Se a crítica de arte, de certa maneira, pode ser uma ferramenta de acesso aos diversos territórios que uma experiência artística pode ocupar em nossas vidas, de que maneira a escrita criativa pode nos ajudar a revelar a dimensão subjetiva dos textos de crítica de arte?   

Ao longo do Laboratório de Crítica “Crítica de teatro, Escrita criativa”, realizado em abril de 2021, a crítica, curadora e pesquisadora Daniele Ávila Small, fundadora da revista virtual Questão de Crítica (2008), nos revelou algumas formas de tatear a criação de um texto. O encontro foi um convite para refletirmos sobre como um texto pode deixar marcas – seja em quem o escreve, em que o lê ou até mesmo na história.

Em contraponto às formas de escrever crítica de teatro que estavam em circulação nos jornais e nos textos acadêmicos no contexto do surgimento da revista Questão de Crítica, a convidada conta que sua proposta era experimentar outras possibilidades da escrita crítica. Tais possibilidades, segundo ela, propunham rever as práticas muitas vezes reguladoras dos textos produzidos até então, ou ainda, nas palavras de Daniele, superar uma produção crítica caracterizada por “ideias fixas de qualidade e valores universais, repleta de jargões incompreensíveis ao público e de um texto repleto de citações como medalhas de validação”. A partir de suas reflexões, parece ser possível imaginar o surgimento de uma crítica em que se permite errar. 

Propondo-se a repensar as estruturas até então vigentes e predominantes, ela nos deixa muito evidente que é preciso falar de deformação: “a crítica pode nos ajudar a desenquadrar”, defende. O desejo de questionar a linguagem utilizada na construção dos textos em circulação nos sistemas institucionais da crítica, onde por vezes encontrava enquadramentos desconexos com a diversidade de produções contemporâneas de teatro, serviu como um estímulo para que a convidada iniciasse um movimento interessado em propor diferentes modos de escrita, a partir de um processo de se “auto-autorizar a escrever” – e também de muito trabalho.

Aquele que escreve se lança no texto

Se o artista e o cientista se aproximam de um material, objeto ou contexto pela curiosidade em testar, experimentar, criar hipóteses e aplicá-las na prática, a escrita do artista pode ser o gesto crítico de olhar para um trajeto percorrido. Para Daniele, sua escrita é parte indissociável do seu projeto artístico. “Escrevendo crítica, eu vou tecendo o que eu penso de teatro. Entendo melhor o funcionamento dessa prática, além de propiciar o embate com outras obras”, exemplifica. Desta maneira, o gesto de escrever crítica de teatro para pensar o teatro pode ser uma forma de imaginar diferentes dimensões de produzir e olhar criticamente para as coisas, uma forma de rever o que foi produzido e ir muito mais além, constituindo uma crítica em constante movimento.

Em uma análise crítica da peça “12 pessoas com raiva” (2021), do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, Daniele esmiúça, traduz e revive um texto publicado por ela mesma sobre a peça em questão. Nessa experiência de retomar o texto publicado e dissecá-lo diante de uma câmera e possíveis espectadores, ela faz com que o texto crítico renasça e pulse de outras maneiras. 

Como ela diz ao longo do vídeo, o exercício de revisitar faz com que se “olhe para ver como estava olhando”, permitindo ainda que nos coloquemos em estado de dúvida e assumamos uma atenção especial aos nossos próprios processos críticos e criativos. Nesse caso específico, o exercício de revisitar o que foi escrito trouxe a ela mudanças de perspectiva sobre o que é a prática da crítica, o que é o próprio teatro e, de certa maneira, sobre o seu próprio modo de olhar para as coisas.

Uma floresta de signos

Se o gênero do ensaio pode ser tido como um modo tateante de experimentar o texto crítico, uma vez que no caminho ensaístico não conhecemos de antemão o marco final do texto, Daniele nos demonstra que ensaiar-se é também uma busca de si, um processo que supõe formar o texto para desenformar depois, imaginando outras formas possíveis de escrever e de rever o que foi escrito.

Ao comentar seu livro “O Crítico Ignorante”, que parte de uma analogia à obra “O mestre ignorante” do filósofo francês Jacques Rancière, Daniele defende que “o mestre é ignorante pois é capaz de abrir mão do seu repertório e falar de igual para igual, ignorando distâncias entre crítico, espectador, artista”. Diferente dos textos críticos onde supostamente prevalece a objetividade e a neutralidade, o ensaio reverbera em uma dimensão subjetiva de autores e autoras, incorporando de diferentes maneiras as impressões digitais da pessoa que escreve. 

Numa floresta densa de signos, temos que aprender a jogar cuidadosamente com nossos próprios repertórios e neste cenário, a convidada pontua que “às vezes nosso repertório precisa sair de cena”. Nesse sentido, refletir sobre nossas próprias referências, a partir de um exercício crítico, é algo bem diferente de invocar uma posição de poder sobre o outro. 

Daniele se refere a cada experiência artística como uma floresta de sentidos e de repertórios, na qual o estado da dúvida nos ensina a desarmar nossos saberes para prosseguir “tateando” o texto e também os seus contextos. E a arte, assim como a prática do texto crítico, podem nos ensinar a rever como comunicamos a própria história, no nosso momento presente. 

Críticas que inspiram outros encontros

Na busca pela história da crítica, por outro lado, é inevitável nos depararmos com textos críticos supostamente imparciais, com parâmetros de neutralidade da escrita que podem ser compreendidos como uma constância do gesto colonial dentro de uma perspectiva contemporânea. Num contexto em que a impressão e o gesto de quem inscreve e escreve o texto é de infinita importância, tal qual os tempos que vivemos hoje, seria preciso, por outro lado, estarmos atentos aos caminhos de “armadilhas históricas” que proclamam medidas universais sobre o texto e defendem o poder do saber sobre o valor da experiência.

Se nenhuma experiência é universal e ninguém pode falar em nome de alguém, o exercício da crítica, nas diversas esferas em que pode ocorrer, é uma potente estratégia para nos aproximarmos de uma obra e da nossa própria experiência com ela. E essa relação, decerto, não se faz num simples passe de mágica: existe ali um encontro processual ou, como diz Daniele, em uma bem-humorada analogia à fugacidade dos afetos contemporâneos: “fazer crítica não é namorar no Tinder e dar match de cara”. Pelo contrário: para atualizar e atribuir novos valores à prática crítica, é necessário conquistar e revisitar seus espaços de circulação, entendendo que a escrita criativa – por vezes ensaística – pode colocar em jogo a estrutura dos textos críticos. Retomando a analogia: o encontro tende a ser demorado, mas pode valer o match.