Desde as suas primeiras palavras, ao iniciar mais uma edição do Laboratório de Crítica, dentro da programação do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, a crítica e curadora Júlia Rebouças buscou estabelecer uma situação de troca e conversa com os participantes, deixando de lado qualquer aura ou distância que por vezes envolve o campo da curadoria. Após uma rodada de apresentação do público, ela também fez questão de se apresentar, dando início à própria história, entretanto, ao falar de seus primeiros contatos com as artes visuais, à época em que deixou Aracaju, em Sergipe, para estudar jornalismo e trabalhar na capital de Pernambuco.

“Até morar no Recife, eu não tive nenhum contato com artes visuais. Em Aracaju, naquele momento, não tinha museu, não tinha galeria. Meu contato com artes plásticas tem a ver com chegar no Recife, no começo dos anos 2000, num momento em que a cidade está muito pulsante, muito vibrante. O Moacyr dos Anjos era curador do Museu de Arte Aloísio Magalhães, a Cristiana Tejo era curadora da Fundação Joaquim Nabuco e a cidade tinha três galerias comerciais. Era um momento muito rico, e foi um encontro muito feliz com a cidade e esses interlocutores”, conta, ressaltando a importância dessas interlocuções para que pudesse enxergar, mais adiante, a curadoria como um caminho de atuação profissional.

Dizendo-se, àquela altura, um tanto desinteressada pela dinâmica do jornalismo tradicional, Júlia conta ter encontrado a oportunidade de produzir críticas por frequentar aberturas de exposições em um contexto marcado pela ausência da crítica cultural na imprensa da cidade. Em colaboração com Ana Maria Maia, Jonathas de Andrade e Alberto Lins, fundou em 2004, de modo independente, o portal Dois Pontos, encontrando na internet um espaço propício à discussão e elaboração de pensamento sobre arte contemporânea a partir da então movimentada cena artística pernambucana. “Aos poucos eu fui percebendo que o meu desejo de crítica ia se transmutando em outra prática, e a curadoria me pareceu essa atividade que aglutinava de maneira problemática e interessante muitos papéis – entre eles, a crítica de arte”, sintetiza.

Entre a prática e a pesquisa

A partir da produção crítica publicada no portal Dois Pontos, Julia foi convidada para trabalhar ao lado de Jochen Wolz e Rodrigo Moura, atuando como curadora residente no então recém inaugurado Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). Os seis meses de residência, entretanto, acabaram se convertendo em oito anos de intenso trabalho e muitas reflexões.

Vivendo, então, entre Belo Horizonte e Brumadinho, Júlia deu início a uma pesquisa de mestrado sobre a produção do artista Artur Barrio entre as décadas de 1960 e 1970. Interessada, em sua pesquisa, nos modos de atuação artística em contextos de restrição à liberdade, se surpreendeu com a figura de Frederico Morais. “Um crítico que atuava desde 1956, com mais de 28 mil textos publicados. Mas ele nunca esteve confortável sendo crítico de arte. Enquanto muitos críticos estabeleciam distância em relação aos artista, o Frederico estava dentro do ateliê”, destaca.

Por essas e outras, ao iniciar sua pesquisa de doutorado, a curadora decidiu investigar a biografia profissional do crítico, mais tarde também curador e artista, Frederico Morais. “Vamos entender o sujeito, como ele atua, qual o papel dele”, resume a autora de um trabalho que analisa a produção do crítico entre 1956 e 1978, em sua visão um período fundamental para compreender as escolhas conceituais, formais e políticas do contemporâneo. E foi justamente um generoso apanhado dessa pesquisa mais recente que Júlia Rebouças trouxe ao público do Laboratório de Crítica, propondo conversas e reflexões a partir de algumas ações organizadas por Frederico Morais.

A crítica fora da página

Realizada na Petit Galerie, no Rio de Janeiro, a exposição “Agnus Dei” (1970) é apontada por Júlia Rebouças como o evento que inaugura a “nova crítica” em território brasileiro. Naquela ocasião, Frederico Morais convidou três artistas para desenvolverem trabalhos que seriam expostos durante apenas um dia. No dia seguinte à exposição, haveria uma espécie de “reabertura” incluindo uma reação – não-textual – da crítica. Entre os convidados da mostra relâmpago, figurava Cildo Meireles, que apresentou como proposta o trabalho “Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola”, composto por três garrafas do refrigerante com mensagens gravadas pelo artista. Como resposta à ação, Morais encomenda engradados suficientes para forrar todo o piso da galeria.

“Com essa ação, ele nos convida a pensar em uma crítica de arte que não seja escrita. Ele entra num lugar de engajamento e cumplicidade tal com o artista, que ele usa a mesma linguagem para exercitar a crítica. Ao trazer outras garrafas para a galeria, ele mostra que o gesto simbólico do artista não alcança a dimensão do sistema: é um sistema muito grande, não tem uma inserção possível. A pequena ação do artista não é algo que toca, que roça, que incomoda esse sistema. Esse teria sido o argumento crítico que ele escreveria, mas, ao invés de escrever, ele gera uma situação e convida o público para isso”, analisa.

A experiência fora da galeria

Outro projeto apresentado pela convidada se refere ao período em que Frederico Morais geria o setor de cursos do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Intitulado Arte no Aterro (1968), o projeto recusava as salas de exposições e acontecia do lado de fora do museu, trazendo ao parque ações efêmeras com duração de um fim de semana. Buscando combater o elitismo que ainda hoje prevalece no campo artístico, a ação reunia artistas como Jackson Ribeiro, Lygia Pape e Hélio Oiticica e foi amplamente divulgada a partir de milhares de panfletos com linguagem popular, distribuídos em praias, ruas, bares e até mesmo no estádio do Maracanã.

“Trata-se de uma ação que desmistifica o artista, desierarquiza relações e quebra com o pensamento de ‘alta cultura’. Como organizador do evento, o Frederico busca colocar a arte como uma experiência acessível. Ele fala de uma arte feita pelo povo, para o povo, diz que todo mundo pode fazer arte”, observa Júlia Rebouças, para em seguida compartilhar com os participantes um registro raro da ação, realizado por Raimundo Amado. O que vemos nas imagens são pessoas vestindo parangolés, ações que incluem crianças e adultos e uma paisagem carnavalesca em que esculturas se misturam ao playground.

O museu fora do museu

Ainda sobre a atuação de Frederico Morais na mesma instituição, Júlia destacou uma ação realizada dentro do Núcleo Experimental MAM-RJ (1969-1972), dentro do qual o crítico liderou uma pesquisa voltada a mapear os múltiplos públicos e usos do museu, considerando também os variados horários de frequência e as distintas áreas frequentadas por cada público. Famílias, esportistas, babás e carrinhos de bebê, artistas e estudantes de arte, casais de namorados, trabalhadores saindo do emprego, prostitutas e cafetões: todos deveriam ser considerados possíveis públicos da instituição.

Com o apoio de uma grande equipe e a partir de centenas de entrevistas, a pesquisa dá origem a um projeto de exposição inspirado em personagens emblemáticos do museu, escolhidos justamente segundo a multiplicidade de práticas associadas ao mesmo espaço. Ainda que a exposição não tenha se concretizado, a convidada entende a experiência como um estímulo a uma visão mais ampliada sobre as instituições artísticas. “O projeto é muito simbólico sobre o entendimento de quem é o púbico de arte, do que é o museu e, sobretudo, de um desejo de expandir o debate sobre a arte, o pensamento crítico, a produção e a circulação da produção para fora dos lugares tradicionais legitimados. Ele está pensando, a partir da prática, que o mundo pode ser museu, também”.

Arte sem calendário

Nascido em Belo Horizonte e radicado no Rio de Janeiro, Frederico Morais também deixou um importante legado na história das artes visuais da capital mineira. A esse respeito, Júlia Rebouças destaca a manifestação “Do Corpo à Terra”, realizada no Parque Municipal de Belo Horizonte, em abril de 1970, como parte da programação do recém-inaugurado Palácio das Artes. Convidado a organizar uma exposição dedicada à escultura, Frederico logo ampliou o enfoque para o objeto, que àquela altura se constituía como uma espécie de não-categoria, incluindo tudo o que não se enquadrasse nos formatos convencionais.

Além de se arriscar como artista, incluindo na programação da mostra o trabalho autoral “15 Lições sobre a arte e a história da arte”, Frederico inovou ao propor que os criadores e criadoras convidados trouxessem ao evento projetos inéditos e realizados durante uma residência artística em Belo Horizonte. Concebidos, portanto, a partir de uma rotina de pesquisa que incluía encontros coletivos durante a noite, os trabalhos foram apresentados ao público sem qualquer aviso prévio sobre horário e local. “Nada deveria acontecer ao mesmo tempo, não houve qualquer aviso, divulgação de calendário ou cronograma, e as obras surgiam como acontecimentos. No final, os restos deveriam perecer, para que não houvesse vestígios dos trabalhos, assim como não haveria catálogo nem texto crítico”.

O público como artista

Como último exemplo compartilhado durante o Laboratório de Crítica, Júlia Rebouças propôs uma reflexão sobre o projeto Domingos da Criação, talvez o mais conhecido dentro da obra de Frederico Morais. Realizado em 1971, novamente na programação do MAM-RJ, o projeto retornava à área externa do museu e propunha, mensalmente, sempre aos domingos, a disponibilização de diferentes materiais para que o próprio público assumisse a atitude de criação. Papéis, fios, tecidos e terra foram alguns dos materiais oferecidos a um numeroso público que, conforme destaca a convidada, crescia a cada edição. “É um projeto que discute o lugar do ócio, da criação, e ao mesmo tempo questiona quem pode produzir arte. Nesse caso, alguns artistas eram convidados somente como iniciadores de processos, para estimular as pessoas a se sentirem à vontade para usar os materiais”, pontua.

No evento que encerrou a série, entretanto, já não havia qualquer material disponível, e a proposta da curadoria era que as pessoas trouxessem apenas os próprios corpos. “Esse encontro aglomera quase quatro mil pessoas, que se reuniam ali reunidas sem ter nenhum material como estímulo. Já não existe mais mediação, são simplesmente as presenças, a possibilidade de estar junto e criar a partir desse encontro”.

Proposições de futuro

Ao abordar alguns capítulos importantes da trajetória de Frederico Morais, Júlia Rebouças chama atenção para a importância de conhecermos as histórias da arte brasileira e latino-americana, as quais geralmente não são incluídas nem têm grande repercussão nas narrativas mais recorrentes sobre a história da arte. É a partir dessa atitude que a curadora vislumbra possibilidades de ampliação do conceito e das práticas da crítica.

“O lugar do curador, por exemplo, foi alçado a uma condição de super poder, mas por isso mesmo eu quero voltar e pensar de outra forma. Quero desconstruir as expectativas em relação ao meu papel, repensar as possibilidades de negociação com as instituições, com o mercado e com os artistas, buscando uma desierarquização e uma desestabilização dos processos estabelecidos”, defende, associando, a seguir, a atividade curatorial à capacidade de organizar afetos, tensões e sentimentos que ainda não foram enunciados, gerando imagens e experiências que até então não existiam.

“Os museus, assim como os centros culturais, precisam ser lugares para retomarmos o fôlego. Lugares onde a gente vai respirar fundo, correr atrás de uma figura mais forte, um gesto mais hábil, atrás de um curador criativo, um conjunto de práticas pedagógicas educativas, de um programa de publicações, de filmes etc. Devem ser lugares para se refugiar, recobrar os ânimos e repactuar”.