Este texto refaz um percurso infinitas vezes atravessado. Infinito. Cada vez que me deparo com uma folha em branco na intenção de percorrê-lo, tenho a sensação de que já existe um trajeto percorrido, sobreposto pelas palavras que escolho trazer aqui. Consigo recuperar tanto as referências que me permitem tomar certas posições como dizer de algumas experiências que constituem o que costumamos chamar de repertório. Por outro lado, me vejo diante de um dilema: como deixar visíveis, organizar pensamentos e experiências? Como encaminhar um texto que dê conta de um acontecimento que é essencialmente prático, vivencial, performativo, radicalmente mutante, misterioso? 

Como descrever o conteúdo de um evento que se alimenta do agora, do fugaz e da faísca que acontece quando há encontros entre corpos, materialidades, substâncias e todo tipo de coisa que pesa, que sente, que reage? É nesse lugar nebuloso, precário, repleto de impermanência, que é o do trabalhador de museus, que se situa este texto. É um campo de trabalho e de produção constante de pensamento sobre o campo das artes visuais que muitas vezes não alcança a visibilidade, que corre por fora da academia, que se encerra na duração dos encontros com os públicos, mas também nas pré e pós-visitas.

1. O que é um arte-educador?

Tomamos por arte-educador, aqui, o profissional que se coloca no campo de atuação e pesquisa dos processos de aquisição e partilha de conhecimentos com e através de “fenômenos artísticos”. Tal denominação visa a compreender a vasta pluralidade de aparições sensíveis através das quais a arte se dá diante de nossos sentidos: a prática da arte educação já há muito não se destina exclusivamente ao que se acostumou chamar “obra de arte” em seu sentido estrito. Portanto, chamo de fenômeno artístico as formas de produção de presença que encontram seu destino final em formato de imagem

Ao se colocar nesse campo, o arte-educador deve também partir do pressuposto de que as situações nas quais tais formas de produção de presença são apresentadas devem ser capazes de produzir conhecimento a partir da peculiaridade de tal apresentação. Ou seja: há coisas que só podemos aprender quando estamos diante de um fenômeno artístico. Certas formas de rearticulação de nossos mundos só se efetuam quando as presenças que um fenômeno artístico enseja nos são apresentadas. O arte-educador torna visíveis as lacunas que os fenômenos artísticos introduzem na experiência dos públicos. Nessas lacunas deve ser possível entrever como a organização material que o artista deu às suas experiências apontam para modalidades de enraizamento no mundo – um  movimento que se dá a partir da fricção entre materialidade e alteridade.

O trabalho de um arte-educador se concentra, portanto, em dizer que a experiência do artista é um exemplo de como podemos nos apropriar da substância do mundo. Em outras palavras, trata-se de uma crença de que podemos aprender com os fenômenos artísticos a partir dessa exemplaridade. O arte-educador realiza seu trabalho enquanto pensa em formas de dizer, para seus públicos, como a complexidade (e, portanto, a eficácia) desse exemplo se dá através de formas poéticas. Logo, podemos afirmar, de saída, que seu ethos está alicerçado em uma convicção de que “não é possível não contar com a poesia. Ou: é preciso contar com a poesia” (NANCY, 2005, p. 32). É um ethos (e uma práxis) fundado no que a poesia pode nos ensinar.

2. O que um arte-educador faz?

A poesia, para o arte-educador, é um ponto de partida e uma escolha metodológica, mas, sobretudo, um fator que delimita seu lugar de atuação. Agamben define a poesia, ou o ato poético, a partir da perspectiva de um fazer amplo. Em seu texto A privação é como um rosto, o autor ressitua a poesia no âmbito da poiesis grega. Ele diz: “a poesia não designa aqui uma arte entre outras, mas é o nome do fazer mesmo do homem, daquele operar produtivo do qual o fazer artístico é apenas um exemplo eminente” (AGAMBEN, 2013, p. 103, grifo do autor). Dizer que a poesia é inescapável ao humano (e vice-e-versa) é dizer que o homem tem sobre o mundo um caráter poético – isto é, produtivo.

A definição abre o referido texto, e não caberá aqui aprofundar-nos na discussão levantada pelo autor, mas serve-nos de ponto de partida o fato de que Agamben recupera-a para tematizar o que ele chama de “crise da poiesis“, que se instala a partir de uma divisão (moderna) do trabalho entre manual e intelectual. Essa crise é exposta pelos próprios fenômenos artísticos surgidos na metade do século XX, mais especificamente o dadaísmo e a pop art. Os ready-mades duchampianos ou a pop art de Warhol operam uma intencional perversão e confusão entre as duas esferas da poiesis, pois “o que é reprodutível não pode se tornar original, e o que é irreprodutível não pode ser reproduzido. […] E é precisamente essa impossibilidade que confere tanto ao ready-made quanto à pop art todo o seu enigmático sentido” (AGAMBEN, 2013, p. 109). O que esse texto defende é que esse impasse define toda a atividade de um arte-educador. 

Diante dessa cisão paradigmática entre poiesis e techné, toda obra de arte aparece para o público como um fenômeno que está do outro lado de um abismo. Os fenômenos artísticos, sobretudo aqueles apresentados em contextos museais, aparecem para os públicos como algo do qual eles não podem participar. É uma questão de acesso e de partilha das ínfimas manifestações poéticas. O mundo torna-se lugar da técnica. A poesia está confinada a um lugar muito restrito, e caberá ao arte-educador operar um trabalho de rememoração, ancorado na presença do fenômeno artístico. A poesia está o tempo todo lá, à espera desse encontro definidor de nossas existências e subjetividades. A pergunta que o arte-educador se faz é: como pavimentar um caminho que atravesse esse abismo?

3. A poesia é o instrumento de trabalho do arte-educador

Há que se reaprender a encontrar a poesia, a retomar o caráter produtivo de nossas presenças no mundo, mas a poesia só é “encontrada” nas frestas, nas margens e é esta sua peculiaridade: a poesia é um encontro, é um deparar-se com. Dar sentido ao mundo através da poesia é ser re-apresentado a ele. E é a essa re-apresentação que o arte-educador está constantemente vinculado: um arte-educador aponta para as regiões do sensível nas quais o mundo é re-apresentado. Sensível é essa condição que medeia nossa relação com o mundo, é onde sua substância se dá a perceber. É o domínio das imagens, esses “seres” que vivem entre as coisas e nossa sensibilidade. É o lugar onde as imagens vivem: “o ser das formas quando elas estão no exterior, exiladas do próprio lugar”, diz Emanuele Coccia (2010, p. 25). O que o autor evidencia é que as imagens, no campo do sensível, existem, apesar de nós, como a imagem que permanece no espelho mesmo que não a olhemos. 

Esse mundo das imagens, o sensível, é um mundo no qual as imagens estão depositadas. É o que garante que elas nos toquem, nos requisitem. “Todo conhecimento, toda experiência, é um contato (continuatio) com esse espaço intermediário, é o resultado de uma contigüidade medial” (COCCIA, 2010, p. 37). As imagens estão atreladas a suportes, que o arte-educador usa como fragmentos nos quais as imagens existem e prolongam sua existência para além de sua natureza material e corpórea. As imagens sobrevivem aos meios aos quais estão vinculadas justamente por serem de uma categoria ontológica outra. O espelho, quando se quebra, não quebra consigo a imagem refletida: esta se mantém repousada sobre cada fragmento. Desse modo, diz ainda Coccia (2010, p. 39, grifo nosso), “as imagens – a realidade do sensível – tornam possível essa relação que é ao mesmo tempo imaterial e infra-racional: a possibilidade de ser afetado por algo sem ser fisicamente tocado por ele”. Somos tocados pelas imagens a partir da especificidade de sua apresentação – ou seja, de seus meios. Não é um toque físico, mas é um contato que extrapola o visual. 

4. O arte-educador aprende, com os públicos, que o mundo pode ser transformado

Somos capazes de receber o sensível, mas também somos capazes de transmiti-lo, de produzi-lo. A emissão de sensível depende, diretamente, da nossa capacidade de recepção. É uma dupla relação. “Todo meio transforma, então, a realidade em algo infinitamente apropriável salva substantia ac veritate rerum” (COCCIA, 2010, p. 40). Substantia ac veritate rerum: sem prejuízo da substância das coisas. Apropriar-se do mundo não é transformar o mundo, mas re-organizá-lo. Sua materialidade permanece, com suas propriedades características e seus modos de nos afetar. Cabe a nós perceber no mundo as frestas disponíveis para essa reorganização. Buscar no mundo essa potência ou, ao menos, dizer que essa potência existe, é uma das coisas que arte-educadores fazem.  

A disponibilidade dessas frestas é proporcional aos gestos que conhecemos para nos apropriarmos delas. A poesia não só aponta para as possibilidades de recepção e emissão de sensível. A partir dela, é possível inventar gestos capazes de dar conta de uma emissão de sensível mais ampla. Diremos, com Jean Galard, que se trata de “uma criação de gestos, isto é, da liberação de movimentos ainda não percebidos, devido ao deslocamento da sequência que os continha” (GALARD, 2008, p. 36).

Embora não tenhamos critérios causais para que o encontro entre gesto realizado e gesto percebido aconteça, existe sua carga simbólica e as repercussões que esse gesto causa no mundo. No gesto há algo que interrompe uma concatenação entre causa e efeito, inserindo entre ambos uma codificação que é compartilhada entre leitor e produtor do gesto, permitindo um tráfego de sentidos e significados. Segundo Flusser:

Os dois pontos focais, em torno dos quais gira nossa consideração em forma elíptica, seriam estes: uma “representação simbólica” e “algo distinto da razão”. Disso conclui-se que, quando interpreto gestos específicos como algo que é diferente da razão, me deparo com a “sintonia”. (FLUSSER, 1994, p. 13, tradução nossa). 

5. Ao arte-educador resta iluminar encontros

Se essa sintonia é capaz de conceder contornos simbólicos aos gestos, esse aspecto intersubjetivo passa a ocupar um lugar determinante no trabalho do arte-educador. Estar em sintonia com o (gesto do) outro é um exercício de engajamento que se torna o centro de suas práticas e ações. Isso porque os gestos lidos de forma intuitiva e cotidiana pelos sujeitos se apresentam de forma mais complexa no fenômeno artístico. Há algo peculiar ao sensível da obra de arte que faz com que o gesto artístico consiga engajar processos pedagógicos a partir de uma articulação entre alteridade e materialidade. 

Essa relação dialética entre ambos é o que dá o tom da abordagem do arte-educador. Como a subjetividade do ou da artista deve sensível? Como encontra o meio preciso para repousar em forma de imagem e assim nos tocar? O arte-educador cria situações nas quais essa sintonia se torna efetiva, em que o gesto pode ser que seja lido sem ser interpretado – ou melhor, em que o gesto “fale por si só”. Sua leitura se dá, precisamente, pela aparição, por sua reverberação material. Como se no encontro entre dois corpos o dos públicos e o dos fenômenos artísticos ambos dissessem o que são. O arte-educador deve, diante disso, criar situações nas quais os públicos se deem conta da complexidade desses encontros. Abre espaços na experiência para que a percepção receba aquelas emissões de sensível que se destinam a camadas mais complexas e amplas do que o sentido. 

Esse pressuposto, por sua vez, se formula para o arte-educador na forma de uma aposta: não há garantias de que o processo sucintamente descrito aqui irá se efetuar. Este texto buscou expor alguns termos dessa aposta, defendendo, sobretudo, que o ethos do arte-educador é precisamente um jogo com o acaso, com o improvável, com o risco implicado no encontro com um fenômeno artístico, mas é um trabalho de crença reiterada na mística contida nesses encontros fugazes, em que um coletivo temporário se reúne e se demora diante de uma imagem. Algum tipo de abertura se institui ali. Essa abertura é, ao mesmo tempo, experiência e elogio ao desejo que toma forma a partir dos gestos do artista e aos desejos que tomarão forma nos gestos de cada um de nós. Uma imagem transforma nosso modo de ver (e tocar) o mundo quando nos coloca diante de desejos depositados no sensível. E isso por si só já é um convite para que façamos o mesmo. 

Esse convite o arte-educador convoca o público a não recusar.

Bibliografia:

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

COCCIA, Emanuele. A Vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

FLUSSER, Vilém. Los gestos: Fenomenologia y Comunicacíon. Barcelona: Editorial Herder, 1994.

NANCY, Jean-Luc. Resistência da poesia. Lisboa: Editora Vendaval, 2005.