Klein, além de pintar telas, assinou ainda na primeira metade do século XX o nada como obra de arte.

O alemão Joseph Beuys diz que “todo mundo é artista”, mas, por outro lado, se tudo pode ser arte, mas nem tudo o é, quem define? Ana Maria Tavares afirma que precisamos sobreviver primeiro como seres humanos, segundo, como artistas, e, depois, como mulheres. “Se não me autorizo, não sobrevivo”, afirma Ana Maria Tavares. Nem ela, nem nós e nem as ideias.

A escultura escapa, então, da compreensão apenas tridimensional para entrar no campo expandido. Nas palavras da pesquisadora estadunidense Rosalind Krauss, “a escultura é permeável, fazendo um trânsito para o mundo”. As instalações, performances, happenings e obras de land art são entendidas, portanto, como mais do que trabalhos tridimensionais. Incorporadas ao espaço, são experiências impermanentes e que muitas vezes contam com a participação ativa do corpo e do tempo de espectadoras e espectadores.

Como falar de objeto escultórico quando temos fumaça em Nimbus Dumont (2014), do holandês Berndnaut Smilde? Ou quando temos peças que, na verdade, são ações, como em Grapefruit (1964), da artista japonesa Yoko Ono? Quando se tem uma produção tão plural, flutuante e instável, como na contemporaneidade, a questão já não é definir. Talvez seja mais uma questão de compreender como cada trabalho faz sentido para o público, ou melhor, como ele é vivenciado. Vivenciar, diferente de apenas experimentar, pois existe, no primeiro termo, o fator da assimilação de um conhecimento ativo. “Como me coloco diante do mundo para perceber esse mundo?”.

Estou partindo do pressuposto de que tudo é escultura e tudo é desenho. Estar suspenso em frente a um espelho enquanto se ouve um áudio confuso é uma vivência que proporciona uma experiência escultórica, moldando a vivência do participante e, assim, também o próprio sentido da obra. Existe ainda o fator quadridimensional da experiência: a temporalidade da obra, que se desdobra a partir de instâncias e especificidades que nos afetam. Mostrar em um museu ou expor em um parque, por exemplo? “Fazer só” ou coletivamente?” “Qual a duração de um trabalho?”. Qual o lugar do artista nessa produção de sentido? E como pensar a experiência do trabalho para o público?

Não se trata somente de dar fôlego a uma imagem, como também de compreender em que momento um trabalho gera intersubjetividade, isto é: compreender a “arte como experiência de risco que desestabiliza o sujeito” e que, por desestabilizá-lo, gera a possibilidade da dúvida. Alguns dizem que a atividade do artista é como uma grande relação entre pergunta e resposta – não como termos necessariamente opostos, mas que, pelo contrário, se complementam e caminham juntos. “Como falar de coisas que (ainda) não existem?”, a exemplo o que indagava o título da 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. “Como falar de coisas que existem e ainda não foram percebidas?”.

Manual de sobrevivência

Ao longo do encontro, a artista compartilhou ainda uma série de pontos que considera importantes para a ambicionada “sobrevivência das ideias”. Mais ainda: pontos importantes para que as ideias possam existir no mundo, em uma articulação que Ana Maria Tavares entende como processo de tradução: de uma linguagem à outra, de uma ideia a um trabalho. A esse respeito, artista apontou sete fatores importantes para que ideias continuem em circulação. 

1. A ideia começa a sobreviver à medida que sai do campo do abstrato, seja a partir de um esboço no papel ou outro tipo de registro;
2. Sistematização e arquivo da produção;
3. Atualização: em movimento, em discussão e atento ao mundo. Qual a urgência do trabalho para o mundo hoje? Como meu desejo se conecta a ele?;
4. Sistemas de circulação;
5. Sistemas de display;
6. Público(s), pois os públicos são vários e são múltiplos;
7. O artista agente: o artista como funcionário de si mesmo. Fazer arte não necessariamente significa fazer a mesma coisa todos os dias, mas um estado de busca. Cada trabalho tem seu próprio tempo, seja um mês ou dez anos.

Ao sete fatores apontados por Ana Maria Tavares, tomo a liberdade de adicionar outros quatro, também mencionados durante o encontro.

8. A obra como sistema e não como objeto, de modo que o fazer se dá a partir da possibilidade de criação de relações;

9. A linguagem como construção da obra;

10. Quem, o quê, onde, para quem, quando, como e por quê?;

11. Cuidar do presente, do passado e do futuro: para onde vamos, para onde olhamos, “como olhamos o que nos tornamos?”.

“Qual a ideia de futuro que se tinha no passado?”. “Qual a ideia de futuro que se tem hoje?”, segue indagando a artista. Seria possível, afinal, saber do futuro? Talvez seja possível projetar. “Projetar”, que vem do latim projicere, que significa arremesso. Essa parece ser a perspicácia de uma ideia e digo perspicácia como capacidade de penetrar: é sobre sagacidade. Ainda que surjam em um campo abstrato, as ideias ultrapassam a noção de tempo. Não porque não estejam atreladas a modos de operação precedidos por contextos e localizações específicas, mas porque vêm de movimento, e movimento vem de ação. E ao final do encontro com Ana Maria Tavares, nos perguntamos: “Quais as ações mínimas devemos tomar para que uma ideia, então, sobreviva?”.