Aperitivo

Apesar de parecer holandês, eu não falo holandês. 

Essa frase foi dita por mim algumas vezes enquanto eu trabalhava atrás do balcão, servindo almoço para os residentes, funcionários e alguns frequentadores do restaurante da Jan van Eyck Academie, Maastricht, Holanda. A maioria das pessoas que me abordavam no balcão o fazia em inglês, já que essa é a língua corrente nessa instituição artística, onde a maioria dos participantes é estrangeira. De todo modo, o restaurante é aberto para o público. Uma vez por semana, havia uma senhora que vinha almoçar conosco, acompanhada por sua mãe, que eu suspeitava ter problemas de memória, já que ela sempre se dirigia a mim falando holandês. Em vez de corrigi-la, eu respondia, amigavelmente e com um sorriso no rosto: “Apesar de parecer holandês, eu não falo holandês”. Embora não compartilhássemos a mesma língua, nós compartilhávamos o senso de humor. Ríamos juntos, transformando a ausência de memória em uma dádiva, já que nos permitia rir com uma piada antiga como se ela fosse nova. A graça vinha pelo fato de eu não parecer em nada com um “holandês típico”. E como é um “holandês típico”? E por que eu não pareço holandês? E por que isso importa?   

Certo dia, enquanto me dedicava ao meu trabalho cotidiano atrás do balcão, alguns senhores se dirigiram a mim falando holandês. Achei que aquela era uma oportunidade para usar a minha piada e respondi: “Apesar de parecer holandês, eu não falo holandês”. Para a minha surpresa, meu comentário não tinha graça para eles, apesar de meu rosto indicar, com um sorriso, que aquilo era para ter sido uma piada. A reação de um dos senhores foi: “Você não fala holandês e vocês não se parece com um holandês”, usando um tom de voz sério que demonstrava seu desconforto. Não compreendi de imediato o que poderia ter acontecido para que meu comentário disparasse tal comportamento. E ele continuou: “O que você é? Português?” (Há muitos portugueses na Holanda e muitos trabalham atrás de balcões ou em cozinhas, atrás de paredes). Para a sua pergunta, respondi: “Eu falo português, mas sou brasileiro. Falo a língua do colonizador”. O desconforto escalou, agora em ambos os lados do balcão, quando escutei: “Eu achava que o que os portugueses haviam feito no Brasil era levar educação”. Consciente do quão agressivo ele estava sendo ao dizer aquilo, ele deu um passo atrás e curvou o seu corpo como se fosse se proteger de um possível ataque meu. Mas havia um balcão entre nós e ele não estava mais próximo, apesar de duvidar que eu partiria para uma agressão física. Afinal de contas, como ele bem apontou, eu fui bem educado, então me calei e direcionei minha atenção para o próximo cliente. 

Primeiro Prato

Nós viemos do Brasil, mas não falamos Tupi. Fomos domestieducados: falamos português e inglês. 

Quando nos inscrevemos para ser residentes na Jan van Eyck, estávamos interessados em trabalhar nas intersecções entre o Laboratório de Impressão (Print Lab), o Laboratório de Comidas (Food Lab) e o Laboratório de Pesquisas da Natureza (Lab for Nature Research). Inspirados pelos textos publicados no website da instituição, nosso projeto propôs pensar sobre esses três ateliês em termos de superfícies: como podemos escrever sobre a superfície da Terra, ler a superfície da mesa e cultivar a superfície da página? Nosso interesse, portanto, era abordar a JvE como um sistema, ou um ecossistema, conectando diferentes áreas de trabalho e pesquisa, enquanto embaralhávamos os modos de atuar associados com cada um desses locais e sugeríamos novas sintaxes. O alimento seria o mediador. Durante a residência de um ano, trabalhamos diretamente na cozinha por cerca de dois meses. Nosso foco era o almoço. Servíamos entre 30 e 40 pessoas diariamente. 

Segundo Prato 

Colonização como fertilização forçada   

Na primeira carta escrita para o Rei de Portugal depois da chegada da frota portuguesa à costa brasileira, que supostamente estava a caminho da Índia, Pêro Vaz de Caminha descreve a população humana que encontrou: 

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro

animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que

aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam 

tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

O que Pêro Vaz descreveu foi uma cultura que não antagoniza processos naturais, mas que, apesar de notada, não era de interesse. Pelo contrário, Pêro Vaz percebeu a hospitalidade e a ingenuidade dos povos originários como abertura para que se tornassem cristãos. Esse mesmo desinteresse pela cultura local aconteceu em relação aos hábitos alimentares. Os portugueses não gostaram das comidas indígenas. Durante os séculos de ocupação que se seguiram, eles trouxeram animais domesticados da Europa, assim como plantas de cultivo: figo, pêssego, repolho, cebola, pepino, melão, rosas, uva e trigo estavam entre elas.

O ato de suprimir e ignorar violentamente a cultura local aconteceu em nome da salvação, usando a religião católica como ferramenta. A madeira da primeira árvore derrubada pelo machado português foi utilizada para construir a cruz empregada na primeira missa, que aconteceu logo em seguida ao desembarque. Os indígenas que resistiram à assimilação foram mortos ou escravizados, forçados a trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar, que, ao expandirem, derrubavam as florestas para que se tornassem combustível nos moinhos e abrissem espaço para a ampliação das monoculturas. As pessoas e a terra foram abusadas, enquanto o ouro, a madeira, o açúcar, as peles e as penas de aves, por exemplo, alimentavam o faminto império português.

O que os portugueses não sabiam é que a cultura indígena cumpria um papel ativo na construção de florestas. Hoje, há fortes evidências que apontam a Floresta Amazônica como um território cultivado, onde cultura humana e natureza são indissociáveis. O simples ato de comer a dispersar sementes, assim como os hábitos cotidianos das civilizações indígenas têm o poder de criar a TPI, ou Terra Preta de Índio, que é o solo mais fértil que existe. O que Pêro Vaz nos conta usando o negativo – descrevendo uma cultura pelo que ela não é ou não tem – foi um método de cultivo que apoia a biodiversidade, entrelaçamentos multiespécies e saúde ambiental.     

Prato Principal Abusivo

Desterrados em nossa própria terra 

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem

Sobremesa

Quem está atrás do balcão?   

Este cardápio começou com uma anedota que revela duas perspectivas sobre a história. A primeira perspectiva é uma memória falha que só pode reconhecer o presente, que está prenhe de possibilidades de encontros que podem ser permeados de alegria e surpresa. Para criar esse espaço, é obrigatório apagar qualquer tipo de memória. O presente vem, então, como uma dádiva, que não tem raízes e é pura possibilidade, mas não será lembrado.

A segunda conversa revela um passado simplificado em que as ideias de colonização e educação se cruzam para que a leveza e a irresponsabilidade, como inabilidade de resposta, possam ser encontradas no presente, longe de qualquer peso histórico que um passado colonial possa ter produzido. A violência e o extermínio são as narrativas do progresso para a aquisição da cultura e da educação.

De repente, o que parecem noções distintas de história tornam-se muito semelhantes em sua busca por um presente fácil, habitável. Em ambas as perspectivas, há um achatamento do passado, que retira suas rugas para torná-lo liso, superficial. Precisando de um pouco de ar fresco, saio para passear, experimentando a fluência provocada pela planaridade da paisagem holandesa. Ando por campos agrícolas, onde vejo monoculturas. Linhas longas e harmoniosas de uma única cultura me trazem uma sensação de confiança, de controle. As coisas estão arrumadas e no lugar. Exceto por uma coisa: nós não pertencemos. Nós somos as ervas daninhas, onkruid, como os holandeses chamam.

Hora de pagar: em débito com a história

Você está satisfeito? 

As plantas e sementes trazidas pelos portugueses para serem cultivadas no Brasil raramente prosperavam. As primeiras tentativas de plantar trigo, datadas do século XVI, foram desastrosas. Essas plantas não entendiam o solo, não interagiam com os ecossistemas locais, sentindo falta de seu continente de origem. Somente no século XX, com a ajuda de produtos químicos, pesticidas e máquinas pesadas, o solo foi “corrigido” para assimilar com sucesso essas culturas estrangeiras. Mas comida não é apenas uma fonte de calorias para o corpo humano, como nossas noções científicas podem nos levar a acreditar.

Intrigados por esses assuntos, Joélson Buggilla e eu temos criado projetos relacionados à alimentação e ao meio ambiente. A Pedagogia das Sementes é um deles, que começou quando Joélson fazia pesquisas para outro projeto nas florestas do Rio de Janeiro. Ele voltou com os bolsos cheios de sementes, fertilizado pela incrível experiência de passar uma semana na floresta de alimentos em Paraty. Essas sementes foram, então, catalogadas e armazenadas em saquinhos e estão, desde então, aguardando um pedaço de terra para serem cultivadas. Elas carregam esse desejo e servem como um lembrete do nosso sonho de cultivar nossa própria agrofloresta e levar uma vida mais autossuficiente. A coleta dessas sementes nos tornou conscientes de todas as sementes que estão ao nosso redor o tempo todo. Quando começamos a trabalhar na cozinha de Jan van Eyck, percebemos que preparar os alimentos estava liberando sementes, que estavam sendo descartadas como resíduos. Foi então que Joélson começou a interromper sua trajetória habitual e trazê-las para o nosso estúdio. Como o estúdio nunca fica abaixo de 18°C, o transformamos em uma estufa onde as sementes começaram a brotar. Alguns meses depois, tivemos nossa primeira colheita de tomate cereja.

Muitas são as lições que aprendemos nesse projeto, mas a que decidimos abordar neste texto é a relação da semente com a história. As sementes, acima de tudo, têm histórias embutidas. Eles carregam informações históricas para expressar, que se tornam visíveis à medida que brotam, se relacionam e são cuidadas. O alimento produzido por essas plantas também nos conta uma história que ouvimos e lemos com nosso sistema digestivo, e que é absorvida por todas as células do nosso corpo. A alimentação é informação e um mediador privilegiado na relação entre sociedade e ambiente. A partir da alimentação, relacionamo-nos com as paisagens onde é cultivada, com os métodos agrícolas que foram utilizados e com a informação contida nas suas moléculas. Se estivermos cientes das sementes que o sistema contém, podemos contribuir para a continuação do ciclo, conectando passado, presente e futuro.

Hoje, a grande maioria do que comemos como sociedade teve sua história apagada. A maioria dos agricultores não é mais responsável por guardar sementes de uma colheita para outra. Alimentos geneticamente modificados reduziram a biodiversidade e achataram a relação das sementes com a história, unificando a diversidade de determinada espécie às variedades economicamente mais bem-sucedidas, transformando sementes e alimentos em produtos.

E que lições essas sementes e esses alimentos geneticamente modificados nos ensinam? Essa é uma lição de esquecimento, de amnésia, de falta de história ou de relação com o local. À medida que comemos esses alimentos, também estamos ensinando nossos corpos a se comportarem como aquelas colheitas bem-sucedidas, em que  a diferença é considerada uma erva daninha, algo a ser erradicado.

Quando estávamos trabalhando atrás do balcão, entramos em contato com a fome das pessoas. A fome é multidimensional. Nós, como sociedade, estamos famintos por aqueles ingredientes que a comida sem história não pode nos fornecer. Este cardápio foi projetado para atender àqueles que vieram até nós com fome. Que ele o alimente com histórias mais complexas ou, pelo menos, plante uma semente.