A visão crítica pode ser entendida como uma forma propositiva de olhar para o mundo. É a capacidade de, partindo de um objeto ou situação específicos, discutir questões pertinentes a contextos múltiplos, de usar esse objeto como uma chave para a leitura e análise desses contextos. A atividade crítica é, então, algo que necessariamente passa pela esfera do pessoal, pois é por meio do que sabemos e das experiências acumuladas que conseguimos criar formas de interpretar aquilo com o que nos deparamos. O primeiro Laboratório de Crítica
realizado em Belo Horizonte também foi assim: convidada a ministrar a atividade, a pesquisadora, curadora e crítica Renata Marquez apresentou, a partir de sua trajetória por diferentes modos de escrita, alguns aspectos a serem considerados quando levamos em conta esse exercício.

O contato com o modo acadêmico de exercer e pensar a crítica tem sido acompanhado por modos outros em toda sua prática; a curadoria, a publicação e a performance são alguns exemplos. Em sua visão, a universidade congela o pensamento crítico em um formato estritamente acadêmico e muitas vezes também científico, um modelo limitado de reflexão sobre quaisquer que sejam os assuntos. Uma tentativa de desafiar essa configuração foi a pesquisa de mestrado realizada na Escola de Arquitetura da UFMG, na qual Renata investigou formas de aprender sobre a cidade por meio de experiências urbanas estéticas, discutindo o mundo a partir de obras de arte: ali, os trabalhos realizados por artistas se transformam em chaves de leitura desse mundo. “Cidades em instalação – Arte contemporânea no espaço urbano” formula um modo de pensar a arte-ciência: a arte é utilizada como forma de produção de conhecimento espacial.

Desse mesmo modo deve-se pensar a crítica: um deslocamento entre diferentes saberes e áreas, um lugar situado entre fronteiras, no qual é possível estabelecer conexões imprevistas, relacionando variados aspectos e acontecimentos. Em posição de questionamento cabe a ousadia, podemos apresentar às obras de arte perguntas difíceis: o que esta obra traz do mundo? As respostas virão a partir das perguntas que fizermos.

Mas como fazer perguntas?

No ano 2.000, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos levou seus alunos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas à Mostra do Descobrimento, exposição comemorativa dos 500 anos do Brasil que aconteceu no complexo do Ibirapuera, em São Paulo. Ao observar o comportamento dos estudantes diante de imagens produzidas especialmente a partir da década de 1920, Laymert entende que eles não estavam preparados para a complexidade da experiência contemporânea: não conseguiam ler e interpretar a produção que se concentrava em problematizar essa experiência e, desse modo, também não eram capazes de “formular algo a respeito de sua especificidade”.

Essa visita serviu como base para algumas reflexões que Laymert propõe no texto “Educação Desculturalizada”, resultante de uma palestra proferida em 2004 no Instituto Goethe São Paulo, no qual o autor identifica e analisa o distanciamento existente, atualmente, entre a universidade e a cultura. A formação científica parece considerar possível a produção de conhecimento sem o entendimento da cultura; uma produção puramente técnica. Desse modo, a universidade se apresenta, muitas vezes, como um espaço que oferece a seus alunos apenas a possibilidade de superespecialização em uma única área do saber. Uma formação composta mais por binários que por nuances e possibilidades; uma formação que não se subjetiviza.

A superespecialização traz a dificuldade de entender e analisar contextos mais amplos, especialmente aqueles permeados por temporalidades diversas, como é o caso do Brasil. Para Laymert, a infantilização da sensibilidade e da percepção de seus alunos não os permitia estabelecer relações entre as criações artísticas e a sociedade que as havia suscitado. Mas como fazer, então, uma leitura crítica dos objetos e acontecimentos com os quais nos defrontamos em nossa experiência do cotidiano?

O exercício da crítica parte justamente do descondicionamento do olhar. A crítica quer saber do não-dito, quer propor questões ao invés de procurar respostas – binárias – prontas e confortáveis. Nesse sentido, Renata considera que a transdisciplinaridade pode apontar um caminho para a formulação de questões: é o deslocamento dos lugares comuns que provoca e ajuda a formular as questões em nossa cabeça. Modos de ver que se complementam – e que, ao entrar em contato, mostram lacunas existentes em outros. E aí entra o deslocamento entre disciplinas, a abolição de fronteiras preestabelecidas burocraticamente nos lugares de ensino: considerar o espaço como uma produção coletiva, da qual todos os cidadãos são agentes, tem como consequência o entendimento de que todos estão pensando sua produção, todos são aptos a refletir sobre ela.

As perguntas como guias para a prática

Como transformar um assunto específico ou um contexto local em pretexto para discussão de assuntos de maior interesse e abrangência mais ampla? Entre 2011 e 2012, como curadora do Museu de Arte da Pampulha (MAP), Renata procurou tensionar sua espacialidade com atividades que a utilizariam como uma camada extra de informação para a leitura dos trabalhos. Desse modo, ao invés de formular propostas a partir de experiências individuais de alguns artistas, decidiu fazê-lo através de perguntas; esse é o caso das três exposições que integraram o projeto Arte Contemporânea no MAP 2011. “Conjs., re-bancos*: exercícios&conversas”, de Ricardo Basbaum, “Lição de coisas”, de Nydia Negromonte e “Outros lugares”, de Ines Linke & Louise Ganz e Mônica Nador, foram três exercícios de deslocamento do espaço museográfico convencional. Naquele período, o MAP se transformou em museu-laboratório, museu-sistema-doméstico, museu campestre, entre outras tantas configurações instantâneas e inesperadas organizadas efemeramente por seus visitantes.

Pensar a arte como meio de produção de conhecimento sobre o mundo torna interessante a ideia de inserir o público nos processos que levaram as coisas a se desenvolverem até o ponto onde estão quando se inaugura a exposição. O conjunto de exposições no MAP desafiou os modos convencionais de execução em todo seu processo: a institucionalização da crítica de arte torna necessária a produção de textos curatoriais, o que foi substituído, nos volantes, por fragmentos de uma conversa entre a curadora e os artistas. O compartilhamento dos processos vividos durante a criação e a montagem da exposição é um modo de trazer ao público as discussões propostas pelas obras apresentadas. Também assim foi pensado o registro impresso; a produção de um livro sobre cada uma das três exposições gera a possibilidade interessante de não esgotar a exposição em si mesma, o livro contém partes da exposição mas também tem espaço para outros conteúdos com os quais ela dialoga.

“Uso a arte porque é o meu instrumento de ação”, diz Mônica Nador na conversa com Renata. A ideia de usar a arte como instrumento para se pensar outros mundos possíveis, ou ainda como exposições-processos que inserem os visitantes no museu de modo a se relacionar com o que está acontecendo, traz a ele e seu educativo um importante desafio: a formação do público que o visita. A exposição é uma narrativa possível sobre nosso próprio mundo; lugar de conhecimento que nos possibilita acessar uma chave de leitura para aquilo que nos rodeia. “Espero por um visitante curioso”, como Ricardo Basbaum escreveu uma vez.