Desde que começou a pandemia de Covid-19, a vida humana passou por transformações radicais que afetaram diretamente nossas relações sociais. Nossos hábitos mudaram, e fomos forçados a repensar nossas rotinas. Nunca vivemos tão intensamente um distanciamento – necessário – daqueles que amamos. Em tempos tão difíceis, muitas famílias têm encontrado – e enfrentado – o grande desafio de restringir às próprias casas os únicos espaços possíveis para que suas crianças possam brincar.

Ao mesmo tempo em que tais dificuldades se fizeram presentes, também surgiram oportunidades de descobrir possíveis caminhos para o brincar. Nessa perspectiva, o Projeto Território do Brincar, desenvolvido por Elisa Hornett, Renata Meirelles e Soraia Chung Saura, desenvolveu um estudo a partir da conversa com 55 famílias que vivem em 18 países – e a partir desse estudo, produziu uma série de podcasts e um filme falando sobre o assunto.

Em maio de 2021, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação realizou uma edição do curso Transversalidades que nos trouxe este tema sensível e potente, nos instigando a refletir sobre a confiança que devemos ter no ato de brincar. Nas falas das nossas convidadas, vimos a importância de se ter um olhar e uma escuta ativos às crianças e ao quanto elas podem nos ensinar.

Realizada nos primeiros quatro meses da pandemia, a pesquisa desenvolvida pelo grupo se deu a partir da experimentação, ou seja, de uma observação atenta dos processos que envolvem o universo da brincadeira entre as crianças. Pensando nisso, surgem algumas perguntas: o que atravessa esse brincar? De que forma a restrição dos espaços pode ser usada a favor das famílias e das crianças?

Prezando pela diversidade, o Território do Brincar foi buscar famílias de todos os tipos – que vivem no Brasil ou no exterior, que possuem casas pequenas ou grandes, com muitas ou poucas crianças. E tudo isso se deu naturalmente. O projeto começou com famílias próximas às pesquisadoras, que foram indicando outras para participar da pesquisa. Essas famílias, por sua vez, indicaram outras, e depois outras, até chegar ao número de 55 famílias. E em todas havia um espaço para brincar.

O corpo e a reinvenção da casa

Como pontuado por Soraia, o movimento das crianças não pode ser contido em excesso porque, de um modo ou de outro, ele vai encontrar uma maneira de acontecer. Segundo ela, os corpos dos pequenos e das pequenas vão sempre buscar formas de produzir esse movimento, que pode estar presente, por exemplo, em móveis onde existe a “moleza”. Sofás e camas, portanto, frequentemente se transformam em lugares possíveis para a brincadeira, e não raro acontecem reorganizações dentro dos cômodos onde estão situados. Os móveis passam a compor um cenário, e as salas passam a ser lugares de dança que vão permitir a expressão e a expansão corporal das crianças. Nesses ambientes, percebemos ainda que as crianças comumente buscam se mostrar.

Enquanto vemos que a sala pode se tornar um grande palco, outros cômodos mostram que a relação das crianças com os próprios corpos tende a se dar de maneira diferente. No quarto, por exemplo, elas brincam menos e buscam um espaço onde possam ficar sozinhas. Brincam, então, com as miniaturas, simulando casinhas, carrinhos e bonequinhos. Nesses pequenos mundos e diálogos criados por elas, existe uma oralidade nas próprias narrativas: são as contações de histórias. Trata-se, portanto, de um brincar íntimo, sem muito acesso para os adultos.

Para além dos desafios impostos pela pandemia, nos deparamos – adultos e crianças – com a ideia de revisitar e redescobrir nossas casas. Se, antes, muitas famílias faziam a maior parte das suas atividades fora de casa, agora o lar passa a ser habitado, e isso nos leva a pensar: quais são as consequências de estar habitando a casa? Abrem-se, agora, espaços para brincar, e dentro de casa descobre-se lugares que antes não eram vistos.

Com o isolamento, a criança cria uma floresta no vaso de planta, empina uma pipa pela janela de casa e joga futebol na cama. Enquanto os adultos acabam limitando-se pelo espaço físico da casa, as crianças aproveitam esse espaço para além das suas dimensões reais. Após nos contar um relato de uma família em que essa questão da territorialidade era vista de forma distinta entre crianças e adultos, Elisa citou uma frase de Manoel Barros que pode sintetizar bem essa relação: “A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas”.

Em muitos relatos trazidos pelas convidadas, as crianças haviam construído casas dentro das casas. E, para isso, tudo era útil: caixas de papelão, panos, lençóis, cabos de vassoura etc. Perceber as potencialidades dos cômodos davam a cada espaço qualidades antes desconhecidas. Os quintais, por exemplo, deixavam de ser só espaços físicos e se constituíam como lugares de aproximação com as coisas do mundo, abrindo espaço para uma expansão dos sentidos.

A criança é um ser que acredita

Pautado nas evidências que chegavam às pesquisadoras, ou seja, construído com base nos relatos das famílias, o projeto nos faz refletir sobre o lugar de esperança das crianças – e também sobre como isso pode ser vivenciado em casa. A esse respeito, as convidadas lembraram do caso de uma família composta por uma criança e sua avó, que viviam em uma casa de apenas 7m2 e passavam por dificuldades. Porém, o espaço, mesmo sendo tão limitado, não impediu que a criança continuasse explorando o próprio brincar. Neste lugar de esperança, as atividades se reinventam.

Utilizando o ambiente da cozinha como exemplo, Renata Meirelles nos fala sobre a importância do “fazer com a mão” para o desenvolvimento da criança enquanto ser. A cozinha, afinal, é o ambiente onde a comida é preparada, onde as pessoas se reúnem e os fazeres manuais estão muito presentes. Quando um adulto permite a participação da criança nos processos culinários, vemos outra forma de interação que estimula o movimento, representando para as crianças um gesto de confiança e autonomia.

Em linhas gerais, a conversa com a equipe do projeto nos convida a refletir sobre como as crianças possuem o mecanismo de dizer “sim” à vida e também sobre como existe nelas um brincar comprometido consigo e com o outro. Brincar, afinal, é testar, buscar e pesquisar. Se pensássemos no oposto de brincar, muitos poderiam dizer que seria o trabalho, porém uma resposta mais adequada, na verdade, seria um estado no qual inexiste abertura de corpo e alma: um estado onde há traumas. Por essa razão, as pesquisadoras reforçaram o lugar de esperança das crianças, como se elas representassem o arquétipo de felicidade simples.

“É preciso confiar no brincar, porque brincar é vida”. Com essa potente afirmação trazida por Renata, o encontro se afirma como um convite a observarmos atentamente o que as crianças nos propõem, principalmente neste período tão cheio de incertezas. Com elas, podemos aprender a nos reinventar e compreender que o brincar é algo muito importante, que deve percorrer o nosso dia-a-dia e atravessar nossas existências.