Seja nas artes visuais ou na culinária, é comum entendermos a noção de gosto como uma categoria estritamente pessoal que não deve ser trazida à tona para não suscitar discussões infrutíferas e pôr em risco nossas relações pessoais. Isso ocorre porque manifestamos gosto quando, de algum modo, algo nos agrada e nos gera prazer. Assim, “os juízos a respeito do gosto estão centrados no estado de espírito do sujeito e não nas qualidades do objeto”, conforme esclarece o filósofo inglês Roger Scruton no livro “Beleza” (2013).

Entretanto, há quem defenda que uma questão de gosto deve ser discutida e, inclusive, elevada a nível acadêmico, como é o caso da historiadora Carolina Figueira. Defendida em 2015 na Universidade de Coimbra, em Portugal, a tese de mestrado “A boa comida no início do século XXI – Entre Carlo Petrini e Michael Pollan” foi elaborada com o objetivo de refletir sobre a construção histórica do gosto alimentar, associada aos elementos culturais que a constituem.

“Sempre que experimentamos um novo alimento pela primeira vez, uma série de fatores são acionados, desde os sentidos do corpo até elementos do repertório sócio-intelectual. Em geral, tendemos a dar atenção somente para o que conseguimos perceber com o paladar, mas a visão, o olfato, o tato e a audição também estão envolvidos nesse processo de entrar em contato com uma novidade alimentícia”, contextualiza Carolina, ao iniciar o curso Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.

Apesar disso, ela defende que o sentido tátil-bucal é, em geral, o fator que as pessoas consideram determinante para considerar um alimento agradável ou não. “Esse aspecto, bastante discutido no meio científico, diz respeito à percepção da textura, consistência, picância, frescor e outros sentidos que são distinguidos por meio dos receptores da boca. No entanto, para saber diferenciá-los, é necessário que as pessoas possuam repertório, ou seja, experimentem os alimentos, entrem em contato com eles e desenvolvam suas percepções de forma crítica e consciente”, pondera.

Refletir sobre um panorama histórico do gosto, portanto, carrega o movimento etimológico de ir em busca da origem dos costumes presentes em cada época. “Na Antiguidade e na Idade Média, por exemplo, a culinária era muito baseada no afastamento do sabor natural. Desse modo, uma sopa de couve preparada nesses dois períodos poderia ter qualquer sabor, menos o da folha de couve. O que nos ajuda a entender isso é a relação que estabelecemos com os alimentos naturais hoje. Quanto mais próximo do sabor originário do ingrediente, maior o valor agregado. Sendo assim, o presunto cru de hoje seria a mortadela na Antiguidade e na Idade Média.”

A pesquisadora compreende que, atualmente, o gosto hegemônico valoriza muito mais a natureza dos alimentos e dos ingredientes do que a artificialidade de alguns produtos da indústria alimentícia. Ainda que tenhamos disponível, no mercado, uma gama muito diversa de itens produzidos em laboratório, a alta gastronomia contemporânea dá importância à presença de ingredientes in natura nos pratos. Carolina Figueira explica que, embora grande parte da população não tenha acesso ao que os grandes chefes de cozinha estão produzindo, as tendências lançadas por eles se espalham também nas camadas sociais mais baixas – e com facilidade.

“Isso acontece porque eles, enquanto influenciadores de costumes gastronômicos, acabam ditando regras que vão sendo traduzidas pela indústria alimentícia, seja em forma de produtos ou pratos. Essa extrema valorização do natural e do artesanal está presente até na maneira como encaramos, nutricionalmente, o que comemos”, relembra.

Slow food

Objeto de estudo da historiadora, o Slow Food (em tradução livre, “comida lenta”) é um movimento e uma organização não governamental fundados pelo jornalista italiano Carlo Petrini, em 1986, tendo como objetivos “promover uma maior apreciação da comida, melhorar a qualidade das refeições e uma produção que valorize o produto, o produtor e o meio ambiente”. Criada na região mediterrânea, a doutrina nasce como contraposição política e filosófica à massificação e padronização oferecida pelo fast-food.

“Os três pilares que os pensadores desse movimento defendem é que o alimento deve ser bom, limpo e justo. Para eles, uma das maneiras de ir contra a industrialização é educar-se para o gosto e o direito ao prazer. O movimento desenvolve uma série de ações, e uma delas se chama ‘Educação para o gosto’, que é justamente para que as pessoas se eduquem a perceber os sabores do que estão comendo, e a partir disso consigam tomar decisões em relação aos alimentos”, conta.

A defesa de um alimento justo, segundo ela, diz respeito ao ponto de vista de produções, dentro de uma cadeia econômica estruturada e colaborativa. A dimensão “limpo” dá conta do sentido ambiental e sustentável. Conclui-se, portanto, que a espinha dorsal desse discurso é a seguinte: o que é bom é natural.

“O que a mcdonaldização faz com os sabores e nossa percepção de alimentos?”, questiona. “Muitas vezes, o processamento dos alimentos que são servidos nos restaurantes fast-food altera o sabor originário da natureza. Se reconheceu que há uma preferência pelo sabor soft, uma mistura entre doce, salgado e ácido. Essa é a principal característica de sabor do McDonald’s. A fama dele, entretanto, vai contra as tendências de valorização de uma comida natural. Então, será que a gente está se educando para perceber esses alimentos de forma correta? Porque o discurso é um, mas quando pensamos o que está na boca, a coisa é outra”, conclui.