CAMPO – Plataforma Pedagógica Experimental

A CAMPO tem se constituído como um processo imanente, em um jogo que põe em tensão nossa posição de pensadores-fazedores de formas implicadas na materialidade conturbada do presente, produtoras de conexões sempre inesperadas. Os espaços entre as disciplinas constituem margens férteis e densamente povoadas por singularidades, como acontece nos encontros entre biomas. A experimentação nas costuras da pedagogia, da arte, do design, da curadoria e da ação socioambiental se dá na tessitura de redes vivas com outros jogadores, de estruturas capazes de ser afetadas por seus encontros. Essa maleabilidade estrutural vincula corpos, paisagens e territórios localizados, percursos éticos distintos, mas pavimentados de maneiras coletivas. Seu movimento molda seus tentáculos, seus ensaios de invenção na transmissão e vice-versa. Sua potência está na imprevisibilidade mesma de um vetor que imanta e impele a criação de possíveis entre alteridades – aprender a aprender, recursivamente.

Tal qual uma muvuca de sementes, plantamos aqui caminhos de pensamentos que atravessam uma experiência coletiva de modo a situá-los em um campo comum para deixar emergir uma paisagem. Mesmo na amálgama da muvuca, o tempo e o espaço que cada semente reivindica para seu processo de crescimento cria a estrutura por vir. Em um ecossistema agroflorestal, as sementes de ciclo curto preparam o solo para as espécies de ciclo mais longo, e assim sucessivamente. “Quanto maior a biodiversidade, maior será a estabilidade do sistema”. O que constitui a convivência agroflorestal é também o manejo, isto é, as intervenções de múltiplos seres na potencialização de ciclos produtores de vida. Aqui há também um manejo das sementes e dos brotos referentes às pulsões de cada qual. São encontros situados entre territórios, comunidades, corpos e infraestruturas.

Em certo sentido, nossas experimentações se dirigem sempre ao estar em relação a. Em nosso percurso, ainda verde, nos orientamos a todo momento por um desejo de articulação. Inicialmente, desejávamos nos articular entre nós, encontrando potência na soma de nossas práticas e nossos desejos pedagógicos. Hoje, entendemos nossa atividade primordialmente como a catalisação de encontros e diálogos. Assumimos um papel de articular articulações, empenhando recursos no fortalecimento de redes de ação. Nossa experimentação pedagógica se dá no cruzamento de experiências pedagógicas, implementadas por nós mesmas ou por outrem. 

Atualmente, contamos com três principais espaços a partir dos quais procuramos promover esses cruzamentos: os grupos de estudos, nos quais reunimos conjuntos diversos de pessoas que se engajam em uma produção coletiva de conhecimento a partir de eixos temáticos predefinidos; o Várzea, programa de fomento para projetos artístico-pedagógico-ambientais que apoia e acompanha o desenvolvimento de uma proposta selecionada em chamada aberta; e as conversas públicas, que visam a apresentar e aprofundar projetos e ideias que dizem respeito a práticas de educação fora dos registros normativos. Neste momento, conduzimos um ciclo de falas sob o título Pedagogias situadas nas paisagens, que conta com colaborações de articuladores de projetos de enorme força: Yakuy Tubinambá, do Levanta Amotara Zabelê (BA), Ana Santos, do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (RJ), Sueli e Isael Maxakali, da Aldeia-Escola Floresta (MG) e Joelson Ferreira e Erahsto Felício, da Teia dos Povos (BA).

Quais são as tecnologias de relação que podemos desenvolver? Que infraestruturas havemos de desenhar para o encontro radical entre pessoas, grupos, projetos, lugares? Para a promiscuidade entre os saberes, o emaranhamento dos campos? Nós nos constituímos em plena pandemia, em um momento em que as telas se tornaram o anteparo do mundo, símbolo da frustração da presença interditada. No entanto, esse mesmo dispositivo nos possibilitou desenvolver uma coletividade transgeográfica, conectando pontos entre o Rio de Janeiro, São Paulo, São Gonçalo, Botucatu, Santo Antônio do Pinhal, Itamonte e outras localidades mais ou menos remotas entre si, e mais ou menos visíveis para nós, que foram se juntando a essa cartografia relacional. Nosso edital de participação para o Várzea foi concebido como um mecanismo de seleção que removesse o máximo de barreiras para a participação e pudesse incluir variadas manifestações de interesse, e, como uma consequência quase acidental, se tornou um repositório de projetos correlatos ao redor do país, uma imagem de interesses compartilhados e atomizados através de dimensões continentais, uma rede potencial de atuação solidária. Seguimos tentando moldar as disposições dos recursos ao nosso alcance em direção à criação de espaços comuns. Os encontros geram encontros que geram encontros. Estar em relação pressupõe imaginar outras relações que ainda não traçamos. Seguimos buscando-as.

Setenta iniciativas que habitam as margens entre a experimentação pedagógica, as artes  visuais e a ação socioambiental em catorze estados do Brasil responderam à chamada aberta do programa várzea 22, voltado ao desenvolvimento e à publicação de pesquisas educativas praticadas em contextos comunitários que levem em conta as complexidades ecológicas de suas biorregiões. 

As seguintes falas são parte da conversa pública que aconteceu virtualmente, em março de 2022, entre proponentes dos projetos. Na ocasião, procuramos reunir esses agentes de diferentes contextos para um compartilhamento de práticas e um diálogo sobre possibilidades de articulação. Interessava fissurar a unilateralidade do edital para gerar atravessamentos entre grupos que pensam e produzem formas de organização coletivas a partir de distintas alianças multiespecíficas, em variadas estratégias de enfrentamento e reencantamento no cotidiano.

Como em uma paisagem florestal, a diversidade contaminada de relatos conforma uma assembleia de vozes e lugares incomuns, mas que partilham afecções e responsabilidades situadas em seus territórios. Ela aterra os acoplamentos da CAMPO em um solo fecundo e ancestral, uma trama de nós que convoca à sua continuidade. 

Pedro Zylbersztajn [CAMPO]: Se a gente está falando de paisagem, de especificidade, de conhecimento situado, de comunidades situadas em determinados lugares, como a gente faz essas coisas conversarem? Se elas são tão específicas assim, como é que projetos que estão lidando com coisas muito diferentes vão se comunicar? Qual é a conversa possível entre a pessoa que está trabalhando com as bordadeiras em Lagoinhas e a pessoa que está trabalhando com o buraco da mina? Ou a cultura de areia em Abaeté? Por um lado, é uma pergunta que eu gostaria de levantar e ouvir vocês, mas, para mim, ficou uma pista com o que a Clara falou, que é esse compromisso com a comunidade… E um compromisso da comunidade com as paisagens também. Qual é a forma de articular isso?

Taís Lobo [Ancestrais do Futuro – Conceição da Barra (ES)]: Eu fiquei pensando nisso também e vejo como isso se conecta no processo de projetos políticos… Projetos políticos que têm a ver com a manutenção de um território, com a paisagem em absoluto. É um processo cosmológico mesmo, de resistência e de manutenção de tradições que vem de muito tempo. Então, vejo um embate com os poderes hegemônicos, de todos esses trabalhos dos poderes hegemônicos de construção de outras paisagens, que passam por cima dos territórios e de quem vive nele. Fico pensando que o que vejo em comum é exatamente esse encontro que tem a ver com como se foram ocupando os territórios dentro de todo o processo colonial. O que tem de comum é um processo de irmandade, a princípio, mas também esse olhar de proteção mesmo… de pensar em como proteger esse espaço, como proteger essa paisagem e ver toda essa paisagem e todo esse território como um ser vivente com todes que estão ali. Por isso se fala em racismo ambiental também, que é esse processo. 

Ana Beatriz Novais [Fotografia com Celular: uma ferramenta de transformação social – Rio de Janeiro (RJ)]: Ouvindo a Taís falar, e depois de ter ouvido todo mundo… pensando nisso, o que a gente consegue pegar do discurso de todes aqui é essa valorização dos territórios e pessoas. As pessoas que conhecem a história daquele território e estão lutando para manter essa história viva, ou que estão construindo ou tentando resgatar uma história, um olhar para aquele território. Enfim, são muitas as possibilidades, são muitas as vertentes aqui, mas é basicamente isso que une a gente, que poderia fazer esses projetos todos fazerem sentido em qualquer lugar. A gente entende tudo que está sendo falado aqui porque a gente está lutando pela valorização dessas pessoas. Seja no interior, seja numa favela, seja no subúrbio, em diversas comunidades diferentes. Isso é o que corta a gente, essa valorização, essas histórias que fazem parte da nossa história ou não; às vezes, é um encontro no meio da vida que faz muito sentido, e a gente se doa para essa causa. É a história de muita gente aqui também.

Fernando Hermógenes [Resistir – São Joaquim de Bicas (MG)]: Moro numa cidade chamada São Joaquim de Bicas e o bairro onde eu fui trabalhar, eu nunca tinha visitado aquele bairro. E foi andando com as crianças pela estrada afora que a gente passou pela cerca e viu um terreno imenso… Quando a gente entrou, eu fiquei chocado com o que eu vi. Naquele momento só tinha os quadrados de concreto no chão, onde seriam os alojamentos – que foram construídos, mas, por causa dos problemas que o Eike Batista teve, a ordem foi: “saiam, abandonem o alojamento”… E depois desse encontro que eu tive com esse lugar, com essa história, com essa violência, com tudo isso, é interessante como todos os meus caminhos atravessam aquele bairro agora… Eu falo disso o tempo todo, é uma constante na minha vida, é uma constante no meu trabalho, é uma constante no meu pensamento. E é algo que, se fosse de outra forma, se não fosse meu trabalho com educação, por exemplo, provavelmente eu ficaria alheio a essa realidade. E aí, sim, a gente se envolve com essa parada porque a violência nos incomoda. A violência incomoda… A gente não fica parado… Não estou pensando num projeto partidário, por assim dizer, mas naquilo em que a gente fica pessoalmente implicado… Na minha cidade tem o risco de estourar uma barragem que vai pegar a cidade toda… Então é muito fácil: você constrói qualquer coisa, abandona qualquer coisa. Você destrói qualquer ambiente e dá o fora, e ninguém vai ver aquilo ali acontecer. E aí nos atravessa, exatamente como a Ana Bia colocou aqui.

Renan Ribeiro [Mapeando Memórias – Guarulhos (SP)]: Eu acho muito doido na fala de todo mundo como o Estado ou esses grupos hegemônicos têm muito poder em relação ao espaço-território, e um poder de remodelar isso por completo, sem levar em consideração os interesses da população local que está ali naquele espaço, território ou paisagem, especificamente, e sem levar em consideração seus ritos, seus saberes inventariados ou patrimonializados no geral… A Ecléa Bosi vai falar bastante sobre como a gente precisa memoriar essas iniciativas, porque a memória não vai caminhar pelo ar. A gente precisa de coisas, de memórias fixas e tangíveis pra gente lembrar do passado também… Dá para pensar também nas medidas que essas pessoas que estavam nesses espaços-territórios vão utilizar para se manter vivos… É muito doido pensar nessas narrativas de tensionamento também. Porque ‘resistência’ e uma palavra muito complicada hoje em dia; resistir é foda, mas tensionar é muito mais complicado ainda… Talvez ‘resistência’ não seja nem a melhor palavra, mas ‘insistência’ também. Clara Domingas [Saberes e Fazeres da “Cultura de areia”: patrimônios de todos nós – Salvador (BA)]: Que difícil essa briga, né? É na verdade uma briga contra o desencanto, porque acho que, em todos os projetos, a gente está tentando resgatar uma complexidade maior quando se pensa em paisagem. O que acontece é que essas intervenções, essas decisões políticas, elas tratam a paisagem como um pano de fundo que se pode alterar. É uma vertente de pensamento muito dominadora, e no fundo acho que a gente está querendo combater esse modus operandi. Como é que a gente vai proteger uma cultura, um território, um saber, se as coisas acontecem dessa maneira, sem considerar sociabilidades outras, sem considerar rios, matas, pedras como seres e agentes políticos, que estão ali fazendo coisas acontecer o tempo inteiro, e a gente brutalizou tanto nossa maneira de viver… É isso que eu sempre aprendo e reaprendo lidando com esse modo de vida mais ligado a esses elementais… São modos de subsistência que estão mesmo sendo exterminados. E a gente não tem nem tempo hábil de elaborar alguma saída para isso, a não ser tentando sensibilizar… A gente começa a entender que, se não for junto, não rola…Tem que ir forçando, tanto bate até que fura um pouquinho… Fazer que nem a água na pedra – água na pedra.