Em dezembro de 2019, o CCBB BH recebeu, em mais uma edição do Laboratório de Crítica, o educador e curador Lucas Mendes Menezes que propôs uma conversa sobre as relações entre fotografia de vanguarda brasileira e produção crítica. Não se tratava, entretanto, de uma simples reflexão sobre a relação natural entre essas esferas do mundo da arte: Lucas nos apresenta a contribuição de ambos os campos para a ampliação do que convencionalmente se chama de história da arte. 

O educador reflete também sobre a atuação do historiador/crítico/curador de arte, a partir dessas lacunas e de outras, revelando a potência de circunstâncias específicas sobre a produção artística. Lucas se refere a artistas que lidam com os paradigmas de seu tempo, ao mesmo tempo em que apontam para possibilidades que se revelariam com mais nitidez na posteridade. Os percursos traçados por uma produção considerada de vanguarda revelam, portanto, interesses, desejos, escolhas e recortes.

Conforme nos lembra a pesquisadora e curadora Júlia Rebouças, a partir do século XX a história da arte tem sido escrita pelas exposições e suas curadorias. Percebe-se, assim, a necessidade de investigar o trabalho de uma nova crítica e de um novo pensamento curatorial, agora interessados em visualidades ainda marginalizadas, ou que, por motivos diversos, não haviam, historicamente, atingido situações de protagonismos no discurso mainstream das artes visuais.

Ao tematizar a fotografia brasileira a partir do olhar de pesquisadores também brasileiros, Lucas desconstrói a ideia de arte fotográfica de vanguarda enquanto um corpus homogêneo e indiferenciado. Pelo contrário: o curador destaca a potência de uma diversidade de produções. Diante desse contexto, identifica processos curatoriais que supõem a recuperação da memória da produção fotográfica e suas correlações com as distintas narrativas produzidas pela fortuna crítica de períodos específicos.

A reflexão compartilhada se volta a como outras histórias da arte podem ser escritas, recuperadas e trazidas à superfície, assim como a formação de uma consciência crítica em relação aos interesses que atuam sobre a formação de acervos, que frequentemente consideram formas emergentes de visibilidade, mas também as tendências de mercado.

Fotografia moderna brasileira?

Ao longo do encontro, estamos falando sobretudo de uma produção que data das primeiras décadas do século XX. O que hoje chamamos de “fotografia moderna brasileira”, nos lembra Lucas, diz respeito muito mais a um olhar contemporâneo dirigido àquela produção do que a uma lógica interna, afeita ao que os artistas efetivamente apresentavam. Faz-se necessário, segundo o curador, “desconstruir a ilusão histórica de que existe um grupo de artistas com projeto definido”.

Lucas se refere, então, à relevância dos fotoclubes dentro de um contexto no qual o estatuto artístico da fotografia parecia já estar definido. Bastante comuns naquele contexto histórico, esses coletivos eram responsáveis por estabelecer um circuito de troca de imagens, tanto na produção amadora quanto na profissional. Atuando de forma cooperativa, os fotoclubes inscreviam os trabalhos dos artistas em uma variedade de salões ao redor do mundo, inserindo-os em contextos mais amplos e internacionais. A diversidade dessa produção passa a encontrar, então, ecos mais abrangentes. Exibidas lado a lado, imagens provenientes de países com destoantes realidades revelavam a potência da fotografia enquanto prática artística – e não meramente documental.

Na metade do século XX, com a consequente valorização da arte moderna e a abertura dos primeiros museus em São Paulo, ganha outra dimensão a produção brasileira considerada “de vanguarda” – ou simplesmente “moderna”. Como importantes fundamentos para a legitimação da fotografia enquanto prática artística no Brasil, Lucas cita a exposição de Thomaz Farkas, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em 1949, e a mostra de Geraldo de Barros no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1951.

Observando os trabalhos de ambos os artistas, podemos perceber a recorrência de alguns símbolos, o que Lucas chama de uma “sintaxe comum”. Apesar disso, também há estratégias distintas de apropriação: enquanto Farkas trabalha registros da construção de Brasília a partir de ângulos e composições que demonstravam uma preocupação com “ritmos mais cadentes e dinâmicos”, Geraldo de Barros aborda composições abstratas, nas quais o “caráter predominantemente construtivo” se destaca. O curador ressalta também a participação do Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo na segunda edição da Bienal em 1953: apesar de ter acontecido somente devido à desistência de algumas representações estrangeiras, a presença de fotógrafos foto clubistas naquela edição alcançou boa repercussão por parte da crítica.

Produção fotográfica e fortuna crítica brasileira: uma aproximação

Voltando-se ao contexto de Belo Horizonte, Lucas destaca a V Exposição Internacional de Arte Fotográfica, sediada no Museu de Arte da Pampulha e realizada em parceria com o Foto Clube Minas Gerais –fundado em 1951. O que Lucas relata, e que serve ainda para delinear os resultados desse tipo de investigação, é que sua pesquisa foi revelando “um circuito muito mais complexo do que o previsto, envolvendo dezenas de países e centenas de eventos anuais ao redor do mundo”. Para o curador, qualquer estudo sobre o circuito, a circulação de imagens e as ideias a respeito da fotografia como prática artística precisaria considerar, ao mesmo tempo, os contextos locais e globais que atuam sobre essa produção.

Ao realizar essa análise, Lucas considera a crescente presença de imagens produzidas por fotógrafos fotoclubistas em instituições do Brasil e do exterior. A esse respeito, destaca a exposição “Foto Clube Cine Bandeirante: do arquivo a rede”, curada por Rosangela Rennó, no MASP, em 2014: com o intuito de amplificar a força da fotografia enquanto imagem em circulação, a mostra exibia também os versos das fotos, onde era possível ver os caminhos e salões fotográficos percorridos por cada imagem.

O curador considera ainda o significativo trabalho da crítica brasileira no sentido de apontar, nessa geração de fotógrafos, as características que constituiriam a fotografia moderna brasileira como prática de vanguarda. Sobre esse último aspecto, Lucas apresenta uma interessante convergência entre as falas de alguns críticos de arte brasileiros sobre produções específicas. Sobre a produção de Geraldo de Barros, Mário Pedrosa percebia “imagens instantâneas, signos da vida e do espaço urbanístico”. Sobre as “Recriações” de José Oiticica Filho, Ferreira Gullar destaca o “uso dos meios fotográficos para liberar a energia estética que se encontra em potencial nas formas”. A partir desses exemplos, Lucas nos convida a pensar em um certo “caso brasileiro”, constituído, no contexto da fotografia moderna, entre a oportunidade do fato e autonomia da forma.

Ao longo do encontro, Lucas nos oferece um olhar sobre a produção de uma época, sem, no entanto, buscar ali o que já está legitimado e colocado dentro do bojo amplo – e muitas vezes pouco eloquente – da “vanguarda”. Ao construir um olhar complexo, que cruza os fenômenos artísticos, a crítica e os gestos curatoriais, o curador nos revela que as dinâmicas de compartilhamento e circulação, bem como as relações institucionais, são aspectos essenciais que evidenciam potências, especificidades e dimensões históricas que podem constituir o olhar sobre a fotografia artística. Aspirando à possibilidade de “debater a produção fotográfica artística brasileira no quadro da realização de uma grande exposição na cidade de Belo Horizonte”, Lucas Mendes Menezes nos convida a ampliar as discussões em torno do fotográfico, colocando em cena uma bem-vinda pluralidade de produções que não necessariamente fazem parte do repertório do grande público.