Este texto começa com um convite para que você faça um breve retrospecto pessoal sobre os filmes que já viu. Dentre esses, quais são brasileiros? Ou quais deles têm o Brasil como cenário? Considerando esse acervo de filmes vistos, é possível pensar nas imagens construídas sobre nós? É possível pensar sobre quem as produz ou produziu? E caberia perguntar ainda: essas imagens dão conta da diversidade de pensamentos e matizes presentes em nosso território?

Ao nos propormos a esse exercício, é provável nos darmos conta de um panorama bastante restrito sobre a realidade brasileira, fazendo-nos perceber o apagamento das narrativas de quem foi e é oprimido. Apagamento esse que interdita a possibilidade de uma ecologia de saberes e nos impede, ao mesmo tempo, de fabular olhares outros sobre nós mesmos.

Na edição de janeiro de 2021 do Laboratório de Crítica, a crítica de cinema e curadora Mariana Souza nos levou ao encontro da história da diversidade no cinema brasileiro, destacando obras frequentemente ausentes nas rígidas narrativas oficiais – característica que, infelizmente, não é exclusiva à produção audiovisual.

Inserir na história essas outras narrativas, criando novas camadas para além dos considerados cânones, é um trabalho árduo da crítica de cinema contemporânea, que atualmente tem se preocupado em trazer novas perspectivas sobre realizações femininas, negras, indígenas e queer no audiovisual. A partir de uma fala pautada em estratégias de resistir ao esquecimento, Mariana nos apresenta um inventário de realizadoras e realizadores que falam de lugares não-hegemônicos. Quando vemos e ouvimos o que eles têm a dizer, que imagem de nós mesmos se descortinam?

Corpos genuínos

Mariana inicia a conversa nos apresentando a história de Adélia Sampaio, primeira cineasta negra brasileira a fazer um longa metragem. A belorizontina inaugura a temática homossexual em “Amor Maldito”, ao contar a história factual de amor entre duas mulheres, destruído pelo preconceito em meio a década de 1980. Filha de uma empregada doméstica, Adélia adentrou aos poucos em um segmento profissional branco e elitista. Atuou no Cinema Novo como telefonista, continuísta, maquiadora, câmera, montadora e produtora, iniciando sua trajetória após ter conhecido o cinema político de Sergei Eisenstein na capital carioca.

Saltando para a contemporaneidade, o próximo filme de uma cineasta negra é “O Caso do Homem Errado”, de 2017, em que Camila de Moraes remonta à trajetória do operário negro gaúcho Júlio César que, ao ser “confundido” com um assaltante, é brutalmente executado pela polícia, desdobrando-se em um crime sem justiça, semelhante a tantos outros que fazem parte do plano necropolítico e racista que marca nossa história social.

Apesar de separados por mais de 30 anos, os filmes citados são exemplos de narrativas que disputam espaço em um universo cinematográfico e midiático preso a estereótipos que frequentemente determinam corpos e papéis. A partir de diferentes estratégias, ambos os trabalhos buscam superar limites e inventar novas possibilidades de pensar cinema e sociedade.

Ficcionalizar para sobreviver

Na outra história do cinema brasileiro partilhada por Mariana, vemos um país que se volta para dentro e busca outras imagens para falar de si. Nesse recorte, epistemologias e cosmovisões afro ameríndias têm sido resgatadas por jovens cineastas que produzem imagens a partir de referenciais não-hegemônicos, interrompendo o abissal processo colonizador.

A convidada também se refere à videoinstalação “Pontes sobre Abismos”, em que a artista visual Aline Motta busca seu direito ao próprio arquivo familiar usando três telas paralelas – representações de Brasil, África e Europa. Ela reescreve a própria história e honra a memória de seus antepassados, trazendo a figura de sua avó negra – não reconhecida pelo pai branco – em grandes fotografias impressas que conduzem sua jornada poética. No tecido do tempo, a família de Aline é acompanhada pela mitologia do leopardo, um ser que fica amigo do fogo e por conta disso ganha marcas dolorosas em seu corpo, dando origem às suas pintas. Essa herança, fruto de um processo traumático, traz a experiência racial da artista, que se cura impregnando a imagem da avó e da mãe na terra, no vento e no mar.

Antropologia Reversa

A imersão prossegue na reinscrição das histórias marginais no cinema. Acompanhamos o documentário “Nova Iorque”, mais uma cidade, sobre Patrícia Ferreira Pará Yxapy, indígena guarani mbya e também cineasta. Ao longo do filme, ela caminha por acervos de ancestralidade ameríndia aprisionados no Museu Americano de História Natural, dando a ver objetos retirados de seus sentidos simbólicos e ritualísticos, roubados e oferecidos como troféus para entretenimento.

Patrícia busca, em sua trajetória, algo que chama de “terra sem mal”, um lugar onde parentes trocam sementes e saberes. Entretanto, ela circula por uma cidade-atração que tem a mesma interface que São Paulo ou qualquer outra grande cidade. Mais tarde, quando convidada a debater seu trabalho em um dos maiores festivais de cinema étnico do mundo, Patrícia foi recebida com intolerância ao dividir as dificuldades que enfrenta enquanto mulher indígena. A partir de projetos como o Vídeo nas Aldeias, do qual a cineasta é cria, o cinema tem tentado, nas últimas décadas, recuperar olhares nativos e alternativas do existir.

Em meio a uma doença que se dissemina mundialmente e evidencia todas as feridas abertas dos povos do sul do globo, o cinema que Mariana nos traz anseia por nossa escuta e nosso despertar. Ao assistir a esses filmes, é como se o nosso corpo se lembrasse de uma experiência do viver que é benéfica a todos os seres.

Tais obras apontam para conhecimentos ancestrais que vão da etnobotânica à sociologia: Nas imagens de “Jaçanã”, filme produzido por três mulheres em uma aldeia Pataxó no sul da Bahia, os matos são remédio e o mangue dá de comer. Nesta obra que encerra as referências compartilhadas por Mariana, crianças e idosos compartilham risos, fazeres, histórias e a ciência das pancs – plantas alternativas não convencionais. Em trabalhos como esse, o cultivo de um outro modo de viver resiste, mesmo no primeiro lugar onde os portugueses pisaram com sua lógica de desbravamento e escravização.