Certa noite, uma velha muito sábia me contou que memória fica guardada na ponta do nariz e que é despertada pelos cheiros. Quando sentimos o odor de algo significativo, as memórias começam a fazer cócegas e logo nos lembram das coisas. Essa velha é Dona Maria das Alembranças, mestra que habita mundos encantados, carregando a ciência da brincadeira, das conexões e da ancestralidade. Eu acredito que a graça da memória é que ela é sempre mais confusa, mais colorida, mais incompleta e mais inventada do que as coisas realmente são. O poeta Waly Salomão diz que “A memória é uma ilha de edição”. A mim me parece que tem um pouco de sonho dentro da memória e é por isso que, às vezes, cabem coisas que de fato não aconteceram na conta dessa edição. 

Dona Maria já vem me alembrando de muita coisa, me alembrou do meu caminho, me alembrou de celebrar as jornadas e, principalmente, me alembrou que sou eu quem crio chão pra vida ir seguindo em frente. Vou lhes contar algumas memórias (inventadas, sonhadas e acontecidas) que dizem sobre como Dona Maria se achegou em minha vida.  

O cheiro de suor desperta as alembranças de dança.

Assim que eu entrei no CCBB Educativo, na minha primeira semana de trabalho, aconteceu uma oficina de coco de roda, e esse foi meu primeiro contato com tal ritmo. Foi bem difícil pegar os passos, mas eu senti um acolhimento com o meu corpo que eu não conhecia em nenhum outro lugar. 

Acho importante informar que meu corpo é aleijado. Tenho me apropriado do termo “aleijado” num movimento de ressignificação, pois nunca vi essa palavra ser utilizada em contextos de apreço, de beleza, de força. É uma escolha política em prol de sugerir novos sentidos a essa expressão. Proponho o entendimento de corpos aleijados como corpos com deficiências, corpos enlouquecidos, ou corpos dissidentes no geral, que se identifiquem com tal vivência, corpo aleijado é qualquer corpo que tenha tido sua imagem tomada. 

A deficiência atravessa toda a minha existência, ora por meio da dor, ora por meio do encanto – são esses os campos em que eu opero. Nos últimos tempos, ter um corpo aleijado tem significado, para mim, viver uma experiência espiritual muito profunda. Não quero apresentar essa noção de modo raso, não é sobre uma relação religiosa, não é sobre ter a deficiência como castigo de vidas passadas mal resolvidas, ou como característica angelical. Tenho começado a entender a deficiência ou, como prefiro chamar, o “aleijo”, como mestre, percebendo essa maestria como um acúmulo atemporal de informações que se desenrolam sobre a minha vida como fio condutor de existência, trazendo uma noção, para o meu corpo, de que ele é capaz de transitar entre os campos metafísicos e carnais de um modo que o corpo sem deficiência nem sempre pode alcançar. Venho experimentando a lida com a deficiência a partir de uma lógica que se propõe a encantar a humanidade imbricada no “aleijo”. 

Entendo o corpo aleijado como produtor de saberes específicos do “aleijo”, saberes que geram a manutenção e a reafirmação da vida com deficiência, atuando no enfrentamento das violências que o capacitismo provoca. Todas essas perspectivas sobre o “aleijo” foram construídas no decorrer de um longo período; a minha relação com meu corpo só toma essa dimensão tão íntima depois de uma jornada dentro do que chamamos de culturas populares. E essa jornada se inicia ali, naquela primeira roda de coco de que participo. Até aquele momento eu habitava um corpo travado, amedrontado, um corpo desconhecido de si, tão estático que mal se dava conta das próprias disforias e das próprias euforias. 

Aquela roda de coco começa a girar o corpo imóvel, oferecendo ação, liberdade, suor, risada, dança. E tais movimentos e cheiros vão desgrudando as memórias da ponta do nariz, as memórias de quando eu era criança e brincava, desfrutando de todas as possibilidades da carne. Foi naquela roda de coco que me recordei de que eu parei de balançar o corpo. Hoje, eu tenho certeza de que foi ali meu primeiro contato com Dona Maria. Então, eu deixei a dança passear por mim, mesmo ainda sem entender o que eu sentia, me entreguei sem entender a força da roda, sem entender que meu corpo clamava por voltar para a brincadeira. Ali, eu escutei a voz de Dona Maria, rindo do ranger do corpo enferrujado se remexendo pela primeira vez em muitos anos. Ali, eu comecei a despertar. E não fazia ideia de o quanto esse despertar transformaria minha existência. 

Se quiser conhecer melhor a Dona Maria das Alembranças: https://www.youtube.com/channel/UCvkVMw3jTdht1ivngEYkhVA

Vento tem cheiro? 

Antes de a Dona Maria se materializar na minha frente, ela enviou outro brincante pra ir desatando os nós do corpo paralisado. Geralmente, no período de férias, o Educativo oferecia uma programação especial para as crianças. O convidado dessa vez foi Leo Ladeira, sujeito de nome engraçado, artista com atuação nas áreas de teatro de rua, de bonecos, circo e artes gráficas. Leo chegou carregando um monte de coisas, usando umas roupas coloridas – era uma figura, agitando tudo e convidando todo mundo para brincar. Eu confesso que achei o convite bem estranho, e a presença de Leo ativou um incômodo em mim, pois eu estava acostumada a apenas acompanhar a brincadeira de fora, a instruir e ver as famílias e crianças mergulhando nas atividades, mas eu nunca adentrava esse espaço, partilhando do brincar. Leo parecia habitar a brincadeira com uma intimidade que eu havia esquecido que existia, mas, como foi o primeiro dia dele conosco, eu achei que fosse só um entusiasmo pela chegada. 

O dia seguinte chegou e Leo estava ainda mais animado, ainda mais imerso na brincadeira. Ninguém ficava fora de seus jogos, todos embarcaram na onda, as crianças, os adultos, os educadores e eu continuava resistindo. As oficinas de férias eram programadas para começar às 10 horas da manhã, acabar ao meio-dia, retomar às 14 horas e terminar às 16 horas.  Eu era responsável por controlar os horários, então, alertava os convidados quando chegava perto do tempo de encerrar. Uma das oficinas com o Leo era de pernas de pau. Quando chegou perto do meio-dia, eu fui conversar com ele, dizendo que precisava encerrar porque se aproximava da hora do almoço, mas Leo não parava de brincar. Eu pensei: “gente, ele não tá com fome?”, mas ele se divertia tanto que a fome nem parecia incomodar. Leo só parou porque o próprio público foi almoçar, pois, por ele, a brincadeira continuava. Na segunda oficina do dia, a mesma coisa aconteceu. O horário de encerrar chegou e Leo continuou a brincadeira, mesmo quando não tinha mais público. Os objetos que ele manipulava pareciam ter uma magia que me assombrava. Percebi que esse assombro era quase que uma inveja de a brincadeira tocar tão fundo dentro dele, mas também era um assombro que me agarrava, me viciava, me encantava. 

Nos outros dias, resolvi transformar essa quase inveja em curiosidade, me permitindo penetrar o campo tão sagrado do brincar, acompanhando Leo e tomando o assombro como companheiro de brincadeiras, permitindo, mais uma vez, que o corpo mobilizado experimentasse o movimento. Alembrei-me de novo da infância, de quando o campo sacro da brincadeira blindava meu corpo e dava pé para a coragem. 

O brincar contagiante de Leo me lembrou de correr, de sentir o cheiro da brisa do mar, me lembrou de quando eu descia a ladeira do lado da minha casa, sentada em cima de uma garrafa PET sem me preocupar com o que me esperava lá embaixo, sentindo a adrenalina e o vento no rosto, desejando apenas chegar, subir e fazer tudo de novo. Tenho certeza de que Dona Maria mandou o Leo pra me alembrar de que a estrela brilha no fim da Ladeira. Hoje a brincadeira voltou a fazer parte do meu corpo, abriram-se os caminhos. Já, já, você vai ver como.

Leo te conta uma história: https://www.youtube.com/watch?v=f3RYQJ1sJR0 

Uma música sobre a Ladeira: https://open.spotify.com/artist/3enLFkRg7gwYQbEPPPGkzO 

Cheiro de erva e saudade da Vó 

No dia das mães de 2019, lá atrás, nos tempos antes da pandemia (parece outra vida, né?), o Programa CCBB Educativo recebeu a Escola de Benzedeiras de Brasília. O grupo trouxe um movimento de amor e restabelecimento de sabedorias ancestrais de cura e conexão com a natureza dentro e fora de nós. As benzedeiras se colocaram a serviço, retomando os sentidos e o conhecimento de nosso corpo e de nossa energia. 

A atividade teve início com uma Roda de abertura, na qual os participantes se apresentavam, honrando a ancestralidade feminina através dos nomes de suas mães e avós, seguida de uma oração para a Grande Mãe. Após isso, levantou-se a questão: O que é benzer? Refletimos sobre ela através da partilha de memórias afetivas sobre o benzimento. Então, as benzedeiras falaram um pouco dos saberes das ervas do centro da roda: Guiné, Folhas de Mangueira, Boldo, Lavanda, Arruda, Manjericão e Alecrim. Em seguida, colocamos em prática o que foi aprendido. A roda foi dividida em duplas de pessoas que não se conheciam, que se conectaram pelo olhar e realizaram a troca de bênçãos com um abraço ao final. E então, a roda se fez novamente para a partilha de aprendizados e sensações proporcionadas pela atividade. Para encerrar, foi feita uma ciranda, que dançou ao som de uma canção na voz de Maria Bethânia. 

Eu me alembro de que fiquei na dupla com Dona Maria (não a das Alembranças), uma benzedeira mais velha, e a troca com ela me emocionou demais, foi de uma profundidade muito intensa. Ela me benzeu e eu a benzi, nem sei se fiz certo, mas senti tanta acolhida na nossa interação que imagino que não tinha como dar errado. 

Dizem que a palavra “benzer” vem do latim benedicere, que significa abençoar e dizer bem. “Dizer bem” é criar o bem, através da palavra. Por esse motivo, as benzeduras são orações, palavras que pedem a proteção divina para a pessoa que está a ser benzida.

O benzimento é de uma importância muito grande pra mim. Eu sempre tive uma carência dos meus avós. Cresci longe de todos, uns estavam em outro plano espiritual, outros, em outro estado geográfico. Quem me deu carinho de avó durante a infância foi Dona Anália, nossa vizinha de muro. Penso nela todo dia, minha avó de coração, que era benzedeira. Tenho certeza de que foi a reza dela que deu força pra que eu pudesse me acostumar a habitar esse corpo. Sinto que, naquele dia, minha Vó Nália e Dona Maria das Alembranças se fizeram presentes na benzedura de Dona Maria, sinto que, ali, houve mais uma ação de desenferrujar o meu corpo, que nunca mais tinha sido benzido desde a partida de minha Vó. Ali, este corpo voltou a se conectar com a cura do rezo através das ervas; ali, eu reencontrei a força que eu nem sabia que precisava. 

Aqui tem uma boa benzeção: https://www.youtube.com/watch?v=63Ado0buC2I 

Os cheiros do cerrado 

O CCBB Educativo tinha suas equipes divididas em grupos de trabalhos, os GTs. Havia o GT Práticas Artísticas e Educativas (o nome é autoexplicativo), o GT Infâncias (novamente autoexplicativo), o GT Outros Saberes (esse era sobre o que a gente conhece por Cultura Popular) e o GT Acessibilidade (novamente autoexplicativo), cada um deles com um educador responsável. Eu estava à frente do GT Acessibilidade, em Brasília. Nós investigamos as possibilidades de oferecer o acesso a partir das vivências e presenças. O GT contemplava as interações que permeiam a nossa presença e a presença do outro, as nossas vivências e as vivências do outro, valorizando as experiências e leituras individuais e o modo como os espaços se apresentavam para cada indivíduo. 

Uma das nossas ações foi a criação de uma história chamada “Quem é Curi?”, onde nós falávamos sobre o Curupira, encantado indígena que habita as matas do Brasil. Na nossa versão o Curupira se tornou Curi, morava nos jardins do CCBB e cuidava do Cerrado. A contação se dava de maneira cênica e lúdica, havia estímulos de todos os sentidos, inclusive do paladar. O GT se preocupou muito em contemplar o máximo de corpos possíveis na interação com a história. Nós fazíamos um passeio pelo CCBB, interagindo com diversos objetos e árvores, inclusive a árvore de Ingá-Cipó, onde comíamos seu fruto. As crianças ficavam extremamente entusiasmadas com a presença do Curi, se dedicando totalmente a ajudá-lo. 

O personagem do Curi era performado por um dos educadores, que é bailarino, então, o Curi dançava lindamente ao final da ação, tinha uma consciência corporal muito forte. A criação do figurino e da persona de Curi foi inspirada pelo “Mito do Calango Voador”, de Tico Magalhães e o grupo Seu Estrelo. O mito celebra os mistérios do Cerrado e do DF, revelando criaturas que fazem nascer encantos, que, por sua vez, tornam-se fatos. Dentre essas criaturas, há a Caliandra, flor nascida do sangue de Laia. Nesse processo de construção, nos deparamos com um vídeo no YouTube que apresentava a encantada Caliandra. Ao assistir ao vídeo, mais uma vez, algo no meu corpo paralisado se revirou e, de novo, eu senti um assombro, senti que aquilo me impactou, me chamava, senti que eu pertencia àquele mundo, mas eu ainda não entendia o porquê. 

Eu gostava muito da história de Curi, participei ativamente da invenção dela, mas nunca consegui contá-la, sempre dava um jeito de desviar, sempre pedia para que outro educador contasse em meu lugar. Nunca me senti segura para contá-la, mesmo sabendo todas as partes. Também admirava muito a interpretação do educador que fazia o Curi, gostaria de ter essa proximidade com o corpo da mesma forma que ele. Sentia que meu corpo não conhecia os movimentos de como contar histórias, que esse corpo não estava preparado. Faltava algo. 

Veja o vídeo da Caliandra: 

O cheiro da mata me deu novo corpo 

Algumas semanas antes de a pandemia chegar ao Brasil, a coordenadora nacional do CCBB Educativo fez uma tiragem de cartas do Oráculo da Deusa com alguns educadores. O tema da leitura era “o que eu vou levar do educativo se esse ciclo findar”. Havia a possibilidade de o nosso contrato não ser renovado, por isso estávamos nos preparando para caso isso acontecesse. Não existia nenhuma notícia sobre a pandemia ainda. As cartas que saíram para mim foram a Deusa Sheila Na Gig e a Deusa Bast. De forma bem resumida, a primeira diz sobre a Abertura e a segunda, sobre a Brincadeira, então, entendi que eu levaria comigo a abertura para a brincadeira. Coincidentemente, na mesma semana, eu havia me inscrito para um curso de Mulheres Brincantes, ainda muito instigada pelo incômodo/curiosidade que Leo Ladeira me provocou sobre esse universo. 

O curso começaria semanas depois desse acontecido, no dia 13 de março de 2019. O que ninguém esperava é que a pandemia fosse chegar ao Brasil nesse entremeio. Pois bem, nesse mesmo dia, recebemos a notícia de que as atividades seriam interrompidas devido à Covid-19, mas ainda não tínhamos nenhuma noção do que viria pela frente, então a primeira aula do curso aconteceu. Saí do CCBB achando que seria uma pausa de, no máximo ,15 dias, me encaminhei até o lugar onde seria o encontro com as Mulheres Brincantes e foi ali que minha vida mudou completamente. 

O curso era ministrado pela educadora Luciana Meirelles, seguindo a metodologia da Pedagogia Griô, que é uma pedagogia facilitadora de rituais de vínculo e aprendizagem entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-raciais e de gênero, territórios de identidade, saberes ancestrais de tradição oral e as ciências, artes e tecnologias universais, por meio de um método de encantamento, vivencial, dialógico e partilhado para a elaboração do conhecimento e de um projeto de comunidade/humanidade que tem como foco a expressão da identidade, o vínculo com a ancestralidade e a celebração do direito à vida. A vivência é toda feita em roda, numa conexão muito profunda com a ancestralidade de cada pessoa presente. Ali, eu senti novamente o assombro que senti na roda de coco, na brincadeira, no benzimento, pela Caliandra, senti que finalmente o corpo paralisado teria espaço para se destravar completamente, senti que algo se abria e não tinha mais como voltar atrás, que pertencia àquilo. Ouvi novamente a voz de Dona Maria das Alembranças, dessa vez era nítida como nunca, senti um chamado que eu não tinha como negar: ela me convidava para me rasgar na brincadeira. Mas assim que o encontro acabou e voltamos pra casa, nós percebemos que não poderíamos mais nos encontrar devido à pandemia. 

Foi muito difícil lidar com meus sentimentos nos dias que seguiram, eu estava em ponto de explosão por, finalmente, ter achado lugar seguro para desaguar, mas o isolamento social não permitia. Então, reuni minhas forças e fiz o que pude para não deixar escapar o desejo por conhecer melhor o que tinha sido aberto, para conhecer mais sobre as culturas populares. Durante o isolamento, comecei a fazer aulas on-line de agbê, percussão e de pedagogia griô, foi quando eu, finalmente, entendi a força que as tradições orais têm, foi quando eu – mesmo  sem acessar presencialmente – toquei a semente profunda dos saberes ancestrais e desatei os nós que amarravam meu corpo. Agora, estamos retomando a socialização e eu me tornei amiga de Luciana Meirelles, que é a pessoa que interpreta a Dona Maria das Alembranças. Os caminhos da pedagogia griô me levaram para a capoeira, para o bumba meu boi, para o samba pisado, para o terreiro, e até já interpretei a Caliandra do Seu Estrelo. Vê só! 

Todo esse percurso se iniciou com os assombros que o CCBB Educativo me proporcionou. Hoje, habito um corpo aleijado e encantado porque percorri uma trajetória de forja desse corpo, forja esta que começa dentro do espaço educativo. Hoje, tenho um corpo firmado na ancestralidade aleijada, livre, que sabe contar histórias, completo, aberto para a brincadeira, desenferrujado e consciente, porque todas as experiências no CCBB Educativo foram moldando esse corpo. As culturas populares me deram vida nova, pois nunca encontrei um lugar tão acolhedor como a roda. Foram os Outros Saberes que me ensinaram de verdade o que é Acessibilidade. E foi no CCBB Educativo que tudo isso começou.