Já há algumas décadas, um conhecido ritual se repete em salas de cinema situadas em diversos pontos do globo. Com as luzes apagadas ou semi-acesas, as salas se abrem para que espectadores e espectadoras encontrem seus lugares. Enquanto esperam pelo início do filme principal, eles e elas assistem a breves montagens de outros filmes, mais conhecidas como trailers, e a partir dessas peças audiovisuais experimentam emoções tão diversas quanto o riso, a curiosidade, o espanto e – na melhor das hipóteses – o desejo de retornar ao cinema.

Para compartilhar experiências e reflexões sobre a arte de criar trailers, o Programa CCBB Educativo recebeu em janeiro de 2021 o cineasta Ricardo Mehedff. No decorrer de um encontro digital do curso Processos Compartilhados, ele dividiu com o público uma série de trabalhos realizados desde a década de 1990, assim como aprendizados acumulados ao longo dessa trajetória. Na visão de Mehedff, cada trailer deve ser entendido como um “cartão de visitas” do filme a que se refere ou ainda como a peça de venda de uma obra de arte. O objetivo de um trailer, segundo ele, é aguçar os sentidos dos espectadores e instigar sua curiosidade, mostrando o que o cineasta chama de “alma do filme”.

Antes de falar sobre o próprio caminho profissional, o convidado ofereceu ao público uma breve historiografia dos trailers cinematográficos, cuja origem remonta à Hollywood dos anos 1930. Foi naquele contexto que os primeiros cinemas passaram a anunciar, ainda após os filmes em cartaz, os próximos longa-metragens a serem exibidos, tendo como principal objetivo fazer com que os espectadores retornassem às salas de exibição.

O cineasta destaca que os primeiros trailers eram produzidos sem diálogos ou imagens dos filmes. Criadas artesanalmente, as peças audiovisuais frequentemente recorriam ao uso de cartelas de texto que entram e saem da tela, trazendo elogios e palavras-chave relacionadas a cada obra.

Para ilustrar as transformações dos trailers ao longo do tempo, Mehedff exibiu algumas peças produzidas entre as décadas de 1930 e 1980, chamando atenção à gradativa inserção de letterings, cenas e áudios dos filmes e também elementos de locução, que ganharam muita importância na década de 1970. A partir dos anos 1960, segundo ele, muitos estúdios passaram ainda a produzir cenas e montagens específicas para os trailers – e foi também nesse contexto que os trailers começaram a ser exibidos no cinema antes do filme principal, conforme acontece nos dias de hoje.

Primeiros passos

Nascido em uma família brasileira que vivia nos Estados Unidos, Ricardo Mehedff ressalta a importância de ter iniciado a própria carreira como assistente e estagiário em um grande estúdio de televisão, produzido numerosas chamadas para filmes e séries e, mais adiante, trailers para cinema. Desde aquela época, ele conta ter se acostumado a trabalhar sempre em duplas formadas por um montador e um roteirista.

Mehedff conta que, após receber um filme, o primeiro passo é assisti-lo muitas vezes, selecionando diálogos, imagens e também elementos sonoros que possam ser utilizados no trailer. Além de trazer esses elementos dos próprios filmes, muitas peças contemporâneas incluem narrações específicas, assim como incorporam trechos de críticas e prêmios recebidos.

Como forma de ilustrar esse primeiro período de trabalho, o cineasta exibiu alguns trailers para cinema produzidos nos anos 1990. Na peça criada para “Los Angeles – Cidade Proibida” (1997), por exemplo, ele destaca a locução bastante provocativa, a incorporação de diálogos do filme e a construção de uma breve narrativa capaz de apresentar os principais personagens, criar diferentes climas e atravessar algumas “viradas” importantes para a trama.

O convidado também trouxe alguns exemplos relacionados ao cinema de animação, fazendo referência ao trailer criado para o filme “Pokemon” (1998), no qual se propõe um diálogo com a tradição do cinema e a linguagem dos videoclipes, e também para o longa “A Lenda de Camelot” (1998), que atravessa climas tão distintos quanto comédia, magia, ação e suspense.

Ricardo Mehedff falou ainda sobre a grande importância do uso de trilhas e efeitos sonoros, abrindo-se à possibilidade de propor recombinações entre esses elementos, em montagens que se diferem dos filmes e criam resultados exclusivos para os trailers, de acordo com seus objetivos específicos.

Diálogos com o cinema brasileiro

O convidado lembra que ao se mudar para ao Brasil, em 1999, encontrou um contexto cinematográfico marcado por trailers amadores, que em sua visão não transpareciam um pensamento profissional. Percebendo essa lacuna, montou uma produtora especializada em trailers que funcionou até 2007, produzindo centenas de peças de divulgação para filmes que marcaram a retomada do cinema nacional.

Ao exibir o trailer de “Abril Despedaçado” (2001), Mehedff destacou a escolha de uma mesma cena como fio condutor da peça. Sobre a peça criada a partir do filme “Madame Satã” (2002), ressaltou o destaque atribuído às personagens do filme, apoiando-se em sua força e excentricidade. Para o longa “Dois Filhos de Francisco” (2005), por outro lado, o cineasta optou por uma estrutura clássica, trazendo viradas marcantes e atribuindo à música um papel central.

O cineasta compartilhou ainda a experiência de criação do trailer do filme “Cidade de Deus” (2002), destacando as diferentes versões criadas para os públicos do Brasil, dos Estados Unidos, do Japão e da França. Após exibir as quatro versões e apontar suas visíveis diferenças, Mehedff deixou evidente a existência de variados caminhos para a criação de um trailer, tendo em vista seus múltiplos contextos de divulgação. 

Ao analisar o contexto contemporâneo, chamou atenção para o desdobramento dos antigos trailers em outras peças semelhantes, tais quais os trailers para televisão, normalmente mais curtos, e os trailers para internet, cuja duração pode superar os dois minutos recomendados para os trailers de cinema, por vezes alcançando milhões de visualizações.

O convidado falou ainda sobre os teasers, peças geralmente criadas um ano antes do lançamento, quando muitas vezes ainda não há imagens dos filmes. Com duração média de um minuto, tais peças privilegiam conceitos e ideias, em vez de detalhes sobre a narrativa. 
Quando questionado sobre as principais virtudes necessárias a um profissional de edição, ele destacou o domínio das técnicas, que abre múltiplas possibilidades de experimentação, assim como a capacidade analítica e a atenção aos detalhes. 

“Não existe uma única forma de fazer trailers, existem várias”, sintetizou Mehedff, ao final de um encontro marcado por um diálogo franco entre a trajetória do convidado e e uma ampla gama de questões trazidas pelos participantes.