Instituído em território brasileiro a partir de um decreto-lei de 1943, o Dia Nacional dos Povos Indígenas, comumente celebrado nas escolas do país em 19 de abril, costuma servir como estímulo para se pensar nos valores culturais dos povos indígenas e na importância da preservação e do respeito a esses valores. Mais do que uma data para ser comemorada, entretanto, trata-se de um contexto importante para a visibilidade das lutas destes povos por causas que, sob diversas perspectivas, interessam a todos. De um lado, o aprofundamento da consciência coletiva sobre a história política e cultural do país; de outro, a manutenção do planeta onde vivemos como um espaço propício à vida – aí incluída a vida humana.

Para trazer essas e outras reflexões ao centro da cidade de São Paulo, a filósofa e educadora Cristine Takuá e o cineasta Carlos Papá foram os convidados de abril de 2019 na programação do Múltiplo Ancestral. Em vez de se apoiarem em discursos e apresentações elaborados previamente, os convidados apostaram no diálogo como ferramenta eficiente para superar preconceitos, simplificações e ignorâncias em relação a povos, culturas e filosofias originárias que há séculos lutam para alcançar o devido reconhecimento entre a sociedade brasileira. Ao longo de noventa minutos, ambos se dispuseram a uma entrevista pública em frente ao edifício do CCBB-SP, reunindo, em roda, crianças, jovens e adultos, dentre os quais alguns transeuntes que vez ou outra paravam para acompanhar a conversa.

Entre os mal-entendidos que frequentemente perseguem a população indígena, o cineasta e pajé Carlos Papá, morador da aldeia do Rio Silveira, em São Paulo, questionou a noção bastante comum de que “para ser índio é preciso estar sempre aplumado”. “Hoje em dia, na cidade de São Paulo, você tem que andar de sapato e roupa. Mas foram os jesuítas, ainda nos tempos da colonização, que ensinaram os nossos povos a usar roupa. A sociedade colocou a roupa em mim e agora me julga, diz que não sou mais índio. Eu posso usar roupa, mas continuar preocupado com as mesmas coisas: a preservação das nossas crenças, das nossas culturas e das nossas línguas”, argumenta o cineasta, ressaltando a importância de se considerar a condição dos indígenas que vivem nas cidades ou por vezes vêm visitá-las.

Também a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, muitas vezes tratados como um mesmo povo homogêneo, foi levantada por Cristine Takuá como questão a ser debatida e aprofundada, inclusive em sua relação com o campo da educação. “Quando se fala no Dia do Índio, eu penso: ‘Mas que índio é esse?’. Existe Guarani, Pataxó, Tupi, Maxacali… São mais de 300 povos indígenas, mais de 200 línguas. Os brasileiros andam pelas cidades falando Tupi sem saber a origem dessas palavras, sem saber os significados. Há uma necessidade muito grande de as escolas olharem mais para a cultura indígena, mas ainda falta conhecimento e existe muito preconceito quando se trata dessas questões”.

Lutas coletivas

Conforme afirma a filósofa e educadora indígena, quando lutam pela demarcação de territórios, os povos originários do nosso continente não estão somente em busca de benefícios próprios, mas ocupados com a preservação de florestas e ecossistemas extremamente importantes para a sobrevivência do planeta como um espaço propício à vidas humanas e não-humanas. “Não é porque queremos ser grandes fazendeiros. O que queremos é proteger as florestas para que outras formas de vida possam viver com a gente”, afirma, lembrando de pacas, cotias e abelhas, e ao mesmo tempo fazendo referência a demarcações territoriais que pouco avançaram desde a Constituição de 1988.

Considerando o contexto social atual, marcado pela crescente visibilidade também de movimentos sociais ligados às causas das mulheres, das populações negras e LGBT, Cristine Takuá alerta sobre uma perspectiva excessivamente urbana e capitalista associada às mesmas lutas. Antes de qualquer coisa, afirma, é preciso rever hábitos, formas de consumo e táticas de atuação política. “Não adianta saber que o agronegócio está matando as lideranças indígenas e continuar consumindo carne de boi. Não adianta saber que a mineração destrói rios e ecossistemas e continuar consumindo eletrônicos desenfreadamente. Se a gente não para pensar nos nossos hábitos cotidianos, não faz sentido. Lutar significa pensar no que você está fazendo e agir localmente. Quando penso na minha luta, entendo que é preciso cuidar do meu terreiro para ter esperança de um dia enxergar uma mudança global”.

Na visão de Carlos Papá, um passo importante a ser dado pela sociedade brasileira refere-se a um exame cuidadoso sobre a própria história cultural, assim como sobre os reflexos dessa história em relação aos nossos hábitos, comportamentos e valores. “Para resolver o problema que a gente enfrenta hoje, é importante olhar mais para nós mesmos. ‘Quem sou eu?’ ‘De que parte do Brasil eu sou?’ ‘Eu tenho sangue indígena ou não?’ ‘Se não, de onde veio minha família?’ ‘Se eu tenho cara de indígena, se eu tenho cabelo preto, não adianta eu querer ser inglês.’ É muito importante procurar o artesanato alternativo, pensar que existem roupas feitas dentro de casa. E a gente não precisa procurar roupas de marca, que estão no shopping. Essa mentalidade de auto-consumo, de que ‘Se eu posso, eu sou o tal’, não vai nos levar a lugar nenhum. Só vai pesar no bolso”, problematiza o cineasta.

Ecologia de saberes

Responsável pelo ensino de história, geografia, filosofia e sociologia na aldeia do Rio Silveira, Cristine Takuá também falou ao público sobre o funcionamento da escola onde atua, num contexto ainda pouco conhecido pelos habitantes da cidade. “É uma escola bilíngue, intercultural, e para nós a escola também é a cachoeira, a casa de reza, o terreiro etc. A gente considera as questões teóricas e a base curricular usadas nas demais escolas, mas temos liberdade para incluir outras conteúdos, como a nossa língua, cultura étnica e questões práticas da vida. Existe liberdade para a gente poder construir e dialogar com esses saberes”, observa.

Em contraste com o que costuma acontecer nas escolas urbanas, nas quais questões étnicas e raciais são abordadas somente nas proximidades de datas comemorativas, a Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’, onde Cristine atua como educadora, busca integrar conteúdos relacionados a questões indígenas e afro-brasileiras ao longo de todo o ano, a partir de diferentes abordagens. “É preciso pesquisar mais sobre a história do Brasil, pois um país que não sabe do seu passado não vai saber como tecer o próprio futuro. A gente precisa falar mais dessa história, por mais difícil que seja”, defende.

Enquanto Carlos Papá vislumbra, por exemplo, a disseminação do ensino de línguas indígenas nas escolas brasileiras, Cristine Takuá ressalta a importância de se fortalecer a presença dessas culturas também no campo da arte, das instituições artísticas e da mídia cultural. “Minha ideia é que pudéssemos ter uma Bienal da Arte Indígena, com curadores indígenas e grandes exposições, e que elas pudessem alcançar lugares de visibilidade nos museus e centros culturais. Várias ações já vêm acontecendo, não só nas artes plásticas, mas também no cinema e na literatura, mesmo que não circulem tanto nas grandes mídias ou nas redes sociais mais populares. Ainda assim, eu sinto que já está havendo uma mudança”, analisa a educadora, que, nos últimos anos, para além do trabalho na aldeia, vem se dedicando à disseminação de conhecimento e reflexão entre os povos da cidade.

Imagem: Marco Vieira/ Docasulo

Ação realizada no dia 17 de abril de 2019, em São Paulo (SP), como parte do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Com periodicidade mensal, Múltiplo Ancestral é uma plataforma de trocas entre o público, as mestras e mestres ligados a diferentes saberes e práticas culturais, articulando a memória, e o patrimônio. Alia a tradição oral, o afeto e olhares sobre o material e imaterial, fortalecendo a relação do sujeito com a diversidade. 


Sobre os convidados:

Carlos Papá Mirim é um líder e cineasta indígena do povo Guarani Mbya. Trabalha há mais de 20 anos com produções audiovisuais, com o objetivo de fortalecer e valorizar a cultura Guarani Mbya por meio da realização de documentários, filmes e oficinas culturais para os jovens. Também atua como líder espiritual em sua comunidade. Vive na aldeia do Rio Silveira, onde participa das decisões coletivas e busca ajudar a sua comunidade a encontrar caminhos para viver melhor. É conselheiro do Instituto Maracá.

Cristine Takuá é filósofa, educadora e artesã indígena, vive na aldeia do Rio Silveira. Na comunidade, é professora da Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’ e também auxilia nos trabalhos espirituais na casa de reza. É também fundadora e conselheira do Instituto Maracá e represente por São Paulo na Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), além de representante do núcleo de educação indígena dentro da Secretaria de Educação de São Paulo e membro-fundadora do FAPISP (Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo).

Sobre o autor do texto:

Daniel Toledo é mestre em Sociologia pela UFMG e desenvolve pesquisa sobre site-specificity, descolonização e crítica da modernidade. Atua como dramaturgo, professor, pesquisador e crítico em artes cênicas, performance e artes visuais. É membro-associado do JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia desde 2011 e atua como coordenador editorial do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.