Criado pelo ambientalista estadunidense Thomas Lovejoy, o termo biodiversidade se refere à grande variedade de seres vivos presentes em um lugar específico. Apesar de um longo histórico de exploração colonial, o Brasil, assim como países africanos e outras terras localizadas abaixo da Linha do Equador, ainda podem se vangloriar de uma rica biodiversidade ainda preservada, com florestas em pé, animais nativos e uma grande variedade de plantas. Para a engenheira florestal e professora Angela Maria da Silva Gomes, isso se deve ao fato de que, no nosso país, a relação com a natureza possui uma ancestralidade advinda de África, assim como de modos de vida característicos aos povos nativos do nosso continente. 

“Nem todos os países do planeta utilizaram seus recursos naturais da mesma forma. Enquanto uns enxergam a natureza como fonte de recursos, outros acreditam em sua dimensão sagrada. No Brasil, apesar dos colonos terem saqueado massivamente uma série de espécies da nossa natureza, a presença forçada dos escravos e também dos indígenas nos deixou de herança uma relação de proximidade e cuidado com o que a natureza nos dá. Não é a toa que costumamos cultivar plantas em casa e atribuir a elas um significado, que pode tanto ser ornamental quanto pode se aproximar do sagrado, da proteção”, contextualiza Angela, ao iniciar o curso Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.

A pesquisadora nos apresenta a um conceito de biodiversidade relacionado aos povos do sul global, extrapolando a dimensão física e quantitativa da variedade de flora, fauna, fungos e microorganismos, bem como suas específicas variedade genéticas que caracteriza o pensamento dos povos do norte. Segundo muitos povos indígenas e africanos, a biodiversidade se associa a uma noção ancestral ainda pouco discutida, mas ainda assim presente no cotidiano. “O que caracteriza esses grupos é pensar a natureza como uma extensão da vida. Eles entendem a necessidade dela para a sobrevivência – seja por meio da agricultura ou pelo poder místico que ela carrega – e respeitam seus limites. 

Além disso, a pesquisadora destaca relações diretas entre a biodiversidade e a condição econômica de um país. Segundo ela, as regiões mais biodiversas estão, inquestionavelmente, nos países mais pobres – dentro das cidades, estariam nos “quintais dos favelados e bairros dos menos favorecidos”. Às pessoas que possuem esse tipo de cuidado com as plantas, ela atribui uma cosmovisão que valoriza a biodiversidade, ou seja, uma postura diante do mundo em que estar perto da natureza é indispensável.

“Isso acontece porque temos uma história ancestral que nos ensinou a valorizar as plantas, e também porque nos sentimos bem quando cuidamos delas, reforçando a ideia de que elas não foram feitas só para comer. As comunidades africanas, na diáspora, criaram formas de saber e descobriram maneiras de tirar sustento das dádivas da diversidade da natureza, e podemos dizer que isso está presente até hoje no imaginário de algumas pessoas”, analisa. 

Terreiros, quilombos e quintais

Partindo do princípio de que as comunidades negras são importantes responsáveis por cuidar da biodiversidade dos locais onde estão instaladas, Angela Maria desenvolveu a tese “Rotas e diálogos de saberes da etnobotânica transatlântica negro-africana: Terreiros, quilombos e quintais da Grande BH”, em 2009, para a obtenção do título de doutora em Etnobotânica. No trabalho, ela destaca questões como a relação entre técnica e mitos, entre as divindades ligadas à terra e o legado africano e seu impacto sobre a biodiversidade brasileira.

“Desde a chegada dos colonizadores, os povos tradicionais que aqui viviam já praticavam uma série de técnicas consideradas, à época, ʽprimitivasʼ. Ao longo dos anos, a própria ciência, sob a forma da Engenharia Ambiental e da Agronomia, por exemplo, foi incorporando esses conhecimentos e hábitos. Quem já foi na roça sabe que se planta milho com feijão. Isso, provavelmente, pode ser explicado pelas pessoas mais velhas por meio de mitos que estão presentes nas famílias há gerações. Entretanto, hoje isso é uma teoria acadêmica. Portanto, o que a ciência moderna chama de probabilidade, os povos tradicionais chamam de mito. A diferença que existe aí é simplesmente nominal”, defende.

Isso também está ligado à maneira como hábitos e conhecimentos também podem ganhar uma dimensão mística fortemente associada a uma determinada planta, assim como às formas de preparo de um determinado chá ou banho. “O nome farmacopeia – isto é, a arte de preparar e compor medicamentos – existe agora, mas, antigamente, já existia a prática. Os negros não tinham acesso a fármacos e farmacêuticos, mas possuíam conhecimentos de folhas e uma espécie de magia que priorizava elementos da natureza”.

Para Angela, o impacto desse uso carrega uma relação intrínseca com a história do Brasil, reafirmando a influência africana na construção da identidade nacional. “Isso não está somente na maneira como nos relacionamos com a natureza, mantendo plantas em casa e fazendo chás para tratar determinados estados de saúde. A cultura africana está presente nas nossas conversas, quando utilizamos palavras ioruba e banto para nos comunicarmos uns com os outros; está na nossa mesa, quando comemos arroz e feijão, que também é de origem africana; está quando vamos na benzedeira para buscar cura. Isso tudo só comprova que, na diáspora, além de um massivo tráfico humano, também aconteceu o tráfico de conhecimentos e saberes fortemente presentes em nosso cotidiano”, conclui.