Convidado a ministrar a edição de agosto de 2018 do Laboratório no CCBB São Paulo, o jornalista e pesquisador Fabio Cypriano ofereceu o curso “Crítica de arte: alguns parâmetros”, ao longo do qual apresentou pontos importantes para a leitura crítica de exposições, além de uma visita à mostra 100 Anos de Athos Bulcão seguida da produção de textos críticos pelos participantes da oficina. Em linhas gerais, as reflexões que trouxe para o curso têm a ver com sua história: a história de alguém que aprendeu na prática. Foi após trabalhar muitos anos no jornal Folha de São Paulo, afinal, que Cypriano se tornou crítico de arte, e, em sua visão, o crítico é um profissional que pode – e deve – ter formações diversas. 

Após destacar ao público alguns pontos de sua trajetória profissional, que inclui experiências na política, na academia e no jornalismo, Fabio defendeu a escrita como uma forma de produção de conhecimento, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. “Escrevendo desenvolvemos nossos pensamentos, fazendo com que as ideias se tornem mais claras”, afirma, atribuindo à experiência na política o apuramento de sua visão crítica e, por outro lado, à inserção na academia, a condição de independência que muitas vezes faz falta ao campo da crítica. 
“Qualquer ação dos políticos merece crítica, e essa é a abordagem que adoto na crítica de arte. Muitos críticos costumam ponderar suas opiniões, entendendo as consequências que elas podem ter para os artistas. Existe um certo compadrio, que é compreensível, embora não seja o verdadeiro papel do crítico”, pondera.

Nos últimos anos, Fabio coordenou o curso de graduação em Crítica e Curadoria da PUC de São Paulo, onde participa de um grupo de pesquisa em Histórias das Exposições baseado na abordagem da Afterall, publicação londrina que pensa como (re)contá-las partindo do princípio de que as obras de arte acontecem no contato com o público – elas, por si só, não acontecem. Nessa perspectiva, se torna interessante considerar a narrativa da história das exposições, não pensando apenas nas obras em si, mas a partir do modo como o mundo experimentou essas obras.

Como exemplo disso, cita um episódio relacionado ao artista Nelson Leirner, que em 1966 criou uma obra intitulada “O Porco”, que consiste em um porco empalhado, disposto dentro de um engradado de madeira. Essa obra foi enviada ao 4º Salão de Arte Moderna de Brasília e, logo após sua aceitação, o artista questiona publicamente os critérios que levaram o júri a entendê-la enquanto arte. “O Porco” participou também de uma bienal na Bahia, evento que acabou submetido à censura por causa do mesmo trabalho. Para Fabio, a trajetória que a obra percorre, bem como as narrativas que suscita, também fazem parte dela, e, no fim das contas, por isso é tão importante contar a história das exposições.

As instituições artísticas e seus caminhos

O crítico e pesquisador falou ainda sobre a criação da Bienal de São Paulo, em 1950, entendendo-a como um momento importante para as artes no Brasil. São do mesmo período o MAM-SP e o MASP, ambos construídos por empresários, mas com finalidade de utilização pública. Em sua pesquisa de pós-doutorado, Cypriano se engajou em entender a submissão do desenvolvimento das artes no Brasil ao interesse de empresários vinculados a essas instituições. Em sua visão, muitas instituições acabam sendo utilizadas como um trampolim para a veiculação da imagem de seus patrocinadores, afastando-se da possibilidade de funcionar como efetivos campos de reflexão artística. 

Considerando que o circuito de arte contemporânea sempre foi muito elitista, Cypriano ressaltou a importância do processo de popularização  pelo qual o mesmo circuito vem passando. “Ao longo do tempo, algumas instituições começaram a criar espaços que não eram apenas museus, e a quantidade de visitantes passou a ser um dos critérios de validação dessas instituições. Desse modo, tornou-se necessária a criação exposições que gerassem interesse e efetivamente fossem visitadas, o que acabou criando um boom dentro do circuito”, observa.

Enquanto, há algumas décadas, o crítico de arte se estabelecia solitariamente no topo, como um grande chefe do circuito, atualmente ele deixou de ser essa figura para se misturar com as outras funções do sistema das artes. “Nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, se [o crítico] Clemente Greenberg dissesse que um artista era bom, esse artista estava feito. Sua voz era tão forte que muitos artistas optavam por assumir um papel combativo, uma vez que a mediação do crítico se tornou sufocante para eles”, relata o pesquisador. Nos dias de hoje, em sua visão, a voz do crítico já não é mais a única, e essa ampliação do campo tem efeitos positivos, já que diferentes profissionais tendem a usar diferentes instrumentos para produzir textos e emitir opiniões.

Na visão de Cypriano, a dissolução do papel do crítico acompanha a complexificação do próprio sistema de arte. “O circuito central é aquele que abrange grandes instituições, como a Bienal de São Paulo, a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, e é também a presença nesses lugares que valida, de fato, os artistas. Mas é importante pensar que existem vários agentes no circuito, e são todos eles que vão validar um trabalho de arte. A assinatura de um crítico não é mais suficiente”, resume.

Outras narrativas

Lembrando que muitos trabalhos inseridos neste circuito não foram criados para ser arte, o pesquisador cita a trajetória do brasileiro Arthur Bispo do Rosário. “Ele produziu seu trabalho para si mesmo. Queria entrar no céu, e seus objetos foram parte disso. Mas ele entrou também no sistema da arte, porque esse sistema é tão poroso que os curadores conseguem incorporar o que acharem interessante. Não é um sistema fácil, é complexo”. Conforme ressalta Cypriano,
 para inserir-se plenamente no sistema da arte, um artista precisa da validação de numerosos agentes desse sistema. Inicialmente, precisa expôr em algum lugar – museu, galeria ou centro cultural – e de alguém, um curador ou curadora, que vai indicar ao público caminhos de percepção sobre o trabalho. O crítico, por sua vez, é apontado como quem vai falar sobre o trabalho publicamente. 

No que se refere à comercialização de trabalhos, completa o jornalista, temos o mercado primário – galerias de arte, onde se vende pela primeira vez um trabalho – e o mercado secundário – os leilões, onde se vende mais caro e se ganha mais dinheiro. “Enquanto as galerias de arte agenciam os artistas e oferecem ao público a possibilidade de acompanhar sua produção, o mercado secundário só vende os trabalhos.
No Brasil, cerca de 90% dos trabalhos são vendidos pelas galerias, enquanto 10% são vendidos em leilões. A situação é muito diferente na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde essas porcentagens chegam a 50%. Já na China, é exatamente o contrário, o mercado secundário é muito mais poderoso”, compara, ressaltando ainda que, no Brasil, o mercado de arte tem um papel preponderante em relação ao chamado circuito institucional: por aqui, os museus compram poucas obras, e isso significa que a maioria está na mão dos colecionadores.

Para um artista, claro, não é fácil chegar a uma grande exposição, mas ao longo das últimas décadas houve ações importantes de agentes públicos e privados com intenção de trazer novas narrativas e novos caminhos para a arte. A esse respeito, Cypriano cita a importância de editais e políticas de fomento, que incentivam uma produção artística mais autônoma, sem tanta dependência das galerias e do mercado. “Desse modo, você não necessariamente precisa entrar no circuito convencional, obtendo maior liberdade para a produção”, sintetiza.

Para Cypriano, podemos, nos dias de hoje, notar uma maior organização interna nas instituições de arte. Em sua visão, a contratação de profissionais que pensam constantemente no que será exposto tem garantido, em muitos casos, a relevância dos temas abordados em exposições. “Esse é o caso da exposição ‘Mulheres Radicais’, na Pinacoteca, que trouxe a pauta de representação das mulheres, da voz feminina, da inserção e presença da mulher na arte, não mais enquanto objeto, mas como sujeito”, exemplificou o crítico, lembrando ainda de outras exposições que povoam a memória recente das artes visuais brasileiras, como “Histórias Afro-atlânticas”, apresentada no MASP, e “Queermuseu”, montada em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. “Estamos influenciados pelo presente, e o que vemos sendo estimulado nele. A questão da representatividade começa a se reverter agora, a partir de compensações que incluem o sistema da arte. Mesmo estando em um momento de incerteza para as artes, temos exposições que tratam de situações relevantes e necessárias, e isso é incrível”.