Desde o pioneiro cineasta George Méliès (1861-1938), o cinema é reconhecido como um dispositivo que torna possível a criação de mundos oníricos. Bons exemplos disso são as animações contemporâneas, assim como os filmes de super-heróis que, de tempos em tempos lotam as salas de cinema. Retratando, em geral, situações distantes da realidade, essas obras nos convidam a um imaginário somente possível a partir das tecnologias da imagem. Remontar o surgimento dessas paisagens oníricas, portanto, é também promover uma revisão histórica que expõe momentos decisivos do cinema.
Essa foi a abordagem adotada pela pesquisadora Lila Foster ao conduzir a edição de junho de 2019 do Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. O curso propôs uma reflexão a partir da origem da sétima arte, expondo as vertentes criativas que perpassam os primeiros experimentos cinematográficos, a história da animação, o cinema experimental e ainda as produções contemporâneas de cineastas como Tim Burton, cujo processo criativo foi tema da exposição “A Beleza Sombria dos Monstros”, então em cartaz no CCBB DF.
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“A história oficial tende a ver o nascimento do cinema como o dia em que se projetou imagens em movimento, em uma sala escura, com venda de ingressos, para um determinado grupo de pessoas. Isso ocorreu no ano de 1895 e foi realizado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, considerados hoje os pais do cinema”, relembra Lila. Segundo ela, o resgate dessa narrativa, também aliada ao trabalho desenvolvido por Méliès em “Viagem à Lua” (1902), exemplifica como o cinema engendra a materialização visual de imagens que até então só seriam possíveis em sonhos: um trem em movimento que amedronta os espectadores na plateia ou ainda a chegada do homem à Lua.
Entretanto, conforme comenta a pesquisadora, é importante destacar o amplo caminho de invenção que tornou possível a transformação de imagens estáticas em imagens em movimento. “Essa trilha que, ao final, dá origem ao cinema, deve muito à ciência e também aos espetáculos de mágica. É o que podemos chamar de pré-cinema, quando as coisas se desenvolviam entre a ciência e o sonho”.
Diante disso, ela destaca a importância de aparelhos ópticos como o pouco conhecido zoopraxiscópio, uma espécie de disco acoplado a uma manivela que, ao ser girado, intercala imagens de um mesmo objeto em posições diferentes, gerando um efeito de movimento. Como adianta o significado de seu nome, o aparelho possibilitou uma nova maneira de observar a vida humana e o mundo ao nosso redor, criando realidades outras e imaginárias. A partir de iniciativas como essas, o cinema pôde se constituir como um veículo para alavancar a experiência humana a outras dimensões.
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Para além da narrativa
Após a exibição de alguns curtas considerados fundamentais na história do cinema, Lila Foster discute a relevância de trabalhos cinematográficos cujo andamento está descolado da maneira como geralmente concebemos as narrativas – notadamente um caminho linear. A pesquisadora se refere ao cinema experimental, apresentado em oposição ao dito cinema comercial. “Esse é um tipo de cinema que rompe com a linguagem narrativa linear e constrói universos oníricos em seu cerne, a partir de uma ordem outra, compreendida aqui como de livre associação dos sonhos, de constructos por ora inacabados e rarefeitos. Não se trata de produzir filmes herméticos, mas de fazer com que o ato de assisti-los não se esgote no entretenimento, mas produza novos significados a partir da reflexão”, defende.
Trata-se, exemplifica a pesquisadora, de filmes que carregam consigo uma dose de surrealismo, desviando-se da uma lógica de começo-meio-e-fim e frequentemente acionando outros dispositivos relacionais para sua produção. “Eles acabam por seguir, de certo modo, os preceitos do Manifesto Surrealista (1924) de André Breton. É curioso porque muitos deles não rompem com uma lógica, mas se dispõem à construção de outra”, contextualiza a artista, fazendo referência a um movimento artístico ligado ao automatismo psíquico, tendo como premissa a suspensão da razão e de quaisquer preocupações estéticas ou morais.
A partir dessas lógicas outras, torna-se possível criar mundos imaginários que são não só distantes da realidade, como também ensinam sobre a manufatura do cinema. É esse o caso, por exemplo, dos curtas que utilizam materiais diversos como luz e sombra ou até mesmo recortes em papel. No caso específico de Tim Burton, seus mundos ditos estranhos e oníricos ganham projeção justamente por conta da esquisitice que apresentam. A pesquisadora pontua que o cinema produzido por ele, principalmente no início de sua carreira, podem estar bastante atrelados a expressão de sentimentos.
“Temos o hábito de não considerar o cinema como uma expressão muito sentimental, e cineastas como Tim Burton estavam utilizando o cinema para se expressar. Ele era uma criança quieta, por exemplo, e o primeiro lampejo dos mundos sombrios que iria criar está no curta ‘Vincent’ (1982). Nele, é possível compreender como o autor transforma algumas de suas angústias em produção cinematográfica”, comenta.
Cinema e educação
Lila Foster também levanta o debate a respeito da relevância e potência do curta-metragem em sala de aula. “O cinema já é instrumento de educação, mas, em termos práticos: como prender a atenção de crianças e adolescentes por uma hora seguida? Temos uma ferramenta importante com a produção nacional de curta-metragens, que trata de diversos temas em plataformas públicas”, pontua.
Para ela, esse lugar que o cinema tem ocupado dentro de sala de aula é importante a medida em que aproxima crianças, adolescentes e adultos da construção de suas próprias narrativas, sejam elas baseadas no mundo concreto, ou na imaginação. “Vivemos sob uma alienação quase total do imaginário produzido pelo cinema brasileiro. No fundo, a gente vive num país que não conhece as próprias produções cinematográficas e isso precisa mudar. Os curta-metragens são uma ótima porta de entrada, e a produção no Brasil é prolífica”.