No texto “Glossário para uma futura filosofia da fotografia”, do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, encontramos a seguinte definição para a palavra imagem: “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente”. A imagem pode ser vista, portanto, como um espaço no qual as coisas fazem sentido a partir de uma relação determinada sobretudo pelo tipo de superfície sob a qual repousa a imagem. Imagens virtuais, por exemplo, proporcionam relações distintas das imagens “reais” e palpáveis, que se apresentam diante de nós em sua presença física. Toda imagem, então, é uma interface: uma categoria ontológica peculiar, pois implica na aparente independência dos meios que a veiculam e das mensagem que carregam.

É sobre essa aparente autonomia das imagens que nos fala Ramusyo Brasil em mais uma edição virtual do Transversalidades, realizada em fevereiro de 2021 Sua fala percorre os caminhos pelos quais uma imagem nos toca, nos seduz, molda nossas formas de agir, pensar e de nos relacionarmos, a partir das interfaces às quais estão ancoradas. Do ponto de vista de Ramusyo, essa falsa autonomia da imagem é essencial para que tenham êxito os efeitos desejados, vigorando em nossas vidas enquanto indivíduos, mas sobretudo como um corpo social.

Os modos de sedução da imagem

O pesquisador nos convida a pensar a imagem em um sentido mais amplo: se ela constitui nossas formas de pensar, enquanto materialização de algo que, no fim das contas, é linguagem, o quê (e como) cada imagem comunica? Seu ponto de partida é uma referência ao trabalho do pesquisador catalão Joseph Català em seu livro “A imagem de interface: representação audiovisual e conhecimento na era da complexidade”. Nos termos do autor, a “imagem de interface” não abrange apenas as tecnologias de ver e produzir imagens. Em sua obra, transitamos no amplo campo de uma produção de conhecimento que exige uma abordagem capaz de considerar, antes de tudo, os impactos éticos, estéticos e antropológicos desse espaço visual-virtual – a interface fundamental sob a qual repousam muitas das imagens com as quais nos relacionamos hoje.

Voltemos, com Ramusyo, ao universo da “proto-interface”, a partir de um exemplo bastante ilustrativo, relacionado aos retábulos do século XV. Os retábulos são modos de apresentação da imagem muito característicos da pintura flamenca, cujos temas eram predominantemente religiosos. Geralmente dispostos em altares de espaços cristãos de culto religioso, os retábulos são compostos por painéis dípticos, trípticos ou polípticos que remetem a uma sequência narrativa visual a partir da qual ensinamentos bíblicos são veiculados e colocados na esfera do comum.

Ou seja: é a partir de uma relação instaurada por imagens expostas em uma estrutura arquitetônica específica, sempre atrás do altar (daí vem a origem latina da palavra: retrotabulum), que uma narrativa é apresentada e adicionada ao discurso verbal disseminado nas igrejas e nos templos. Nesses contextos, as imagens povoam os retábulos – proto-interfaces – e seus efeitos sobre os espectadores daquela encenação são determinados pela forma como são exibidas.

A partir de estratégias como essas, a narrativa visual ganha, nas palavras de Ramusyo, “uma categoria pedagógica entre várias aspas”. Embora essa não seja a função constitutiva das imagens, elas fatalmente são capazes de transmitir conhecimentos e, ao mesmo tempo, de tornar visíveis as formas como esses conhecimentos são produzidos.

Imagens como metáforas do ver

Um salto na história da arte: dos retábulos do século XV até os primeiros aparelhos ópticos, muito populares entre os séculos XVII e XIX. Para Ramusyo, ali está uma lógica de controle do corpo e da visualidade que se mantém nos dispositivos eletrônicos contemporâneos. Esse é o caso das câmeras escuras, utilizadas largamente como recurso para representação visual. Na visão do pesquisador, esses aparatos são representativos de uma práxis da produção de imagens bastante própria à modernidade, mas também de uma certa “ecologia de saberes” que se mantém até os dias de hoje, constituindo-se como uma forma de compreender o mundo na qual representar e medir são sinônimos. O que Ramusyo observa nessas formas rudimentares de observar e traduzir o real é que já estão ali, entrelaçados, aspectos como imagem, controle, arte, saber e poder.

Outro salto histórico nos leva ao cinema, essa grande caixa escura dentro da qual estamos expostos a uma narrativa apresentada no decorrer de uma sequência de imagens. Ali surge um elemento primordial para uma imersão ainda mais irrefletida na interface: o tempo. A interface, nesse contexto, torna-se um projeto de desenvolvimento de uma visão de mundo, constituindo-se também como uma técnica e potencialmente como uma cultura. “A imagem aliada a técnica pode construir uma forma de olhar o mundo, um véu de Verônica através do qual a lucidez, mas também a opacidade, podem operar como formas de controle da opinião, do gosto e das formas de existir”, diz Ramusyo.

Uma logística da percepção

Mais do que representar o mundo, o cinema constrói o mundo. Por isso, nos dias atuais, a indústria cinematográfica é palco de disputas identitárias acirradas que ampliam a diversidade e representatividade das imagens produzidas pelo cinema e ao mesmo tempo jogam luz sobre as hegemonias ainda persistentes. Segundo Ramusyo, isso se deve ao fato de que o cinema ainda tem um lastro realista muito potente, surtindo efeitos muito poderosos sobre a experiência que vivemos diante de um filme.

O convidado se refere à sala de cinema como um lugar onde o paspatour está completamente voltado ao que está dentro do campo – dentro da tela. “O cinema é onde o contexto em que se dá a experiência vai ser completamente apagado em função da própria experiência”, diz Ramusyo. Para ele, isso tem implicações radicais e definitivas em nossa percepção e nosso campo cognitivo, o que se traduz em um momento em que nos comunicamos o tempo todo através de telas – sobretudo no momento atual, em que a comunicação à distância por vezes se constitui como o único campo de experiências intersubjetivas possíveis.

Essa nova forma de viver, em que nossas vidas se transportam para um campo de experiências cada vez menos palpáveis ao mesmo tempo em que somos conduzidos por entre uma infinidade de imagens, é cada vez mais uma realidade que se impõe. O sociólogo brasileiro Muniz Sodré associa a esse fenômeno o conceito de “bios virtual”: uma forma de vida que já está atrelada de modo incontornável ao mundo digital, conformando existências vividas estritamente através dos meios de comunicação em rede. Trata-se, na visão do convidado, de um contexto no qual o controle dos efeitos das imagens sobre nós é ainda mais expressivo e mais sutil: estamos falando, afinal, de um contexto no qual muitas relações são definidas e controladas por algoritmos. Nesse sentido, como garantir a sobrevivência das diferenças e das imagens que escapam às predefinições dos programadores?

Microtargeting: subjetividade como alvo

“Todos nós somos pequenos alvos a serem atingidos diariamente a partir daquilo que é chamado de pontos de contato, que são as formas pelas quais, a partir da nossa interação, nós nos deixamos revelar pela interface amigável”. A partir das falas e dos exemplos trazidos por Ramusyo, podemos pensar no encontro como um convite a perceber que esses pontos de contato entre nós e as imagens sempre existiram e sempre pautaram formas de controle e criação de visões de mundo.. No contexto do microtargeting, entendido como estratégia de marketing direcionado a partir de dados digitais colhidos anteriormente, o que acontece é que a interface precisa se articular muito pouco para que o controle tenha êxito: somos nós que instrumentalizamos a interface o tempo todo.

Ramusyo Brasil menciona o reconhecimento a partir de imagens, os cookies, os dados que, sem muito critério, aceitamos ceder ao nos cadastrarmos em algum site ou plataforma, a realidade aumentada, as redes sociais que recebem imagens produzidas por nós o tempo todo, os aplicativos de encontro que mapeiam desejos e padrões de interação afetiva, as imagens capturadas pelas câmeras dos nossos laptops. Ele nos convida a pensar sobre como as redes se moldaram a partir da análise de perfis psicológicos, individuais e comunitários, usando-os como subsídio para lidar com as complexas formas do social, introduzindo discursos que, de forma aparentemente não intencional, parecem ir ao encontro das complexidades e contradições próprias aos regimes democráticos.

Finalmente, Ramusyo Brasil nos desafia a pensar em como uma educação para as imagens pode complexificar nossas relações com o microtargeting. Aprender a ler uma imagem, assim como a compreender os efeitos e discursos que estão por trás da sua concepção, poderia nos tornar alvos mais difíceis? Como poderíamos subverter o circuito de circulação e influência das imagens em direção a um escape, mesmo que temporário, precário, mas capaz de oferecer formas mais críticas e sobretudo poéticas de lidar com as interfaces? Que imagens de nós mesmos podemos produzir para embaralhar a lógica que nos vê como alvos? O encontro com Ramusyo Brasil certamente não responde a essas perguntas, mas aponta a regiões de nossa vida social em que elas aparecem e se tornam urgentes.

Ao fim da conversa, testemunhamos um chat repleto de participações do público, trazendo questões e reações que demonstravam certa surpresa em relação ao que havia sido apresentado pelo convidado. Certamente, uma das pré condições da efetividade do controle a partir da imagem é esse constante estado de sono e vigília a que estamos condicionados, bem agora, diante de nossos computadores, celulares, e aplicativos – interfaces às quais nossas subjetividades estão fatalmente combinadas.