No dia 8 de abril de 2021, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação convidou Lila May, alter ego ou nome artístico da criadora Mayra Rizzo, para partilhar alguns de seus percursos no campo cultural durante mais um encontro do curso Processos compartilhados. Com uma bagagem que transita entre diversas linguagens artísticas, assim como pela educação, a sociologia e a produção cultural, ela abordou alguns aspectos-chave que constituem a multipotencialidade de seus trabalhos e nos conduziu em um mergulho ao caldeirão cultural dos tempos, energias e ciclos que residem nas terras férteis que entendemos por América Latina. 

Com a proposta de dialogar sobre os modos como se dão processos criativos, o encontro se iniciou com uma breve apresentação de momentos determinantes em sua jornada, em especial algumas viagens investigativas que fez pelas entranhas sul-americanas, desembocando em projetos como o Cineclube Latino-americano e a agência Conexão Latina. Trata-se, em linhas gerais, de ações que promovem a integração artística e cultural entre o Brasil e seus vizinhos latinos, a partir de projetos nas áreas de música, educação e audiovisual. Lila também está à frente do projeto Ritualístika, que propõe construir vivências de autodesenvolvimento a partir de elementos como a ancestralidade, o xamanismo, as vibrações espirituais e musicais, além de incluir experimentações em vídeo-mapping e performance materializadas em seu mais recente espetáculo musical. 

A artista etc.

Para a artista, pensar o fazer artístico confrontado pelas condições impostas pela pandemia e pelo distanciamento social nos trouxe um convite para desacelerar processos e recalcular percursos. Foi a partir dessa experiência que Lila ressaltou algumas questões fundamentais no que diz respeito à criatividade e ao fazer cultural no cenário atual. 

Inicialmente, ela destacou a necessidade de não interrompermos os fluxos de criação, assim como de buscar caminhos de adaptação a possibilidades que, segundo ela, dizem respeito não somente ao trabalho, mas também à nutrição de nossa essência energética e corporal. No caso da artista, tais reencontros consigo desaguaram em um “caldeirão cultural” que combina afetos e conexões vividas em terras sul-americanas a partir de diferentes celebrações do folclore e do Carnaval latino, encontros com “abuelas” bolivianas, sons e energias de tambores xamânicos e rituais que se mesclam as poéticas de seu trabalho. São esses elementos que guiam os ciclos de produção e desenvolvimento de seus projetos, tendo em mente ampliar nossa visão acerca da riqueza e da diversidade cultural que têm raízes em terras latinas.

Entretanto, conforme destaca a convidada, é comum que artistas tenham que liderar uma série de outras frentes no que diz respeito à materialização do próprio trabalho. A essa condição, entendida pelo pesquisador Ricardo Basbaum como artista-etc., Lila associou a ideia de empreendedorismo cultural, entendendo que o processo criativo é apenas uma das etapas do trabalho. Além de propriamente criar, cada artista deve dividir seu tempo entre a busca e a inscrição em editais culturais, as demandas administrativas e financeiras, as atividades de planejamento, execução e marketing, além de uma série de outras demandas que fazem parte dessa cadeia de trabalho. Lila destaca que essa complexidade da atividade artística torna indispensável o planejamento, inclusive para que não aconteçam desequilíbrios entre o labor no campo da cultura e os processos de criação. 

Radicalmente vivos e atentos

Para pensar estratégias de equilíbrio entre a criação e as demais camadas de trabalho, Lila nos convidou a refletir sobre os ciclos presentes em nossas vidas, sejam eles internos ou externos, entendendo que os mesmos determinam uma série de fatores em nossos processos criativos e cotidianos. Um dos ciclos mais básicos nesse sentido é a respiração, e foi esse o suspiro inicial para alinhar entre os participantes do encontro uma percepção mais atenta de nossos corpos. A partir de um exercício de presença corporal, fomos convidados a perceber que a respiração segue o mesmo fluxo das ondas no oceano, que nossa disposição por vezes está alinhada a ciclos menstruais e lunares, a períodos diurnos e noturnos, assim como a uma série de alternâncias que de fato determinam alguns padrões. Para Lila May, observar esses ciclos nada mais é do que mapear nossa inteligência emocional.

Essa presença consciente no corpo e na vida me fazem pensar no que diz Ailton Krenak em seu livro mais recente, “A vida não é útil”, quando relembra alguns sinais apontados pela natureza: os humores de uma montanha, por exemplo, podem nos indicar se vai chover, se o dia vai ser próspero ou ensolarado. Krenak denuncia que a vida ocidentalizada – e urbana – nos oferece uma experiência muito artificial, sobretudo por não estabelecermos uma conexão real com os demais elementos que coexistem conosco sobre a Terra. Mas nesse caso, então, a natureza não falaria nada? Segundo ele, apenas quando tiramos dos rios e montanhas os seus sentidos – como se tais sentidos fossem exclusivos dos humanos –, é que liberamos os mesmos lugares para se tornarem meros resíduos de atividades industriais extrativistas, negando sua importância como manifestações da vida.   

Nesse sentido, a vida poderia ser fruição e constituir-se como uma dança cósmica – e não uma coreografia inútil. Na visão de Krenak, a vida precisa ser mais do que uma “biografia de conquistas”: precisamos ter a coragem de sermos radicalmente vivos e não negociarmos nossa sobrevivência. Isso, por sua vez, requer que tenhamos atenção aos ciclos orgânicos do planeta que dividimos com todas as vidas, que revisitemos conhecimentos ancestrais e originários e que estejamos atentos a como essas energias regulam o que sentimos, somos e criamos. 

Atenção às manifestações da vida

Tal qual Krenak, Lila defende que, para estabelecer um estado mais inteligente de atenção aos ciclos, é importante revisitar saberes de povos que resistem com força, vitalidade e atenção a todas as manifestações de vida. Desse modo, podemos contribuir para a continuidade de existências que não se renderam ao sentido supostamente utilitário da vida, assim como para o estabelecimento de vivências em harmonia e atenção a tudo o que está preenchido com vida. Tais saberes, em sua visão, atuam com vitalidade nas entranhas desse imenso e extenso terreno sul americano, onde, com olhos atentos, podemos reconhecer numerosas racionalidades que não operam a partir do antropocentrismo, percebendo, por outro lado, que há muita vida além da gente. 

Diante dos processos trazidos por Lila May, o exercício dessa compreensão nos convida a refletir sobre algumas perguntas que, para ela, podem auxiliar cada um de nós nessa caminhada mais consciente: Quais os ciclos presentes em sua vida? O que te inspira? Onde você se conecta? Quais são suas habilidades? E ferramentas? Quais transformações e contribuições você causa e deseja causar? Quais são as dificuldades e os fatores limitantes?   

A partir da escuta atenta dessas vozes internas e externas, aposta ela, conseguimos nos aproximar de maneira mais presente em relação aos nossos processos de vida, trabalho e criação – sejam eles quais forem. Para sintetizar, podemos nos aproximar também de um provérbio de Oxóssi “Egba egba enigba iati ber” ou, no nosso idioma, “qualquer tempo é tempo de começar”. É esse, afinal, o convite que atravessa a escrita deste texto: um convite a habitar nossos fluxos e processos com presença e sensibilidade.