Passado o período mais angustioso da pandemia, podemos retomar algumas questões que ficaram pelo caminho, ainda que de maneira tentativa. Nesse período, muitos educativos e instituições tiveram de se perguntar, entre outras coisas, o que fazer na internet. Mas do que estamos falando quando nos referimos à internet? Neste texto, procuro identificar e discutir algumas das condições de atuação da mediação cultural neste momento. 

A pandemia ampliou a presença das redes ou mídias sociais, entre outras plataformas digitais, que – em associação à “economia por demanda” ou, ainda, a um sistema de coleta e processamento de dados que informa operações comerciais, estatais e militares – assumem cada vez mais a própria extensão e o significado do que seja a internet, configurando aquilo que alguns autores chamam de “plataformização da sociedade” (VAN DIJCK et al., 2018).

A pandemia reforçou essa tendência, uma vez que as restrições ao contato físico e à mobilidade nos empurraram para a vida em modo remoto, aumentando nossa dependência dessas infraestruturas digitais – que, como se sabe, são providenciadas por basicamente cinco ou seis megacorporações, cujo poder transnacional ou supraestatal é cada vez mais evidente. 

As consequências disso abrangem inúmeras dimensões da vida cotidiana, seja no âmbito pessoal e familiar, seja no âmbito formativo e profissional: relacionamentos, consumo, acesso à informação e a serviços, trabalho e participação política. Isso não significa que estamos sendo determinados pelas mídias sociais, mas uma separação binária entre offline e online, real e virtual, tornou-se insustentável. A internet se tornou uma infraestrutura das relações sociais.

Apesar dessa condição, a internet continua sendo amplamente percebida como uma ferramenta, que, como tal, se acrescenta a formas, códigos, convenções e práticas já existentes nas instituições. Para Andrew Dewdney (2020), o principal problema é que, desse modo, as mídias interconectadas são vistas como um canal de transmissão transparente, com pouco ou nenhum código embutido. O pesquisador entende que a internet trouxe mudanças fundamentais e abrangentes no âmbito da comunicação humana. Nesse sentido, o digital constitui uma cultura paradoxal de alcance global; uma rede caótica e dispersa de informações, conexões e associações que sustentam a vida cotidiana.Apesar disso, as instituições continuam tendo dificuldades para se envolver com essas mudanças, trazidas pela condição digital. No caso dos projetos de digitalização das coleções, que buscam disponibilizar por meio da internet acervos físicos remediados, segundo Dewdney (2020), a principal mudança foi provocada pelos mecanismos de busca e pelas plataformas de compartilhamento de imagens, por meio dos quais as imagens digitalizadas das coleções se juntam ao fluxo das imagens interconectadas da internet. Desse modo, a digitalização, concebida originalmente como uma ferramenta de catalogação, tornou-se uma extensão do próprio museu, alimentada pela crença de que a autoridade da coleção seria reforçada, enquanto seu alcance fosse expandido para novas e mais amplas audiências.

A temporalidade vivida na internet pós-pandemia

Mensagem final da página de memórias disponibilizada diariamente pelo Facebook.

Além de estender o museu “espacialmente”, a internet também muda nossa relação com o tempo e a memória. Segundo Giselle Beiguelman (2020, p. 34): “As redes não têm tempo. Nelas prevalece um regime de urgência permanente. […] O que conta é o agora. E esse agora é de uma intensidade cada vez maior”. Para a artista e pesquisadora, uma evidência dessa inflação do agora seria a perda da memória recente ou, de maneira mais objetiva, a dificuldade para recuperar certos dados (postagens, comentários etc.) em determinadas plataformas, que não parecem favorecer a construção de um arquivo, mas, sim, o compartilhamento de mensagens temporárias. Nesse contexto, as relações entre imediatismo e hipermediação configuram certamente um paradoxo (DEWDNEY et al. 2013, p. 193-4). 

Mas há uma diferença entre memória pessoal e memória corporativa. A dificuldade para recuperar dados está posta para o usuário, não para as corporações proprietárias dessas plataformas, que a propósito dispõem de recursos (algorítmicos e de armazenamento) para não apenas guardar e recuperar memórias, mas também para identificar e prever comportamentos, hábitos e personalidades, por meio de análises psicográficas (e não mais demográficas) de amplos agregados de dados (big data), seja para fins comerciais ou antidemocráticos – o que ficou conhecido em 2018 com o escândalo da Cambridge Analytica.

Já em 2010, o Facebook realizou um experimento em que fez aparecer no feed de notícias de 60 milhões de usuários estadunidenses, em um dia de eleição, o botão “eu votei”, acompanhado de pequenas fotos (thumbnails) de amigos que haviam clicado no botão. Estima-se que 280 mil pessoas tenham sido estimuladas a votar por conta disso. Outro exemplo do “compromisso” dessas corporações com a memória pessoal foi o encerramento, pelo Yahoo!, do Geocities, um serviço de hospedagem de páginas pessoais, em 2009 – ano em que, pouco antes, o Facebook havia criado o botão “curtir”, após ter se tornado a maior rede social do mundo, em trajetória exponencial de crescimento.

A mudança das páginas pessoais para os perfis em redes sociais sugere que a memória também vai sendo submetida a uma espécie de “uberização”. Em entrevista recente sobre o avanço desse processo, o “entregador antifascista” Paulo Lima (in: Folha de São Paulo, 2021), mais conhecido como Galo, afirma que os aplicativos não inventaram e, sim, cercaram o mercado do delivery. Em uma espécie de parábola que explica a ideia de acumulação primitiva, ele conta que o “homem branco”, sorrateiramente, drenou todos os peixes do rio para sua fazenda, onde ele agora diz que os entregadores podem pescar, desde que lhe entreguem sete de cada dez peixes que eles pescam. Do mesmo modo, para que as plataformas guardem nossa memória, precisamos entregar-lhes uma parte dela, junto com nossos dados pessoais e nossa privacidade – o que muitos fazem voluntariamente. 

Também, desde pelo menos 2015, a internet deixou de veicular “redes de indignação e esperança” (CASTELLS, 2013), dotadas de uma “natureza revolucionária”, para assumir uma arquitetura que prioriza conteúdos capazes de gerar engajamento, em um contexto que combina saturação informacional e economia da atenção (DAVENPORT; BECK, 2001) – o que termina favorecendo a propagação de manchetes apelativas, ideias extremas e desinformação, além de reforçar as próprias crenças dos usuários, oferecendo-lhes um “sentido de realidade” que alivia o sentimento de desorientação acarretado pela crise das instituições e pela fragmentação do comum.

A partir disso, são as nossas apostas na horizontalidade e na distribuição que precisam ser revisadas. Por exemplo, considerando a ideia de um “museu distribuído” (DEWDNEY et al., 2013), a expectativa de que se pudesse, com a disseminação da internet, redistribuir hierarquias de valores entre coleções analógicas e a cultura digital ganha certa ambivalência. De um lado, essa expectativa parece estar sendo postergada pelos projetos de digitalização, que procuram devolver centralidade às instituições nos processos de definição do valor cultural. De outro, no quadro temporal da internet pós-pandemia, a inevitabilidade da oferta cultural remediada (via internet) faz com que as coleções circulem pelos mesmos canais (das plataformas) e sejam feitas da mesma matéria (digital) que quaisquer outras imagens.

Muitas instituições podem achar que se trata de uma oportunidade para alcançar públicos mais amplos, quando isso talvez signifique adentrar um espaço altamente competitivo, onde boa parte delas não tem experiência comprovada. Além disso, se o caso é, por exemplo, trabalhar com reproduções digitais num horizonte em que a experiência do original é inacessível, por que se ater ao desejo centrípeto desse ou daquele museu ou acervo, em vez de conceder ao apelo centrífugo das imagens em circulação, considerando ainda que as práticas de recepção e consumo são transmidiáticas e transculturais, isto é, que elas ocorrem por mídias diversas, cruzando sistemas culturais diversos? 

Em todo caso, aos programas de mediação atuantes nessa temporalidade não cabe nostalgia pelo que havia antes, nem espera pelo que virá depois – o que quase sempre redunda em ações suplementares dos encontros presenciais anteriores à pandemia. Teria sido necessário atuar nessa temporalidade vivida durante a pandemia, solicitando “colaborações e combinações inesperadas” (HARAWAY, 2016), inclusive porque algo dessa temporalidade deve continuar quando a pandemia tiver passado. A questão, portanto, é o que a mediação pode produzir sobre, com e nessa temporalidade, a partir da matéria e do lugar que são os seus, relativos às intersecções da arte e da cultura com os públicos e a sociedade.

Por fim, outro aspecto dessa temporalidade, que acompanha de maneira aparentemente contraditória a perda de memória, é o que Giselle Beiguelman (2020) chamou de “overdose documentária”. Todas as nossas interações nas redes sociais estão sendo rastreadas, datadas e arquivadas. Mas isso não implica – a par das diferenças assinaladas entre memória pessoal e memória corporativa – uma reflexão sobre o que está sendo guardado, ainda que o acesso à nossa memória pessoal estivesse disponível.

Por outro lado, essa overdose não sugere que a assimilação de práticas documentárias pela mediação cultural tenha se tornado completamente redundante. A diferença entre arquivar e pensar estabelece uma segunda diferença: entre o poder de selecionar, característico das práticas curatoriais e institucionais, e a responsabilidade da reflexão, da qual a mediação documentária não pode se furtar. Afinal, não é porque “tudo” está sendo rastreado que os conhecimentos produzidos pela mediação se tornam visíveis.

Noutro contexto, é o que Anna Tsing (2019, p. 24) propõe: “Em vez de simplesmente catalogar diversidade, precisamos narrar as histórias em que a diversidade emerge – isto é, admitir suas formas animadas e, portanto, contaminadas”.

A modelização da recepção

Ilustração de Jason Li para o capítulo “The Revolution of the Cat”, do livro Memes to Movements (2019), de An Xiao Mina.

Segundo Giselle Beiguelman (2020, p. 24), “em ambientes on-line o contexto não só interfere na recepção da obra como também modeliza essa recepção”. Do mesmo modo, segundo José Van Dijck (2019): “As plataformas não são constructos neutros ou livres de valor. Elas vêm com normas e valores específicos inscritos em suas arquiteturas”. Sendo assim, não basta remediar a oferta presencial. Aquela modelização estabelece novas condições para a atuação da mediação.

Em analogia a um “devir empreendedor” provocado pelo avanço da “uberização”, é uma espécie de “devir influenciador” que tende a condicionar a atuação da mediação nesse contexto. O termo surge em 2015, a partir da redefinição das palavras blogueiro e youtuber, quando as práticas de produção de conteúdo a que elas se referem começavam a se tornar um campo profissional. Dentre as suas características estão formas de credenciamento junto a uma comunidade de usuários ligadas à construção de proximidade, por meio de uma comunicação supostamente horizontal, que adota uma linguagem informal, em que a separação entre o público e o privado é diluída (KARHAWI, 2017; RESENDE, 2020).

Desse modo, suas mensagens se tornam mais persuasivas do que a exposição direta à publicidade, por exemplo. O ponto é que os influenciadores não só formam opiniões e preferências relativas a decisões de compra e adoção de comportamentos, como também modelizam relações de ensino e aprendizagem, uma vez que suas formas de endereçamento estão permeadas pela oferta de conteúdos, ou ainda, pela disseminação de informações e indicações – o que, se não representa o principal das práticas educativas, assimila alguns de seus procedimentos e, sobretudo, questiona formas de autoridade estabelecidas pelas instituições educacionais (SIBILIA, 2012).

Há outros fatores que mais evidentemente homogeneízam esse processo, dependendo da plataforma utilizada, que dizem respeito a elementos de design que definem padrões de visualização, à frequência de postagens para se tornar visível e obter seguidores, aos tipos de interação facultados (em geral curtidas, compartilhamentos e comentários), sem falar no acordo compulsório com os termos de serviço e nas punições em caso de descumprimento (POELL et al., 2020). Nesse contexto, seguir produzindo mais e mais conteúdo, inclusive porque esse parece o script das mídias sociais, pode ser contraproducente. É, porém, o “estreitamento do debate”, apesar da promessa de interação, o que mais afeta a mediação, na medida em que a lógica das plataformas se sobrepõe aos usos mais abertos e coletivos de uma comunicação efetivamente interativa.

Constituída nos últimos 20 anos com base na dimensão performativa da pedagogia, nas possibilidades de deslocamento do corpo no espaço físico, na ênfase no diálogo em rodas de conversa, nos repertórios do encontro e da participação, a mediação cultural se vê diante de um impasse: como desdobrar “conversações culturais complexas” (MONTERO, 2016) em um contexto no qual a produção de dados pelos usuários é um fator da geração de valores que lhes serão expropriados?

A expansão do digital desafia, portanto, os próprios modos de representação sustentados pelos museus e pela mediação. Sem uma reflexão sobre as implicações culturais das mídias que eles empregam e sobre o modo como nos relacionamos com as representações, os museus de arte podem se reduzir a simples expressões das plataformas, submetendo-se a processos de datação, classificações algorítmicas, termos de serviço etc. 

Tudo isso, sem falar nos problemas de desigualdades de acesso, que não se limitam a quem não tem acesso à internet, mas passam pela reconfiguração imediata dos públicos, a partir da diferença entre públicos “presenciais” e “virtuais” – já que a iniciativa de se relacionar com um museu pela internet não é imediatamente acionada pelo simples fato de se ter acesso à internet.

Cayo Honorato, maio de 2022

Referências

BEIGUELMAN, Giselle. Reinventar a memória é preciso. In: VERAS, Leno (Org.). Abre-te código: transformação digital e patrimônio cultural. São Paulo: Goethe Institut, 2020, p. 23-47.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

DAVENPORT, Thomas H.; BECK, John C. A economia da atenção. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

DEWDNEY, Andrew. The networked image: the flight of cultural authority and the multiple times and spaces of the art museum. In: LEWI, Hannah; SMITH, Wally; LEHN, Dirk vom; COOKE, Steven (Ed.). The Routledge International Handbook of New Digital Practices in Galleries, Libraries, Archives, Museums and Heritage Sites. London; New York: Routledge, 2020, p. 68-80.

DEWDNEY, Andrew; DIBOSA, David; WALSH, Victoria. The distributed museum. In: DEWDNEY, Andrew; DIBOSA, David; WALSH, Victoria.. Post-critical museology: theory and practice in the art museum. London; New York: Routledge, 2013, p. 189-204.

FOLHA DE SÃO PAULO. ‘Entregador Antifascista’ critica precarização do trabalho e omissão de veículos da imprensa. [26 fev. 2021] Disponível em: <https://bit.ly/3FdKM3L>. Acesso em: 04 maio 22.

HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham; London: Duke University Press, 2016.

KARHAWI, Issaaf. Influenciadores digitais: conceitos e práticas em discussão. Communicare, v. 17, p. 46-61, 2017

MONTERO, Javier Rodrigo. Experiências de mediação crítica e trabalho em rede nos museus: das políticas de acesso às políticas em rede; tradução de Lucas Oliveira. [2013] Periódico Permanente, n. 6, 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3yqjR3d>. Acesso em: 08 maio 2020.

POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Plataformização. Fronteiras, v. 22, n. 1, p. 2-10, 2020.

RESENDE, Vitor Lopes. Professores ou Influenciadores Digitais? Refletindo sobre o uso das mídias digitais como complemento do ensino durante a pandemia de Covid-19. Comunicação, Cultura e Sociedade, v. 7, p. 34-41, 2020.

SIBILIA, Paola. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Tradução de Thiago Mota Cardoso et al. Brasília: IEB, 2019.

VAN DIJCK, José. A Sociedade da Plataforma: entrevista com José van Dijck. Digilabour, 06 mar. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3ybDMmj>. Acesso em: 04 maio 2022.

VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The Platform Society: Public values in a connective world. New York: Oxford University Press, 2018.