O projeto Praça Viva aconteceu entre os meses de março e junho de 2016 e articulou oficinas artísticas e de práticas culturais às ações de intervenção, de ocupação e de transformação de um espaço público subutilizado do bairro Jardim Canadá, em Nova Lima (MG). Por meio da metodologia de oficinas educativas, os alunos da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha, em parceria com a equipe do JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia, desenvolveram um projeto de ativação e intervenção, com mobiliários de convivência e instalações lúdicas de uso comunitário. 

Ao longo da trajetória do JA.CA já foram realizadas diversas intervenções e processos formativos que promovem um diálogo estreito entre a arte, a educação e o território, por meio de projetos que buscam uma aproximação com os moradores, com as organizações e com as instituições do bairro Jardim Canadá. As residências artísticas, uma das frentes de trabalho do JA.CA, presentes desde a fundação, em 2010, exemplificam bem esse diálogo. Artistas selecionados por editais e/ou convidados realizam processos de investigação do território do bairro, buscando, muitas vezes, reverberações sobre a realidade local. Sucessivos programas de residências já foram promovidos no território e, por meio de intervenções artísticas e ocupações dos espaços públicos, fomentam-se ações relacionadas ao contexto local, explorando questões específicas como a mobilidade, a sustentabilidade e a formação de redes colaborativas. 

O Praça Viva também se apresenta como uma das ações do JA.CA conectadas à arte, à educação e ao território. O objetivo principal do projeto era a ativação de um espaço público, por meio de mobilizações comunitárias e oficinas educativas que promovessem a sensibilização e a aproximação dos moradores com o campo das artes; tornando a área em um espaço vivo de encontro, de sociabilidade, de troca e de lazer. Pretendeu-se também provocar uma reflexão sobre a paisagem e as relações do bairro, estimulando a integração e a participação dos moradores nos espaços públicos.

Os espaços públicos dentro dos bairros e as relações cotidianas 

O JA.CA sempre defendeu o potencial transformador dos espaços públicos e utilizou, ao longo de toda a sua trajetória, um olhar sensível e propositivo sobre a importância da ativação e da ocupação dos mesmos. Seguindo essa orientação, o JA.CA busca dialogar com diversos estudiosos que pesquisaram a importância dos espaços públicos nas relações sociais e cotidianas, em especial nessas estabelecidas dentro dos bairros. Juarez Dayrell (2005, 2010),  José Guilherme Cantor Magnani (1984, 2000 e 2007) e Pierre Mayol (2011) são exemplos de tais estudiosos. 

A partir de diferentes estudos etnográficos, tais autores identificaram que a convivência e a sociabilidade dos moradores em seu cotidiano nos espaços próximos às suas moradias permitiam que eles vivenciassem os espaços comuns, e, assim, trocassem experiências e conhecimentos. Ao mesmo tempo, os encontros em espaços comuns compartilhados proporcionam oportunidades de partilhar os pensamentos, os gostos, as afinidades, as angústias, etc. 

Além do convívio cotidiano, tais autores destacam que a ocupação dos espaços públicos  dentro dos bairros também é um espaço favorável de transformação e empoderamento do território. É neles que os moradores podem fortalecer seus sentimentos de pertencimento,  seus interesses e seus gostos culturais, por meio dos encontros, das construções coletivas, das trocas com os seus pares e pela apropriação local. Assim, os grupos de pares constituídos nos espaços dentro dos bairros são fundamentais para o exercício da cidadania, cujo aspecto principal se refere à condição de pertencimento de uma pessoa a uma comunidade, a um bairro e a um país.


Outro aspecto de destaque sobre a sociabilidade nos bairros foi identificado por Pierre Mayol et al. (2011). Ele aponta em seus estudos que as modalidades de encontros, trocas e sociabilidades dentro dos bairros se constituem principalmente entre a rua e a residência. Para Mayol (2011), pelo uso habitual do bairro, as práticas cotidianas caracterizam-se numa relação entre aquilo que é mais íntimo (o espaço da residência) e o que é mais desconhecido (o conjunto da cidade ou mesmo os espaços de uso público do bairro). De acordo com o autor:

O bairro constitui o termo médio de uma dialética existencial entre o dentro e o fora. E é na tensão entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro, que se efetua a apropriação do espaço […]. O limite público/privado, que parece ser a estrutura fundadora do bairro para a prática de um usuário, não é apenas uma separação, mas constitui uma separação que une. O público e o privado não são remetidos um de costas para o outro, como dois elementos exógenos, embora coexistentes; são muito mais, são sempre interdependentes um do outro, porque, no bairro, um não tem nenhuma significação sem o outro. (MAYOL et al., 2011, p. 43).

Segundo Mayol et al. (2011), o bairro só se torna espaço do reconhecimento porque seus moradores se apropriam dos espaços públicos do local, dando novos sentidos e significados a esses espaços que perdem o seu caráter público, passando a ser de uso privado no cotidiano dos seus moradores. Assim, o bairro passa a ser uma extensão dos espaços privados, de uso particular de seus moradores, o que favorece as relações de sociabilidade entre os pares, com a vizinhança e com o comércio local. 

Aí se acham reunidas todas as condições para favorecer o exercício de cidadania: conhecimento dos lugares, trajetos cotidianos, relações de vizinhança (política), relações com os comerciantes (economia), sentimentos difusos de estar no próprio território (etologia), tudo isso como indícios cuja acumulação e combinação produzem, e mais tarde organizam, o dispositivo social e cultural segundo o qual o espaço urbano se torna não somente o objeto de um conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento. (MAYOL et al., 2011, p. 45) 

Em suma, Mayol (2011) destaca que o bairro é um importante e favorável espaço de encontro e de sociabilidade, pois caracteriza-se por ser uma porta de entrada dos sujeitos, especialmente as crianças e os jovens, para o mundo social, podendo ser a primeira instância, fora da casa e da escola, em que podem se relacionar e se reconhecer entre si, vivenciando o direito de apropriar-se dos espaços públicos. 

A proposição do projeto Praça Viva partiu desse diálogo entre a importância dos usos e apropriações dos espaços públicos locais, dos emaranhados entre público e privado e da fragilidade da rede de equipamentos de lazer do Jardim Canadá. E foi seguindo essas orientações que surgiu a proposta de ativação da área da praça, até então subutilizada. 

A praçå

Localizada entre as ruas Vitória, King e Cassiar e a um quarteirão da sede do JA.CA, o lote triangular chamava a atenção por sua subutilização, sua extensão e pelo abandono do poder público. A área foi designada a ser praça desde seu loteamento, na década de 1950, porém, ainda em 2015, ano em que o JA.CA inaugurou sua sede atual, não existiam intervenções da Prefeitura de Nova Lima na efetivação do espaço como uma praça real. Era comum que a área fosse utilizada como um local de estacionamento, manutenção de carretas e descarte de lixos. 

Diante dessas fragilidades locais e por acreditar e defender a potência dos espaços públicos, surgiu o interesse do JA.CA em ativar a área destinada a ser praça. Durante a chegada da equipe àquele território do bairro, com caráter mais residencial do que os das sedes anteriores, foi dada a oportunidade de a organização estar em contato mais cotidiano com os moradores que ali residiam – diferentemente  dos outros espaços ocupados anteriormente, que eram localizados em áreas mais comerciais/industriais.

A presença dos moradores nas ruas era algo distinto naquela região do bairro, especialmente a ocupação realizada pelas crianças, com brincadeiras com bola e bicicleta, todos já convivendo com um trânsito de veículos leves e pesados que só se avolumava, o que apresentava um risco crescente. Mesmo com a demanda por uma praça, de forma geral, os moradores não sabiam que aquela área desabitada estava destinada para um espaço público que poderia oferecer um local adequado e seguro para o convívio social. 

Outro ponto importante refere-se à pouca oferta de equipamentos locais. O Jardim Canadá possui apenas uma praça efetivamente construída e a ativação daquela área abandonada pelo poder público poderia ajudar a revelar o fim social do planejamento desse e de outros espaços outrora demarcados em um plano original. 

A metodologia utilizada no projeto foi a de oficinas educativas, o que articulou as práticas artísticas experimentadas pelo JA.CA às ações de mobilização comunitária, buscando, assim, criar junto com os moradores uma forma de ocupar criativamente a área pública, dando novos sentidos e significados. O primeiro passo foi buscar parceiros locais com o objetivo de entender se a ativação da área era uma demanda real dos moradores e também dos representantes de equipamentos locais. Após conversas pelas ruas do bairro e em visitas institucionais, identificou-se que a necessidade sobre a ativação da área pública era, de fato, uma demanda local, carente de espaços públicos semelhantes. Para a realização do projeto, a Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha mostrou-se um parceiro ideal por sua localização em frente à praça, mas principalmente por seu interesse em construir coletivamente um projeto que pudesse servir a todos.

Nessa direção, o Praça Viva foi se desenhando de forma a acontecer principalmente em parceria com os alunos e professores da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha, através de oficinas educativas com temas relacionados às práticas culturais, às artes visuais e à arquitetura. Buscou-se que os próprios alunos desenvolvessem um projeto de intervenção, com mobiliários de convivência e instalações lúdicas de uso comunitário, a serem implantados na praça.

O projeto foi contemplado com recursos do Fundo Estadual de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais. Contamos também com o apoio da Prefeitura de Nova Lima, que, além da autorização para realizar as ações no local, providenciou a primeira limpeza do espaço, um pequeno nivelamento de parte do terreno e a cessão de algumas manilhas de concreto que sobraram da instalação da rede de esgoto do bairro. Solicitamos a disponibilização de um ponto de água e a iluminação pública, mas isso não aconteceu, apesar dos nossos esforços. A empresa Via 040, consórcio que administra a rodovia federal BR-040, colaborou com a doação e o plantio de algumas mudas de árvores nativas, bem como com o transporte das manilhas cedidas pela prefeitura. 

O projeto

O Praça Viva aconteceu entre os meses de março e junho do ano de 2016, com as  participações dos alunos e professores da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha, em oficinas educativas e articulações com os moradores locais, através de mutirões abertos a toda a comunidade do bairro. 

A primeira atividade proposta foi a sensibilização para a ocupação do espaço público em questão, na qual se coletaram as projeções dos desejos dos alunos do 6° ano e se fez a elaboração coletiva do projeto arquitetônico da Praça Viva. 

No decorrer do processo, também foram feitas oficinas com as turmas do 6° ano de marcenaria e mutirões para plantio de árvores e hortas no local. O método utilizado foi a construção de maquetes, em que se materializaram as expectativas do uso público da área, considerando o espaço, os desejos e as necessidades dos alunos. As maquetes foram apresentadas para todos os outros alunos e professores da escola em um evento aberto à comunidade.

Outra importante intervenção, durante as oficinas, foi o diagnóstico sobre o terreno, em que se investigou o seu uso (quem circulava e/ou frequentava?), o tipo de solo (vegetação, incidência solar) e também mediu-se a área, com instrumentos tradicionais e ferramentas menos usuais atualmente, como o próprio corpo. Usando os dedos, as mãos e os passos, além de linhas e marcações, foi possível medir todo o terreno para contribuir no planejamento de seu uso.

Após os diagnósticos, em mutirões com cinco encontros abertos à comunidade, foram feitas ações no local, como a limpeza do terreno, a preparação do solo e, em parceria com o Coletivo Planta, o plantio de jardim e horta,  na qual mudas de alecrim, manjericão, sálvia, hortelã, pimenta, tomilho, salsa lisa, erva-cidreira, coentro, capim-limão e erva-doce foram plantadas. Em seguida, aconteceu a execução do projeto arquitetônico, em que se construiu um circuito de brinquedos na praça. Foram reaproveitados resíduos em técnicas construtivas, doados pela Administração Regional Noroeste da Prefeitura de Nova Lima e pela Via 040, responsável pelo transporte. Quatro manilhas foram usadas na construção de um túnel e na criação da base de um escorregador. 

Além desses brinquedos, foi construído um jogo em tamanho grande de tabuleiro Twister. Para isso, foram criadas lajotas coloridas com as formas criadas pelos alunos na oficina de marcenaria ofertada. As regras da versão seguiram as originais; a diferença foi que, em vez de em um tapete, joga-se no piso da praça. 

Em paralelo às oficinas educativas com a turma do 6° ano, foi feito o caderno de atividades, com proposições da psicóloga e educadora Ana Cláudia Bambirra, em parceria com o Coletivo Planta, que realizou o design da publicação. O caderno tinha como objetivo contar um pouco sobre a proposta do projeto Praça Viva para que as discussões fossem expandidas para as outras turmas da escola. A publicação replicou o conteúdo do projeto para as outras turmas que não participaram diretamente das oficinas educativas. Essa publicação pode ser acessada em formato digital no site www.jaca.center/publi.

Considerações finais

O projeto de ativação da Praça, além de proporcionar à equipe do JA.CA um amadurecimento teórico e técnico sobre o universo dos espaços públicos, pretendeu contribuir com a aproximação da população ao campo das intervenções artísticas, numa tentativa de fortalecer os sentimentos de pertencimento dos envolvidos ao território do bairro. 

Os alunos da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha, todos moradores do bairro, participaram diretamente das ações formativas e colaborativas do projeto – todas ofertadas gratuitamente. Conjuntamente com a equipe do JA.CA, eles atuaram desde a concepção do projeto de intervenção (oficinas na escola) até as ações necessárias para a ativação e a transformação do local, com: plantio de mudas (paisagismo), construção de mobiliário urbano e outras instalações. 

Nas oficinas, os participantes aprenderam técnicas de marcenaria, jardinagem, pintura, noções básicas de projetos de arquitetura, paisagismo e design, entre outros saberes. O conteúdo e o método das oficinas serviram tanto como estímulo para que seus participantes proponham novos projetos artísticos de intervenção no entorno e de empreendedorismo social quanto como um conhecimento que possa ser replicado em suas próprias casas.

Assim, o projeto, ao articular os processos formativos e colaborativos, envolvendo um público específico do Jardim Canadá, pretendeu promover uma reflexão mais abrangente sobre como a ação efetiva feita pelos próprios moradores e instituições pode trazer qualidade de vida aos moradores do bairro, implicando mudanças diretas tanto no comportamento (uma vez que os agentes foram os próprios moradores, empoderados pelo saber/fazer/poder) quanto no uso e na ocupação do espaço público.

Referências

DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

DAYRELL, Juarez. Juventude, grupos culturais e sociabilidade. JOVENES, Revista de Estudios sobre Juventud. Edição: ano 9, n.22, México, DF, jan.-jun., 2005, pp.296-313.

DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educ. Soc., out. 2007, v. 28, n. 100, pp.1105-1128. ISSN 0101-7330. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 14 maio 2011. 

DAYRELL,Juarez ; BARBOSA, Daniele. “Turma ou panelinha?”: a sociabilidade de jovens alunos em uma escola pública. In. SOARES, Leôncio; SILVA, Isabel de Oliveira (Org.). Sujeitos da educação e processos de sociabilidade: os sentidos da experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

MAGNANI, José Guilherme Cantor; MANTESE, Bruna (Org.). Jovens na Metrópole: etnografias de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade. 1. ed. São Paulo: Terceiro Nome, 2007. v. 1. 280 p. 
MAYOL, Pierre; CERTEAU, Michel; GIARD, Luce. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.