Convidada a ministrar a edição de maio de 2018 do Transversalidades no CCBB RJ, a artista visual, professora e pesquisadora Simone Michelin propôs um diálogo com a exposição FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica. Através da apresentação de um panorama de manifestações artísticas recentes, a palestra busca tensionar criticamente este campo que eclodiu com vigor renovado a partir do acesso aos computadores pessoais e às tecnologias de informação.

Inicialmente, a artista falou ao público sobre primeira partida de xadrez entre Gerry Kasparov e o Deep Blue aconteceu em 1996, com vitória de Kasparov. Considerado até hoje o maior enxadrista do mundo ele, no entanto, não conseguiu garantir sua vitória na segunda partida, em 1997, quando Deep Blue o combateu no que foi chamado o mais espetacular evento de xadrez na história. Deep Blue foi o primeiro computador com algoritmos que lhe davam capacidade de tomar decisões. Após o primeiro confronto, o time de cientistas da IBM reprogramou completamente a máquina, com assessoria de mestres do tabuleiro: enquanto sua primeira versão analisava cerca de 100 milhões de jogadas por segundo, a versão melhorada aumentou essa capacidade para 250 milhões, dando a Kasparov uma missão bastante difícil.

Conforme ressalta a pesquisadora, propondo uma uma linha do tempo bastante resumida, os tipos móveis, a máquina de escrever, a máquina de calcular e a máquina de imitar abrem caminho para a invenção do computador. Em sua visão, esses experimentos vão, um por um, contribuindo para que, logo após a Segunda Guerra Mundial, ele surja revolucionando as discussões de automatismo e inteligência, criando espaço para a discussão em torno da modernização da inteligência humana e também da construção de autômatos à imagem e semelhança do homem. “Conhecimento é poder, e o computador é um amplificador desse poder”, afirma, fazendo referência ao cientista estadunidense Armand Feigenbaum.

Com o computador, afirma a professora, chegamos ao domínio da inteligência artificial, tornada possível via cibernética, ciência nascida em 1942. Impulsionada inicialmente por Norbert Wiener e Arturo Stearns, a cibernética tem como objetivo “o controle e a comunicação no animal na máquina”, ou “desenvolver uma linguagem e técnicas que nos permitam abordar o problema do controle e a comunicação em geral”. “Nesse momento o que está em jogo é uma percepção humana em expansão, uma experiência mediada por máquinas e por dispositivos e sua relação com a verdade, alterações em processos de subjetivação e o deslocamento do sujeito… Ou seja, o descentramento do humano e a própria comunicação em si”, pondera.

Ciências da salvação (ou da danação)

Simone destaca que as tecnologias podem ser percebidas como ciências da salvação, mas também ciências da danação, quando considerados os perigos da automação e da desumanização promovida pelas máquinas, entre outros fatores. No campo da pesquisa em ciências sociais humanas, especialmente entre as décadas de 1970 e 1990, a tecnologia foi inicialmente definida como instrumental, como algo que altera ou administra o que foi construído como ambiente natural. “Tudo é de algum modo técnico, e a técnica parece ser a marca definidora de toda investigação e conhecimento. Ela deve, porém, ser desvinculada da ideia de tecnologia instrumental, que corresponde a um de seus usos particulares e que consequentemente se vincula a uma ideologia específica”.

Em sua visão, a tecnologia instrumental, que surge junto à segunda revolução científica do final do renascimento, coincide com os meios que achatam o mundo tridimensional em diagramas e mapas. Esses meios instituem uma separação entre sujeito e objeto, inaugurando a busca do sujeito racional, que logo se expande e coloniza o “outro”. Essa postura leva o Ocidente a desenvolver uma instrumentalidade que assume, prende ou enquadra o que deseja manipular ou conter.

A tecnologia instrumental trabalha, então, a favor desse projeto ocidental: um projeto de globalização, de anulação da diversidade, que acaba tornando-se uma ideologia, vista nos modos como discursos científicos informam ao corpo como ele deve agir, sentir e viver a vida. “O corpo é submetido a uma retórica da razão técnica: está em jogo sua transformação e de suas subjetividades. Em uma era baseada em consensos fáceis, em midiatização de massas, urge pensarmos em todos os aspectos de nossa vida”, defende.

Tecnologia e pensamento crítico

Recorrendo ao filósofo Paul Virilio, Simone Michelin argumenta que as mudanças que as sociedades estão enfrentando atualmente com as mudanças tecnológicas são tão importantes quanto aquelas introduzidas pela perspectiva monocular no renascimento. Nesse sentido, a introdução da perspectiva artificial andou lado a lado com a revolução científica que produziu a tecnologia moderna, coincidindo com a invenção do tipo móvel e da escrita automática.

Do filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari, a professora resgata o conceito de heterogênese maquínica como possibilidade de superar a ideia de desumanização a partir do contato com as máquinas, desenvolvida por Heidegger. Segundo este conceito, as ferramentas seriam inseparáveis das simbioses que definem um agenciamento maquínico da natureza com a sociedade. “Eles entendem que, ao utilizar uma ferramenta, o homem se amalgama à ela, ele se torna um com essa ferramenta. Nesse sentido, a ferramenta não tem uma vida própria, pressupondo-se uma máquina social que a selecione. Uma sociedade se define por seus amálgamas, e não por seus instrumentos”, analisa a pesquisadora.

“Nesse pensamento há muito muito do que está sendo desenvolvido hoje na área de Arte-Ciência-Tecnologia: é o pensamento de transversalidade, que tem como paradigma a própria arte enquanto conhecimento. Os agenciamentos maquínicos são estruturas criadas através de tudo que a cultura humana produz. Com a evolução da cultura, ocorre o processo de subjetivação: o homem se entendendo enquanto ser humano através e durante esses processos, na experiência, no embate com diversas estruturas. Tais estruturas formam máquinas de diferentes ordens, nem sempre físicas ou mecânicas, mas também linguísticas e de comportamento, que conformam gradualmente as estruturas sociais”, sintetiza, em referência ao pensamento de Deleuze e Guattari. 

Para a pesquisadora, o ciberespaço quebra barreiras entre o intelectual e o real, colocando um novo conjunto de questões que requer novos aparelhos teóricos, como o conceito de “rizoma”, apresentado por Deleuze e Guattari como um labirinto sem começo e sem fim, que não tem centro nem periferia. “É o lugar de encontro das imprevisibilidades, dos eventos; as constelações rizomáticas se instauram como território de probabilidades, preocupando-se com a eterna recorrência do fim. A operação rizomática é constantemente focada em encontrar novos começos. É algo que espelha não mais um espaço newtoniano, não mais uma história teleológica, não mais um mundo físico reativo, de causa e consequência, mas sim mais ligado ao espaço da relatividade, ao núcleo espaço-tempo, não mais vistos como fenômenos divisíveis”.

Simone ressalta que um pensamento transversal, por meio do qual conhecimentos de áreas distintas se unem formando novas elaborações, é muito caro aos artistas e também aos cientistas, visto que ambos trabalham com finalidades distintas mas em processos similares, criativos e que precisam ser ousados. Assim como é o caso do artista, o pensamento do cientista é um sistema aberto, que permite evolução. Em sua apresentação, Simone aborda conceitos e obras que têm experimentado, questionado e assim dado forma a esse conhecimento que a contemporaneidade, em seus múltiplos aspectos, torna possível.

Experiências de arte contemporânea

Roy Ascott é apresentado, então, como um artista britânico pioneiro na área de Arte-Ciência-Tecnologia, criador do termo Arte Telemática, que engloba a arte que mistura meios de telecomunicação e informática – ou seja: tudo que acontece a partir do momento que as tecnologias computacionais se conjugam aos sistemas de distribuição da comunicação em rede. Segundo ele, “a cultura telemática significa resumidamente que nós não pensamos, vemos ou sentimos em isolamento, um pensamento ecológico”. 
A nova mídia, chamada mídia úmida ou moist media, por outro lado, é o que fornece substrato para o trabalho criativo a partir da convergência entre o mundo seco da virtualidade computacional e o mundo úmido dos sistemas biológicos. 

“Além da lógica do Rizoma, esse campo de trabalho envolve uma nova visão e uma nova representação do pensamento, do espaço e do universo da contemporaneidade; uma lógica de natureza 2.0, que se refere à criação de um mundo completamente simulado além do mundo natural. Decorrente dela vem a lógica do pós-humano, a lógica do ciborgue. A partir dessa possibilidade, qualquer mundo pode ser construído, desde que caiba em um algoritmo. Nesse contexto, é possível ainda algum gesto experimental que tenha esse vigor contundente, de crítica, e que afete o sistema político?”, questiona.

A pesquisadora afirma que toda arte eletrônica começa com uma transdução de sinais, ou seja, sua transformação de um tipo para outro. Nesse campo, o mundo é entendido como um grande banco de dados, onde tudo pode ser acessado, remixado e misturado através de técnicas comuns às vanguardas históricas do início do século 20 – futuristas, construtivistas, dadaístas – como a cópia, a montagem e a colagem. De acordo com Simone, podemos sintetizar os procedimentos mais importantes em algumas estratégias que se repetem, visto que até agora não existem grandes variações no repertório de possibilidades de ação para os artistas dentro desse campo.

A esse respeito, a simulação, a interatividade e a inteligência artificial são apontados como três grandes campos a se tensionar, em sua relação com o humano – corpo e mente – e com o ambiente – natural e artificial. “A transdução de sinais, como o som traduzido em imagem e vice-versa, ou o calor que se traduz em alguma outra coisa; o colapso tempo-espaço, anulando distâncias; os objetos inteligentes ou responsivos e os espaços de imersão (reais ou virtuais) são as operações que estariam no cerne de tudo que acontece dentro do panorama da arte telemática”.

A professora ressalta que a relação entre arte e pesquisa científica ainda é relativamente nova, sendo associada ao retorno dos artistas para as academias – não mais aquelas do século XIX, mas as universidades, os centros de pensamento. Conforme destaca mais adiante, são muitos os artistas que colaboraram com o aprimoramento de diversos dispositivos tecnológicos, principalmente no que se refere à visualização de dados. Stephen Wilson, artista, pesquisador e professor, é quem separa os grupos de trabalho dessa arte científica: o campo da biologia, as ciências físicas ou ciências duras, a matemática e os algoritmos, as telecomunicações e os sistemas digitais.

Como exemplo, apresenta a arte do brasileiro Eduardo Kac, pioneiro no uso da biologia com a arte, conceituando o que chama de arte transgênica; um trabalho feito junto a cientistas que se baseia na manipulação de genes. “Os genes são criados a partir de frases ou metáforas que o artista escolhe, e depois disso ele os re-insere em organismos vivos, sejam eles animais ou vegetais – seu trabalho é criado a partir dessas tensões”, sintetiza a pesquisadora. Entre os experimentos realizados por Kac, ela destaca o GFP Bunny, no qual o gene de uma ameba fluorescente que vive no fundo do mar foi inserido no corpo de um coelho branco, deixando-o fluorescente. 

Para Simone, os deslocamentos provocados por essas misturas são fundamentais para todas as poéticas que elas envolvem. “A arte sempre provoca um deslocamento de alguma natureza, retirando o espectador de seu cotidiano e reconectando-o com as coisas do mundo de uma forma poética. A arte telemática procura, então, esboçar respostas para perguntas altamente contemporâneas: o que é ser humano na cultura pós-biológica? Qual é a ontologia da mente e do corpo distribuída no ciberespaço? Que aspectos do imaterial podem contribuir para a re-materialização da arte?”, questiona a artista.