Promulgada em 2003, a Lei 10.639 tornou obrigatória a inclusão da história e da cultura afro-brasileira e africana no currículo oficial da Rede de Ensino, “resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil”. O processo complexo para a efetivação dessa lei, no entanto, fez com que o assunto ficasse reservado às disciplinas de artes e literatura, conforme destaca a pesquisadora Juliana do Santos. Convidada a conduzir a edição de novembro de 2019 do curso Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, ela propôs aos participantes do encontro a seguinte questão: “Quais os impactos da lei 10.639/2003 no campo da arte e educação?”.

Artista visual, mestre em arte-educação, arte-educadora e doutoranda na Unesp (Universidade Estadual Paulista), Juliana estuda os desdobramentos da legislação a partir de uma perspectiva crítica que considera o trabalho realizado em instituições culturais como no Museu Afro Brasil, de São Paulo, onde atuou como educadora. “O trabalho que desenvolvi lá é provavelmente a gênese do meu projeto de pesquisa hoje. Não é possível fazer a mediação daquele espaço sem uma prática política antirracista, porque a própria constituição do acervo possui essa força”, conta.

Entretanto, segundo ela, fora de espaços institucionais demarcados, como é o caso do Museu Afro Brasil, as práticas de arte e educação ainda tendem a ser as mesmas de tempos passados. “A gente precisa pensar uma mudança. Qual é a representatividade negra em museus hoje? Quantas dessas instituições adotam uma perspectiva antirracista em relação a seus próprios acervos?”, questiona.

Mesmo considerando as brechas que permitem às instituições educacionais aplicá-la somente nas aulas de Artes e Literatura, a lei 10.639/2003 pode ser, na visão de Juliana, capaz de reverter, nesse primeiro momento, alguns paradigmas que ainda orientam o ensino e a prática de artes visuais. “A partir da mudança dos parâmetros visitados na educação e do aprendizado dessa rica cultura que também nos constitui, talvez seja possível pensar novos processos de se fazer arte e curadoria no Brasil, negando a lógica hegemônica que está estabelecida hoje. Dessa forma, podemos partir de intelectuais negros para pensar as relações étnico-raciais na educação”, exemplifica.

Frente Negra Brasileira (FNB)

Para isso, Juliana dos Santos defende uma revisão histórica da educação no Brasil, acessando, criticamente, as contribuições de culturas e povos diaspóricos africanos para a formação social e cultural do país. “A Frente Negra Brasileira (FNB), por exemplo, era constituída por vários departamentos, entre eles alguns voltados para a alfabetização – algo parecido com o que hoje a gente conhece como EJA. No que tange às artes, também tinha a preocupação de a população negra como produtora de obras que representassem a sua cultura”, relata, fazendo referência a um dos primeiros movimentos sociais organizados pelo povo negro no Brasil, com atuação nacional entre 1931 e 1937.

“A lei simboliza a efetivação dessa luta antes almejada pelos nossos antepassados. Desde lá, tinha-se a compreensão de que a educação poderia emancipar as pessoas. Trazer, então, a cultura delas para dentro do espaço escolar, é uma forma delas se apropriarem do discurso e se reconhecerem enquanto participantes do processo educacional”, analisa a pesquisadora

Entretanto, conforme destaca Juliana, a luta encabeçada pela FNB enfrentou décadas de reveses até, finalmente, encontrar a criação de uma lei que tornasse obrigatório o ensino de cultura negra nas escolas. “O que aprendemos e ensinamos sobre as produções artísticas das populações negras na história da arte, nos museus e livros que fazem parte do nosso cotidiano? E sobre o legado africano na consolidação da arte e da cultura brasileira, o que sabemos? Como descolonizar o nosso olhar, nossas práxis, nosso saber? De que arte estamos falando?”, questiona ela, para em seguida ressaltar o fato de que essas perguntas continuam trazendo respostas insuficientes e insatisfatórias, indicando que um longo caminho ainda a ser percorrido pela educação formal do país.

Produção artística e sistemas de legitimação

Do ponto de vista estrutural, a pesquisa de Juliana dos Santos indica que o sistema educacional brasileiro segue imerso em uma hegemonia colonizada, vide a predominância de artistas homens, em sua maioria europeus e estadunidenses, entre as referências artísticas que recebemos desde a educação infantil. Além disso, ela identifica que poucos foram os artistas negros historiados, e afirma que isso diz respeito ao funcionamento do sistema da arte: para se fazer presente na história da arte, não basta ter uma produção prolífica e relevante, mas também estar inserido dentro de um circuito ou cena capaz de legitimar essa produção.

“Um exemplo bastante emblemático desse processo são os Irmãos Timotheo, cujo trabalho, por meio de um prêmio, os levou a estudar Belas Artes em Paris, lugar onde toda a elite intelectual ocidental estava. Portanto, eles estavam exatamente dentro do circuito, do sistema e do mercado de arte, convivendo com toda a vanguarda artística no mesmo celeiro que formou artistas brasileiros depois consagrados mundialmente”. Apesar disso, completa a pesquisadora, a dupla de artistas negros, com marcante atuação nas primeiras décadas do século XX, não está devidamente presente na História da Arte do Brasil. “O próprio fim da vida deles revela muito sobre como os artistas negros são tratados: acabam no esquecimento”, sentencia, em referência à trajetória de Artur e João Timótheo da Costa.

As raízes negras da educação brasileira

Ao abordar, mais adiante, o projeto do Estado Brasileiro iniciado a partir da década de 1930 para estruturar a educação a nível nacional, Juliana aponta a presença unânime de intelectuais brancos como uma maneira de introjetar ideias eugênicas e higienistas nas escolas, com o objetivo de embranquecer a cultura brasileira e apagar qualquer presença de referências afro-brasileiras e africanas. “Até a década de 1920, a maior parte das pessoas, pelo menos no Rio de Janeiro, eram alfabetizadas por mulheres negras. Isso se deve ao lugar delas na sociedade, trabalhando como amas de leite e fundando, assim, o que Lélia Gonzalez chama de ʽpretuguêsʼ, já que língua que falamos inclui várias palavras de origem Banto. Eram essas mulheres que ensinavam as crianças a falar”, ressalta a pesquisadora.

Por que, então, a história oficial não entende essas mulheres como as primeiras pedagogas do Brasil? “Com o processo de sistematização da educação, a função de alfabetizar passa a ser de professoras brancas de classe média alta – mulheres que começavam a reivindicar local de trabalho e cursar magistério. A partir disso, se inicia um processo maciço de embranquecimento do corpo educacional nas escolas, trazendo à tona uma série de perspectivas europeias e estadunidenses para fundar uma educação padronizada no Brasil”, analisa Juliana.

Segundo ela, esse paradigma só seria revisto no primeiro curso de cultura negra do Brasil, realizado na Escola de Artes do Parque Lage, no Rio de Janeiro, que reuniu artistas e intelectuais negros durante a década de 1970. “Esse período foi fundamental para a articulação do movimento negro no Brasil, quando uma série de pessoas começaram a entrar na universidade pública e criar uma produção intelectual grande, que colocou em xeque alguns intelectuais brancos que, na época, discutiam negritude. Se a gente tem, hoje, uma série de instituições que revêem seus acervos, isso tem a ver com um processo de conscientização e de lutas por ações afirmativas encabeçadas pelo movimento negro”.

A Lei 10.639/2003, portanto, nasce para desestabilizar o status quo de forma a alterar, estruturalmente, a formação educacional de pessoas em território brasileiro. “Ela nos permite refletir como se dão os mecanismos de educação na prática e, também, como a gente lê as obras. Quais são os nossos referenciais estéticos para conseguir isso? Como é possível entender Picasso a partir da arte africana, por exemplo? Como a branquitude estrutura todo o nosso sistema? Essas são questões que ainda vão nos acompanhar por muito tempo, mas eu acredito que o primeiro passo foi dado”.