No livro “Cidades Para Pessoas” (2010), o arquiteto dinamarquês Jan Gehl descreve Brasília como uma “cidade feita para os carros”. A crítica, embora encontre justificativa no Eixo Rodoviário formado pelas asas Norte e Sul e pelas largas distâncias entre os prédios de Oscar Niemeyer no Eixo Monumental, parte de uma ideia europeia de organização urbana, sem levar em conta o contexto e o cotidiano da capital federal do Brasil – uma construção urbanística moderna planejada e construída no século XX. Portanto, os inúmeros espaços vazios vistos pelo teórico como inseguros, também podem ser compreendidos como um “espaço em potencial para a ocupação das pessoas”, defendem os artistas e arquitetos Carla Barreto e Igor Lacroix.

Convidados a conduzir a edição de agosto de 2019 do curso Transversalidades, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, eles trouxeram ao público uma discussão a respeito das relações entre a arquitetura e o urbanismo de Brasília, e o movimento urbano da cidade, reconhecendo nestas relações uma dupla atividade: ao mesmo tempo em que o urbanismo se apresenta como empecilho à mobilidade, ele atravessa esteticamente quem visita a cidade, chamando atenção por suas sinuosas curvas e pelo ar de modernidade.

Em seguida, Carla e Igor promoveram uma roda de conversa na qual foram discutidos trabalhos de intervenção artística desenvolvidos em Brasília como resposta à organização urbana da cidade. “A ocupação do espaço público é uma característica tão forte de Brasília que provavelmente [o arquiteto e urbanista] Lúcio Costa já tinha isso em mente quando elaborou o Plano Piloto. Os espaços vazios são uma espécie de simbolismo arquitetônico que funciona para proteger as construções”, argumenta Igor, mestre em Teoria, História e Crítica de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB).

Conforme destacam os pesquisadores, intervenções urbanas podem ser entendidas como ações artísticas que criam espaços de diálogo com a cidade e seus habitantes. No caso de Brasília, tais ações geralmente se concentram no espaço central da cidade, intencionalmente distantes das cidades periféricas, também conhecidas como regiões administrativas. Trata-se, em linhas gerais, de cidades que nasceram a partir do movimento de resistência dos trabalhadores que chegaram para a construção da cidade e que, ao término, exigiram permanecer na grande e nova cidade que bradava seus tons de modernidade, avanço tecnológico e também exclusão: assim nasce Brasília, com seus arredores indesejados pelo centro, porém mantidos pela resistência.

Arte e resistência

Para a dupla de pesquisadores, o fato da capital ter sido inaugurada em 1960 e se desenvolvido durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) inesperadamente contribuiu para que o espaço urbano se tornasse mais agregador de experiências públicas e artísticas. “Após esse período, passa-se a revistar a cidade a partir de um novo aspecto, que se distancia da paisagem urbana tal como ela foi elaborada. É um processo de percebê-la como um local possível para diferentes construções”, comenta Carla, mestre em Arte Contemporânea pelo Programa de Pós-graduação em Artes da UnB.

Essa noção estabelece um diálogo com uma ideia expandida de arquitetura, que passa a atuar não só na projeção de espaços internos ou externos, mas também na tangente com a arte contemporânea e suas linguagens, com o objetivo de intervir na paisagem urbana. “Sendo assim, o espaço da cidade também se torna um lugar que recebe a atuação de artistas, seja por meio de instalações ou intervenções, bem como em relação ao espaço expositivo – que não está mais voltado somente para o privado. São linguagens que se voltam a perceber a cidade como um espaço de exposição e atuação. E isso mostra a interface entre arte e arquitetura”, comenta a pesquisadora.

O ponto de encontro pode ser descrito, segundo Igor, como um processo de apropriação do espaço público. “É um exercício de tornar a cidade mais acessível, não como forma de requalificação dos vazios que ela possui, mas para experimentar o potencial dela para que isso reflita socialmente”, acrescenta. Um dos primeiros experimentos realizados por Carla Barreto e Igor Lacroix aconteceu justamente no CCBB DF. Batizado de “O Móvel”, o trabalho estabeleceu um diálogo direto com a fachada do prédio para que pudesse, no período noturno, receber projeções em vídeo e se transformar em uma escultura lúdica. “A partir da conversa estabelecida com a construção, passamos a colocar em perspectiva as próprias estruturas arquitetônicas construídas na cidade que fazem parte de sua paisagem”, comenta Carla.

“880 tijolos fazem uma parede”

A busca por estabelecer um diálogo entre a cidade e as estruturas arquitetônicas que a formam deu origem à intervenção “880 tijolos fazem uma parede”, instalada na galeria deCurators entre 27 de abril e 2 de junho de 2019, durante a terceira edição do ciclo “A Cidade que Invent(amo)s”. Operando como uma estrutura transitória entre arquitetura e arte, a obra – que consiste em uma parede de tijolos curva construída na fachada da galeria – estabelece uma conciliação entre o espaço público, da rua, e o privado, da galeria. Ademais, a estrutura serviu de palco para uma série de atividades cujo principal objetivo era discutir, teórica e filosoficamente, assuntos relativos à arquitetura e à arte.

“Além de gerar um estranhamento, por ser uma parede construída onde normalmente está uma porta e uma vitrine, a obra traz uma surpresa. No fundo da curva, a única fresta entre dois tijolos mostra uma fotografia de Lúcio Costa. A obra completa também traz um letreiro na fachada da galeria que reproduz um poema supostamente psicografado pelo arquiteto e urbanista. Apesar de ter sido escrito por nós, o texto foi feito com base nas ideias dele, que é o espírito de Brasília”, esclarece Igor.

“A galeria se modificou, não era mais a mesma. Esse trabalho gerou toda uma nova dinâmica que refletiu no entorno. As pessoas que passavam por lá não tinham como entrar na galeria e acabavam por se questionar: que lugar é esse? Do que se trata isso? Ela criou esse tipo de relação com o público e o próprio espaço, suscitando uma resposta imediata da cidade”, completa Carla.

No dia 1º de junho, a parede recebeu uma pixação coletiva. Por fim, no dia 7, ocorreu a derrubada do muro, uma ação aberta à participação do público que, ao final, pôde levar pedaços de tijolos como souvenir. A partir de exemplos como esse, o debate entre os convidados e o público do Transversalidades se desdobrou em muitas indagações, principalmente em relação aos habitantes que interagem, intencionalmente ou não, com as intervenções no Plano-Piloto e de outros, que experimentam a cidade apenas como passageiros operários.