“O que eu quero do CCBB Educativo?” 

Em meados do mês de abril de 2018, uma pessoa que visitasse o CCBB-RJ poderia se deparar com essa pergunta, caso entrasse na sala do primeiro andar, pela porta ao lado da entrada da exposição, por volta das onze horas da manhã ou das três horas da tarde. A pergunta, que demarcava aquela sala vazia como CCBB Educativo, estava escrita no centro de uma parede de vidro na entrada da sala. Através desse vidro e de letras e desenhos, que compunham algumas possíveis respostas à pergunta escrita, de dentro da sala, educadores conversavam com os visitantes, oferecendo-lhes canetas estilo poscas coloridas – que, diga-se de passagem, produzem um efeito visual interessante quando usadas no vidro – em um convite para adicionar seus desejos àquela espécie de mural coletivo. Esse foi o primeiro Lugar de Criação realizado pela equipe do Rio de Janeiro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.

Uma semana antes dessa ação com o público, os mesmos educadores participavam do processo seletivo que os levaria a integrar a equipe do programa. Eu mesma, como educadora coordenadora, trabalhava ali há poucas semanas. Éramos, naquele momento, uma equipe recém-formada, dentro de um dos centros culturais de maiores públicos da cidade, que ocupava uma sala – ainda sem mobiliário – e com um programa educativo em mãos. Esse programa educativo, aliado à histórica presença do CCBB no imaginário da cidade, nos abria uma multiplicidade de caminhos e apresentava, já em seu enunciado, conceitos caros para o fazer da educação, da arte e dos espaços culturais. Conforme descrito em sua apresentação, o programa: 

desenvolve ações que estimulam a experiência, a criação, a investigação e a reflexão. Tem como valor a transversalidade dos processos pedagógicos, curatoriais e artísticos, por meio das partilhas e das trocas culturais e da garantia ao acesso amplo e inclusivo ao patrimônio e sua diversidade.

Os títulos escolhidos, não por acaso, para os eixos e ações do programa contribuem para a afirmação de sua descrição. Para exemplificar, cito alguns: o eixo Transbordar, dedicado à relação com a comunidade escolar tem como uma de suas ações o curso de formação de professores chamado Transversalidades; o eixo Outros Saberes, na relação com os públicos do CCBB, integra ações com diferentes formatos – oficinas, laboratórios e visitas. São elas: Múltiplo Ancestral, Visitas Mediadas, Com a palavra…, Laboratório de Crítica e Lugar de Criação. 

Colocar o programa em prática passou a ser função de toda a equipe do educativo, planejando, produzindo e executando uma programação, seja ela mediada por um convidado ou pela própria equipe, que responda às expectativas descritas no documento do programa educativo. 

Foi com esse documento em mãos e nossas experiências anteriores como educadores que enfrentamos, quase como primeiro desafio da implementação do programa educativo, planejar e executar um Lugar de Criação para o público naquele abril de 2018, tendo menos de uma semana de trabalho no CCBB – RJ. Olhando para o próprio eixo Outros Saberes, no qual o Lugar de Criação está inserido, que promove “processos de convivência e trocas de saberes”, nos pareceu instigante chegar àquele espaço – que já havia abrigado outras práticas educativas e que muitos dos públicos certamente já haviam vivenciado – e escutar. A pergunta geradora “O que eu quero do CCBB Educativo?” foi o meio que encontramos de, em nossa primeira ação pública como Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, nos apresentar e conhecer os públicos do CCBB-RJ, imaginando juntos alguns dos caminhos possíveis para ocupar aquele espaço.

O exercício de conceber e executar especificamente esse Lugar de Criação nos dá pistas para refletir sobre outro eixo do programa: Formação continuada da equipe de educadores.

Comumente ocupando um lugar nos bastidores das instituições, ao ser apresentada como um eixo de atuação do programa, a formação continuada de educadores torna-se, pelo Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, um programa público. A criação de uma plataforma para a divulgação de reflexões das práticas educativas talvez seja a materialização da esfera pública dessa formação, entendendo e afirmando os relatos e reflexões das práticas como processos formativos. Ocupar o lugar de eixo no programa pedagógico, no entanto, traz também outras camadas da formação continuada, para além do compartilhamento das reflexões. Ao nomear as ações da formação, tais como “imersões, laboratórios, encontros de leituras, visitas às exposições e instituições, participação em seminários e eventos das áreas de arte, educação e patrimônio”, entende-se a formação como hora remunerada dentro da escala de trabalho dos educadores, o que muitas vezes não é óbvio ou valorizado em uma rotina de trabalho. Além disso, como eixo no programa, abre-se espaço para pensar as funções da formação continuada, já que ela não está mais a serviço – para fornecer subsídios a uma programação –, mas sim equiparada aos demais eixos e ações do programa. 

No contexto da educação em museus e centros culturais, é comum que a formação de educadores esteja centralizada nas exposições ou temáticas da instituição, assumindo muitas vezes um caráter de transmissão desses conteúdos. Ou seja, os encontros de formação de equipe, quando orientados exclusivamente para as exposições ou temáticas da instituição, são pautados para subsidiar e instrumentalizar as equipes com repertórios e pensamentos a fim de melhor transmitir as informações para os diferentes públicos. 

Essa perspectiva de formação se aproxima do que Paulo Freire chama de uma educação bancária, quando o professor vê o aluno como um banco, no qual deposita o conhecimento. Em contraponto a ela, Freire (2012) propõe o caminho, que acredito ser mais interessante para se pensar a formação, da educação como prática libertadora, na qual o conhecimento não parte do educador, mas é construído dialogicamente entre educador e educando.  

Em minha formação como educadora, aprendi também sobre a impossibilidade de apostar, para pensar educação e formação de educadores, nesse conhecimento da exposição ou da instituição pronto para ser transmitido. Entendi com Certeau (2014) e Alves (2008) que os conhecimentos produzidos com as exposições, assim como os conhecimentos científicos, são criados em meio às práticas cotidianas, compartilhados e reinventados por seus usuários. 

Como todos os conhecimentos criados, esses conhecimentos não estão organizados e disponibilizados em dados que possam ser transmitidos ou depositados em alguém, como sugere uma formação para a educação bancária. Eles são tecidos em redes e “são enormes as dificuldades para identificar todas as origens de nossos tantos conhecimentos, pois eles só podem começar a ser explicados se nos dedicarmos a perceber as intrincadas redes nas quais são verdadeiramente enredados” (ALVES, 2008, p. 16).

Embora estejam lidando com o conteúdo das exposições, as práticas dos educadores não se reduzem à mera transmissão desses conteúdos. Com essa perspectiva, sua formação dialoga, permanentemente, para além dos textos teóricos, das informações institucionais e dos conteúdos das exposições, com diferentes experiências culturais, signos, imagens, elementos arquitetônicos, ruídos, sons, cheiros, sabores, fragmentos de memória, gestos e narrativas. Dialoga, em outras palavras, com uma rede complexa de saberes e fazeres, que são tecidas nos encontros com os públicos, em processos de apropriação, troca, compartilhamento e criação.

Se os conhecimentos, entramados nessas redes de saberes e fazeres, são criados em meio às práticas cotidianas, é importante pensar em uma formação continuada da equipe de educadores que valorize essas práticas cotidianas. Atuando como eixo do programa educativo, é importante também que a formação continuada – e cotidiana – reconheça as múltiplas redes de conhecimento que extrapolam o espaço circunscrito de uma agenda formal de formação. Ainda que essa agenda seja imprescindível, ela não é única. 

Um pouco mais de um ano depois do início da implementação do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, como parte da programação da Semana Nacional dos Museus, o curso Transversalidades, voltado para professores e educadores, trouxe um espaço de reflexão sobre o lugar da educação no campo da cultura, em um diálogo com Gleyce Heitor e Pablo Lafuente. Gleyce, além de ter sido coordenadora pedagógica do programa no âmbito nacional ao longo do primeiro ano de implementação, foi uma das autoras do texto e fez parte do time de profissionais que gestaram o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação na seleção do edital público. Pablo, à época da conversa, era coordenador local do programa. 

O curso Transversalidades, que acontecia mensalmente, sempre contou com convidados externos compartilhando seus saberes com o público de professores. Essa edição do curso, na qual os convidados foram agentes do próprio programa, abriu a possibilidade para uma reflexão junto ao público, em um gesto que pode ser entendido como um processo de formação. Nas palavras do Pablo, na apresentação do curso registrado em vídeo e transcritas aqui por mim: 

É sempre bom ter um momento de reflexão e um momento de reflexão com vocês, muitos de vocês acompanham a gente desde o começo, então esse exercício de conversar, de pensar em nossos processos e de ouvir de vocês sobre nossos processos também deveriam ajudar a gente a dar um pouco forma as atividades do próximo ano

Embora não tenha a mesma pergunta direta feita pelos educadores um ano antes, a proposição ainda provoca abrir espaço para que o público construa junto e contribua também para a reflexão compartilhada depois de um ano de práticas no programa.

Dessa edição do Transversalidades destaco aqui também, para pensar os processos de formação dos educadores, uma reflexão que Gleyce trouxe sobre o papel da prática do educador nesse programa que, em sua estrutura, valoriza a multiplicidade de saberes:

Não de fato como uma autoridade [o educador] desse espaço, do ‘aqui quem sabe aqui sou eu’. O que gera inclusive um conjunto de situações de onde está o papel do professor, quando vem junto com essa escola, da onde está o papel do saber do aluno quando vem aqui instaurar uma experiência educativa com a gente, mas olhar essa função desse educador como um agente de redistribuição ou de distribuição, em muitos casos, de capital cultural, simbólico e de mobilidade. […] Então como esse educador pode ser alguém que está de olho em todos esses capitais que circulam em uma visita educativa, em todos esses capitais que circulam enquanto a gente faz uma oficina. Essa percepção de alguém que está agenciando experiências, inclusive a dele […] do que necessariamente uma função de transmissão de saberes.

Gleyce nos provoca a reconhecer a formação que emerge dos encontros entre esses agentes da experiência, que não aparta educadores dos públicos. Com isso, penso que, como educadores, nós formamos e somos formados permanentemente por e com as nossas práticas cotidianas, sejam elas uma reunião formal de formação, Lugar de Criação, Transversalidades, outras programações, planejamentos e relatórios de visitas, organização das escalas dos educadores ou mesmo pensar o mobiliário da sala do educativo.

Quando, naquela primeira semana de trabalho, inauguramos a ação Lugar de Criação com uma proposta que, em vez de levar uma atividade ao público, indagava sobre seus desejos, penso que estávamos, entre outros sentidos, forjando uma das possíveis práticas para nossa formação de equipe. Hoje, escrevo este relato – quatro anos depois de mergulhar nos cotidianos desse programa e dois anos depois de mudar de contexto de trabalho –- percebendo e ainda sentindo as ramificações das redes de saberes e fazeres tecidas na minha formação no e com a equipe do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.

REFERÊNCIAS

ALVES, N. Decifrando o pergaminho: os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, I. B. de; ALVES, N. (Org.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre redes e saberes. Petrópolis: DP&A, 2008, p. 15-38.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 

JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia. Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Brasil, 2017. 

JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia. Transversalidades c/ Gleyce Heitor e Pablo Lafuente (CCBB-RJ). Disponível em: https://youtu.be/VYTs5yD-H3M. Acesso em: 12 maio 2022.