Convidada a conduzir um encontro do curso Transversalidades realizado em março de 2021, a professora e pesquisadora Luiza Christov traz uma bagagem enorme de experiências em seu currículo. Sua fala, entretanto, é o contrário do que se poderia esperar de alguém com tanto repertório acadêmico. Luiza se posiciona em um lugar muito caro de cuidado, também em relação ao campo de pesquisa a que se dedica: uma escrita que aproxima e não que afasta, uma escrita que não seja arrogante. As duas horas de duração do encontro se constituíram a partir de uma troca bastante afetiva, dispensando a necessidade de muitos recursos digitais além de sua própria fala. E o tempo passou voando.

Trazendo experiências ligadas a escolas, órgãos públicos e instituições culturais, Luiza fala sobre a formação de educadores e arte educadores, assim como aborda uma escrita reflexiva que tem em si várias potências. Ela mostra o incômodo que o termo “formação” desperta em relação à atividade que realmente se propõe, mesmo entendendo que se trata de um conceito já normatizado e constituinte de um campo de atuação existente.

A convidada nos lembra que a palavra “formação” denota “pôr na forma”, “padronizar” e “moldar”. A esse respeito, ela traz ainda referências a outros autores: Paulo Freire diz que “ninguém educa ninguém”; Antonio Gramsci pensa que “todos os homens são filósofos porque são capazes de pensar sobre sua experiência”.A partir dessas visões, Luiza sugere a substituição do termo – ou pelo menos de sua intenção – por expressões como “oportunidade de reflexão” ou ainda “encontros reflexivos” sobre a experiência educadora, para ir de encontro com a nossa experiência, individual e coletiva, e não a de um mestre só.

Ainda nesse contexto, Luiza frisa a importância da não-hierarquização dos saberes: em sua visão, por exemplo, a literatura está no mesmo lugar e tem a mesma potência que os demais saberes, com poderes de “ampliar nosso modo de ver o mundo, de dizer o mundo, de pensar o mundo”.

Escrita e experiência

Se muitas vezes somos inclinados a pensar e escrever sobre nossas experiências de forma acadêmica, colocando-a nas tais “fôrmas” citadas anteriormente,a conversa com Luiza Christov pode nos servir como uma matrioska: aquelas bonecas russas, feitas de madeira, colocadas uma dentro da outra, da maior até a menor. Ao longo do encontro, podemos entender e desconstruir, junto com a convidada, cada uma dessas “forminhas”, uma dentro da outra.

Por exemplo: na literatura acadêmica, as referências – em sua maioria bibliográficas – têm grande valor, servindo como uma validação de construções que seriam apenas “achismos”, pensamentos “sem fundamento” ou sem “base teórica”, restritos apenas à autora ou ao autor do respectivo texto. Por outro lado, nas situações em que um pensamento já foi “pensado” e devidamente publicado, é a ele que o narrador deve recorrer para dar os devidos créditos – afinal, geralmente não estamos “inventando a roda”, como diz a antiga expressão.

No decorrer do encontro, Luiza faz um convite para quebrarmos essa visão tradicional e acadêmica de que “só alguns podem escrever o mundo” e aos demais caberia apenas referenciar essa escrita. Como pedagoga e pesquisadora, ela nos convida a pensar que referências não vêm só “de celebridades”– e que podemos e devemos recorrer, durante a escrita, às nossas experiências pessoais e cotidianas, aos nossos devaneios, nossas conversas e afetos. A partir de estratégias como essas, podemos alcançar uma escrita que esteja realmente mais próxima de nós mesmos, capaz de se aproximar e acolher quem a lê ou escuta.

Potências da palavra

Transcrevo abaixo as potências associadas por Luiza Christov ao campo da literatura, tomada em seu sentido mais amplo: a palavra escrita, a poesia e toda a escrita literária.

Ser palavra-experiência: a palavra é algo que nos acontece, nos comove, nos toca e nos afeta; é algo que nos faz sentir o mundo. Imaginada e traçada no papel, trata-se de uma palavra corpo, que faz conectar com o mundo o ser humano que lê e aquele que escreve. A palavra rompe com a anestesia e a indiferença: é estética (aisthesis).

Ser deslocamento: a palavra tem o poder de nos levar para outros lugares. Ela nos conduz para territórios diferentes dos nossos e para experiências com as quais podemos nos identificar e nos aproximar.

Ser palavra habitada: a palavra tem o poder de habitar e ser habitada por corpos conectados e em relação. Ela descreve relações comovidas, intensas, emocionadas, fincadas em territórios; relações “sujas de mundo” e, ao mesmo tempo, iluminadas por ele.

Ser palavra-inventiva: a palavra tem a potência de ser imagem: de imaginar e poder criar o real. Tem ao mesmo tempo o poder de retorno e de compromisso com o real, partindo da realidade para a imaginação.

Ser palavra encarnada: a palavra tem a potência de reverberar em nossos corpos. Refere-se a realidades que nos tocam, aos nossos sentidos, sentimentos e desejos, demonstrando o poder de acessar várias camadas do ser humano.

Pensamento como isca

Por fim, Luiza fala um pouco sobre algumas limitações que os conceitos podem conferir ao pensamento, sobretudo quando fechados em si. “Quando a gente apresenta um conceito segundo uma autora ou um autor, a gente fecha a conversa em uma imagem, em uma definição oferecida – com a qual podemos concordar ou discordar”. Como exemplos, ela traz situações em que a abordagem de conceitos teóricos levavam ao silêncio do grupo: não um silêncio de reflexão, mas outro, motivado pela noção de que nada mais precisaria ser acrescentado àquele pensamento – em outras palavras: que não havia mais nada a ser pensado porque o autor já o havia feito e descrito.

Sua intenção não é diminuir o valor dos discursos conceituais derivados de pesquisas, entendidos como termos chaves para facilitar nossa compreensão de mundo. Em vez disso, a professora propõe convidar a literatura a uma aliança com as artes: Luiza incentiva que a arte e a literatura “preencham de imagens os conceitos com os quais construímos nossos repertórios de pesquisadores, educadores, formadores em geral”. Segundo ela, a arte possibilita novas leituras e narrativas que podem facilitar uma aproximação reflexiva em relação a cada conceito a partir do uso de imagens, seja em fotografias, vídeos, desenhos ou outras linguagens.

A fala de Luiza é tão encantadora e, repito, tão cuidadosa quanto a escrita que nos provoca a pensar. Fazendo referência a uma fala do escritor José de Alencar, ela nos mostra como unir a escrita à imagem para que não esgotemos de perguntas os conceitos do mundo: “O ponto de interrogação é um anzol, ou seja, pode pescar nosso pensamento: lançamos aquele anzol como isca para que venha nosso pensamento”.

Se pensamos dessa forma, podemos nos tornar pescadores contadores de histórias, entendendo essa atitude como modo de explorar escritas autobiográficas. Como modo de narrar-se, escrever-se e se aproximar da própria experiência a partir da escrita. Como um convite desafiador perguntar a si mesmo e confrontar as respostas que eventualmente surgirão quando encarnamos, habitamos, inventamos e nos deixamos deslocar a partir da palavra.