O cotidiano de trabalho como arte-educadora muitas vezes faz com que eu não reflita sobre o lugar dessa profissão, tampouco o momento histórico em que nosso trabalho foi associado ao que hoje chamamos de mediação. Muita história aconteceu, entretanto, até chegarmos nessa nomenclatura. A luta pela educação não-formal enquanto uma prática que preza por relações dialógicas e amplia a noção de conteúdo, assim como a inclusão de profissionais cujas formações não necessariamente estão ligadas às artes visuais, foram conquistas e transformações que permitiram a renovação das práticas de educação em museus e centros culturais, acompanhando ainda, em certo sentido, a própria transformação das gerações de arte-educadores.

Escolher os nomes que atribuímos a essa atividade profissional, bem como reconhecer a história dessa área de conhecimento e prática, são atitudes que nos possibilitam lançar novas perspectivas de atuação enquanto educadores ou mediadores culturais. Atitudes que nos permitem, inclusive, compreender em que sentidos as nomenclaturas utilizadas nessa área de atuação dizem do nosso posicionamento em relação à profissão e dos nossos desejos sobre o desenvolvimento dessa caminhada. A esse respeito, partilhar um relato a partir do Laboratório de Crítica oferecido pela pesquisadora Valéria Alencar, em outubro de 2019, é um desafio de síntese. Ao fim da atividade, me vi bastante reflexiva sobre o que tenho vivido nessa trajetória. Qual o nosso papel nessa profissão?

O encontro foi muito potente, pois buscou questionar, ao mesmo tempo, quem é o mediador em uma instituição cultural e como se deu, historicamente, a construção dessa profissão. Tomando como referência sua pesquisa de doutorado, intitulada “Mediação cultural em museus e exposições de História: conversas sobre imagens/história e suas interpretações”, Valéria iniciou sua fala estabelecendo diferenças entre mediadores, guias e monitores – termos que constantemente são confundidos nessa área profissional.

A apresentação incluiu ainda slides com estatísticas e dados relacionados à profissão, revelando, por exemplo, que 78% das profissionais são mulheres. O predomínio das mulheres nessas ocupações surgiu como tópico da atividade a partir da fala de uma das pessoas do público. Se, normalmente, percebemos como avanço termos mais de 50% de mulheres em determinados campos de trabalho, no caso da educação essa presença majoritária estaria vinculada a algumas especificidades da área: de um lado, sua condição precarizada; de outro, a persistência de um pensamento que ainda associa as mulheres às funções sociais relacionadas ao cuidado com outros e outras – deixando ver que diversos imaginários relacionados ao gênero feminino se vêem presentes nesse dado.

Somos todxs educadorxs?

No âmbito da educação, foi mencionado como há entendimentos diversos sobre a noção de mediação. Para algumas pessoas, uma “visita palestrada”, recheada de conteúdos e informações prontas, seria o único recurso de processos formativos; para outras, esse não seria o centro da ideia do trabalho. Seja como for, pudemos entender que a percepção que educadores e visitantes têm sobre o que é a mediação reverbera na forma como se age na visita.

Valéria compartilhou com satisfação sua vivência como supervisora educativa na 32ª Bienal de São Paulo, realizada em 2016, destacando que a chamada para contratação dos profissionais que atuariam a exposição se deu, pela primeira vez, por meio da palavra “mediadores”. Em sua perspectiva, diferententemente do “educador”, o “mediador” é entendido como alguém que busca o diálogo, o conflito e a provocação de um olhar.

Ao pesquisar entre o mediadores, contudo, a atividade se mostrou também associada ao apaziguamento, assim como foi recorrente certa desqualificação de alguns visitantes sobre os eventuais questionamentos trazidos pela mediação. Ainda nessa discussão, Valéria afirmou que a ideia de “educador” parecia relacionada a concepções que supervalorizam os próprios saberes, em detrimento do conhecimento e das reflexões que o público poderia oferecer. Por quê o público não poderia ser educador também?


A noção de decolonialidade também foi pauta do encontro, ao passo que Valéria associou a hierarquização do conhecimento de professores e educadores em relação aos saberes de alunos – e visitantes – a um resquício da estrutura colonial. Ao ser questionada sobre as diferenças políticas entre os trabalhos de educadores e mediadores, Valéria reiterou a associação entre o termo educadores e o pressuposto de que o público não poderia educar, ressaltando novamente o conflito como elemento crucial no encontro com o público e entendendo a mediação, portanto, como uma atividade relacionada também à mediação de possíveis conflitos.

Valéria trouxe ainda mais alguns dados estatísticos para pensarmos as especificidades e os contextos de trabalho relacionados a educadores e mediadores. Descontinuidade, baixa remuneração e contratos temporários foram alguns dos indicadores apresentados, tendo como implicação o fato de que 71% desses profissionais mantêm outras atividades profissionais paralelamente à atuação em museus e centros culturais. Os dados revelaram também a alta frequência de contratos temporários e as reduzidas chances de encontrar estabilidade ao atuar como educador ou mediador, aspecto que por vezes leva à compreensão da atividade como uma espécie de “profissão fantasma”, assim como prejudica a criação de vínculos com o público numa instituição fixa.

O que a mediação diz da história?

No segundo momento do encontro, Valéria tratou mais diretamente de alguns temas abordados em sua tese de doutorado, tais quais a mediação cultural em museus e as exposições de história, assim como discussões de mediação sobre imagens históricas e suas interpretações.

A convidada nos lembra, por exemplo, que as formas como acessamos e lidamos com as imagens históricas muitas vezes nos fazem esquecer que a imagem não corresponde propriamente à coisa de que se trata, mas à representação de uma ideia que alguém quis transmitir sobre a coisa. Pudemos perceber ainda que o próprio espaço expositivo funciona como um mediador, pois as ideias presentes em cada obra constituinte do Museu Britânico – instituição analisada por Valéria em sua tese – também são mediadas pelos demais objetos que compõem os mesmos espaços.

A convidada tratou ainda do contexto sócio-histórico em que foram fundados os primeiros museus históricos do mundo. Ainda no século XIX, junto ao imperialismo europeu e sob os efeitos do Iluminismo, surge uma demanda de instrução de povos que deveriam se identificar com os recém-implementados estados-nações. Enquanto instituição pública, os museus têm um papel de formação equivalente ao da escola, pois vão alinhar as narrativas que todos os cidadãos de um mesmo estado devem compartilhar sobre a própria história. O papel inicial dos museus históricos está, portanto, relacionado à instrução e à construção do estado-nação.

Não obstante, a ideia da construção de museus históricos está, conforme o que discutimos nesse encontro, vinculada à demonstração de poder dos grandes impérios europeus a partir da exibição dos objetos apropriados durante os saques. Com base nesse estudo, a pesquisadora reiterou aos participantes do Laboratório de Crítica a percepção de que as imagens não são a história, mas representações dela.

Visitas dialógicas

Mais adiante, ao refletir a partir de entrevistas realizadas com mediadores culturais durante sua pesquisa, Valéria destacou que alguns deles percebiam diferentemente as ideias de conteúdo e informação, entendendo, a partir dessa diferença, que as reflexões compartilhadas entre mediadores e públicos podiam ser algo construído a cada visita e de forma conjunta. Por outro lado, outrxs mediadores associavam o próprio trabalho à ações de ampliação de discursos, assim como à criação de pontes para a transmissão de conhecimento. A partir desse entendimento mais amplo e diversificado sobre a profissão, como podemos, então, articular conteúdos, noções dialógicas e experiências de mundo diversas no contato com o outro?

Considerando sua própria experiência, a pesquisadora chamou atenção à singularidade do sistema educativo presente nas instituições culturais brasileiras, por frequentemente trazerem esse lugar da troca, assim como proposições de atividades prático-reflexivas e outras possibilidades de visões de mundo acerca das obras trazidas pelas exposições. Segundo ela, em muitos países europeus, por exemplo, o que é mais comum são “visitas guiadas”, que se diferem das nossas práticas por adotarem uma abordagem predominantemente conteudista.

Com essa colocação, a história colonial do Brasil foi questionada como um dos disparadores da mediação enquanto maneira de criar novas narrativas – e não necessariamente legitimar pontos de vista hegemônicos e homogeneizantes. A decolonialidade foi então apontada como um dos possíveis eixos de pesquisa da mediação cultural, culminando em visitas dialógicas e conteúdos expositivos vistos sob diferentes perspectivas, considerando múltiplas possibilidades de abertura e desdobramento.

O dissenso como ferramenta de mediação também foi um dos temas levantados ao longo do encontro. A esse respeito, Valéria trouxe como exemplo a obra “Árvore da Vida”, em que artistas moçambicanos do coletivo TAE levaram ao mesmo Museu Britânico um conjunto de esculturas criadas com armas. Tais armas, no entanto, haviam sido cedidas pela população do país durante uma campanha de desarmamento iniciada após o longo e violento processo de independência e luta anti-colonial. Com essa atitude, na visão da convidada, o coletivo de artistas provoca uma quebra dentro de um espaço expositivo cuja história oficial se deu justamente a partir da violência, da colonização e do saqueamento de territórios não europeus. Mas como poderíamos, por outro lado, provocar dissensos a partir de exposições e trabalhos artísticos que não os têm como proposta?

Mediar, portanto, não é apenas contar sobre algo que esteja disponível em determinados espaços, mas também conhecer a nós mesmos enquanto partes de uma experiência que nos perpassa e consequentemente chega até o outro. Faz-se necessário, então, que nos apropriemos de diversas formas de mediação, sejam elas educacionais, culturais, sociais ou políticas. Somos, fundamentalmente, corpos presentes no espaço expositivo, e podemos propor muitos experimentos e experiências, tendo em vista nossos múltiplos caminhos de estudo e pesquisa, assim como a disposição para uma formação contínua que não desconsidera limitações, reflexões, diálogos, questionamentos e conflitos também constituintes do processo mediador.