Passados oito meses desde o grave incêndio que atingiu o Museu Nacional, causando danos irreparáveis ao acervo da instituição e também à memória do país, o Laboratório de Crítica trouxe ao público do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação algumas questões que ajudam a pensar sobre o acontecido. “O que é um museu? O que resta quando museus são destruídos? Qual é o papel de um museu hoje? Há futuro para os museus brasileiros?”. Para esta edição, realizada em maio de 2019, o convidado foi Leno Veras, comunicólogo, pesquisador e professor dos campos curatorial e editorial com foco na abordagem educativa.

O curso serviu como espaço propício ao desdobramento de reflexões propostas pela exposição “Arqueologia do Resgate: Museu Nacional Vive”, que esteve em cartaz no CCBB RJ entre março e abril. Reunindo mais de 100 peças resgatadas, a mostra ressaltou a importância de uma instituição com mais de dois séculos de existência e amplo reconhecimento internacional. Ocorrido em setembro de 2018, o incêndio atingiu mais de 70% das 20 milhões de peças do museu. Na visão de Leno Veras, entretanto, “a catástrofe pode servir como um instrumento de reposicionamento para a instituição científica mais antiga do país”.

Tomando como referência aspectos relacionados à própria pesquisa de doutorado na UFRJ, mesma instituição à qual historicamente se vincula o museu, Veras associa a discussão empreendida no laboratório à própria sobrevivência do campo museal. “A única forma de sobreviver diante dessa ruína é justamente repensando a articulação política, a mediação, a educação e os processos de comunicação pública do patrimônio. No caso específico do museu, é preciso fazer compreender, por exemplo, que acervo não é o que pegou fogo, e que a curadoria não fala do que existia no passado. Com isso, a gente chega ao que o museu é hoje, inclusive como potência”, defende o pesquisador, atualmente envolvido na concepção de um seminário para a efeméride de um ano do incêndio.

Diante de um grupo formado por educadores e professores dos campos artístico, histórico e museal, o pesquisador tomou como ponto de partida da atividade a exibição comentada de peças representativas dos diversos departamentos do Museu Nacional: desde biodiversidade até paleontologia, passando por objetos etnográficos e arqueológicos. Entre tais objetos, algumas esculturas marajoaras e relíquias do Antigo Egito, além de amplas coleções de conchas e besouros: todos completamente perdidos no incêndio de 2018, porém ainda acessíveis por meio de imagens digitalizadas e apresentadas ao público.

“É muito importante pensar sobre a digitalização do patrimônio, e considerar a comunicação em rede como uma das abordagens do museu. Em geral, pensamos em museus sempre a partir de sua arquitetura física, mas, hoje em dia, cada vez mais as instituições vem se entendendo também como dispositivos em rede. Quando isso acontece [o incêndio], a gente até perde um objeto, mas nunca a capacidade desse objeto como informacional. No processo de resgate do acervo, estamos entendendo que cada objeto, na verdade, é a história de si, os dados de pesquisa que foram levantados a partir dele, e até mesmo o que aconteceu com ele no incêndio”, pondera o pesquisador.

Museu como dispositivo em rede

Ao longo do laboratório, Leno Veras falou aos participantes sobre as múltiplas atividades atualmente em curso dentro do Museu Nacional, refutando a imagem de uma instituição esquecida e abandonada. Segundo ele, a dinâmica é tamanha que, usando apenas itens resgatados após a abertura de “Arqueologia do Resgate: Museu Nacional Vive”, já seria possível fazer uma outra exposição com o dobro de peças. “O prédio pegou fogo, mas os 1800 cientistas que trabalham lá dentro continuam trabalhando. O museu continua firme e forte, porque ele sempre foi uma estrutura de recursos humanos de alta competência”, destaca.

O pesquisador ressaltou também que outras dimensões do funcionamento da instituição, tais quais o horto, a biblioteca e até mesmo a recreação em seus jardins e áreas externas, permanecem a pleno vapor. “A Quinta da Boa Vista é sabidamente um lugar de lazer, entretenimento, informação e cultura para muitas camadas da população carioca, e isso tudo sobreviveu. Quando se fala que o Museu Nacional morreu, ou que a tragédia destruiu tudo, eu vejo que isso não é justo com a dimensão do trabalho que continua acontecendo”.

Como forma de estimular este trabalho, disse ele, a instituição tem recebido variados tipos de apoios e parcerias vindas de instituições científicas e culturais, assim como organizações não governamentais nacionais e estrangeiras. “Somente da Alemanha, temos anúncio sobre um apoio considerável, e a questão passa a ser como vamos usar esse dinheiro. Se o objeto deixa de ser somente a própria materialidade, o museu precisa se repensar a partir disso”, desafia.

Momento de abertura e escuta

Indicando possíveis caminhos rumo a um futuro desejado, Leno Veras reforça a percepção da catástrofe como uma oportunidade de se alcançar novos entendimentos para a museologia dos nossos tempos, afastando-os da lógica colecionista que regia as instituições criadas ainda nos séculos XVI e XVII. “É preciso deixar de lado a sistematização de museu enquanto um ‘gabinete de curiosidades’, e abraçar a comunicação em rede, que nos possibilita pensar de maneira horizontal a difusão de informações. A partir daí, o museu não é apenas um falador, mas se torna também um escutador”.

Convidadas a participar o Laboratório de Crítica, as educadoras Sheila Villas Boas e Andréa Costa, vinculadas à Seção de Assistência ao Ensino (SAE) do próprio Museu Nacional, ressaltaram que cabe também ao público enxergar com outros olhos os museus e instituições culturais. “A gente tenta deixar claro que os visitantes estão autorizados a se expressar sobre o que vêem, mas ainda tem muita gente que chega querendo que a gente diga tudo. Eu acho que a maior diferença é que, agora, estamos finalmente ‘fazendo com’ – e não mais ‘fazendo para’. Esse é o momento de colaborar e de fazer juntos”, atestou Andréa, citando o Clube do Jovem Cientista como exemplo de ação participativa realizada pelo museu.

Na visão de Karla Koehler, professora de artes que também participou do curso, o acidente de fato gerou uma oportunidade de aproximação entre o público e o museu, tornando mais permeável a imponente estrutura da instituição. “É como se você dissecasse aquela arquitetura, ela se torna mais frágil, e a partir daí as pessoas se sentem confortáveis, se sentem próximas o suficiente para ocupar esse lugar e querer falar sobre ele. Não que essa vontade não existisse antes, mas talvez, agora, a distância tenha se reduzido”.

Encontrando ampla ressonância entre os participantes, o pesquisador Leno Veras concluiu o encontro com uma sutil referência crítica à origem da palavra “patrimônio”. “Se antes os museus eram ensimesmados, tratavam os seus ‘patrimônios’ segundo os parâmetros do ‘paternalismo’ e do ‘patriarcado’, hoje a gente sabe que as relações precisam se dar a partir de múltiplas frentes, com a educação cada vez mais tomando seu espaço devido”. Segundo o pesquisador, um dos grandes questionamentos que atualmente se impõe à museologia refere-se justamente ao desafio de pensar o acervo sem esconder nem guardar. “Salvar de quem? Das pessoas? Para quê, então?”, questiona.