O que foi o movimento Tropicalista e como ele influenciou – e até revolucionou – a música brasileira? Que história as músicas e os discos nos contam? Convidado a conduzir o Laboratório de Crítica de maio de 2021, o pesquisador Paulo Sakae Tahira, ou DJ Paulão, nos preparou um passeio pelos vinis de sua coleção, trazendo como trilha sonora uma série de canções lançadas por artistas que viviam ou se relacionavam com esse importante movimento cultural. Como ele mesmo pontuou, um disco pode ter o mesmo valor de narrativa que um livro, e, nesse sentido, Paulão é certamente um grande leitor e contador de histórias.

Além de apresentar alguns dos discos que sintetizam o movimento, DJ Paulão nos chama a pensar o Tropicalismo para além da música, defendendo-o como manifestação política e estética. Ao longo do encontro, a música complementa a fala, e as capas dos discos selecionados ilustram esse cenário, criando uma ambientação que inclui variados elementos da estética que estava em jogo naquele momento. Embalado por importantes versos de Caetano Veloso, tais como “Eu vou, por quê não?”, o pesquisador nos oferece um convite à ousadia e subversão de padrões. Ao longo deste texto, trago apenas alguns exemplos das muitas ideias trazidas e trocadas com Paulão durante a atividade, em meio à verdadeira Caixa de Pandora que são a sua coleção de discos e o amplo seu repertório sobre o assunto.

Lindonéia e outras histórias

Paulão nos conta, por exemplo, que “A Bela Lindonéia” (1966), trabalho do artista carioca Rubens Gerchman, foi a inspiração para a conhecida canção de mesmo nome. Segundo o convidado, Nara Leão se deparou com a obra no ateliê do artista e imediatamente quis comprá-la. Porém, por razões pessoais de Gerchman, o trabalho não estava à venda. Mais adiante, durante uma conversa em que Nara descrevia a obra a Caetano Veloso, surgiu a letra que mais tarde seria musicada por Gilberto Gil e cantada pela própria Nara Leão – que encontrou por meio da música uma maneira de possuir a tão desejada obra.

O retrato de Gerchman é uma gravura de traços simples feita sobre uma superfície de moldura espelhada, onde vemos Lindonéia com um aparente hematoma no rosto. Simulando a capa de um jornal precário, a gravura traz uma manchete que anuncia a sua morte: “Um amor impossível”. Lindonéia, então anônima, agora é notícia entre “as paradas de sucesso” e “na fotografia” – “do outro lado da vida”.

Incluída no primeiro álbum solo de Caetano Veloso, a emblemática música “Alegria, Alegria” é outra canção que pode soar despretensiosa quando comparada às intenções da canção “Tropicália”, outro marco em sua carreira. Paulão associa a primeira música à experiência que o cantor vivia naquele contexto: o impulso criador de se jogar e se arriscar, como fica evidente no tal verso “Eu vou, por quê não?”. Naquele momento, explica o convidado, acontecia a mudança de Caetano para o contexto do eixo Rio-São Paulo, onde aconteceria a maturação de seu trabalho. Já na segunda canção, Caetano já havia entendido, se imposto e se apropriado desse novo contexto de vida: agora ele estava “organizando o movimento, orientando o Carnaval”.

Álbuns e narrativas

Ao contar histórias relacionadas à música brasileira, DJ Paulão compartilha também uma reflexão a partir do clássico álbum “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” (1967), dos Beatles. Ele destaca que o emblemático vinil da banda inglesa contava uma história contínua, enquanto, hoje, o que vemos com mais frequência são álbuns com canções independentes, sem que haja uma articulação narrativa entre elas.

Ao refletir sobre o contexto nacional, Paulão destaca que os discos “Tropicália” (1968) e “Clube da Esquina” (1972) são bons exemplos desse tipo de articulação narrativa. Por um lado, ele entende que Caetano, ao pensar na concepção de “Tropicália”, era um artífice de algo muito intencional, enquanto o álbum “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges, traduzia uma vontade mais casual, baseada na amizade e na criatividade. Paulão considera “Clube da Esquina” como o “Sgt Peppers da música brasileira” justamente pela totalidade da obra: “Ela te pega pela mão e te conduz por um caminho onde é difícil parar no meio – a não ser para virar o lado do disco e dar continuidade”.

Encerrado como uma grande celebração à música e às histórias que ela é capaz de contar, este Laboratório de Crítica pode nos fazer lembrar ainda de um trecho da música “Rubber Ring”, lançada pela banda inglesa The Smiths no álbum “The Queen is Dead” (1986): “Mas não se esqueça das músicas / Que fizeram você chorar / E das músicas que salvaram a sua vida / Sim, você está mais velho agora / E você é um porco esperto / Mas elas foram as únicas coisas / Que sempre estiveram ao seu lado”. Configurando-se, ao mesmo tempo, como uma discotecagem sem sair de casa e um passeio temático por uma vasta coleção de vinis, o encontro com DJ Paulão se tornou ainda um convite para pensarmos que histórias os discos e as músicas que ouvimos contam sobre os nossos tempos e também sobre nós mesmos. Que trilha sonora é essa que embala a sua vida?