Como você se sente quando vai a um museu? O que espera desses espaços? Pesquisas recentes apontam que os museus, como herdeiros de uma tradição elitizada e pouco inclusiva, ainda são vistos com certo desconforto por significativa parte da população brasileira. Por outro lado, muitas instituições culturais vêm pouco a pouco se transformando: seja no que se refere ao conteúdo de suas programações, mais frequentemente reconhecendo a multiplicidade de matrizes culturais que fundam o país, ou ainda ao próprio formato das atividades, ao ultrapassar a mera exibição de acervos artísticos, históricos ou científicos, é nítido o movimento vivido pelas instituições que organizam muitos dos nossos saberes. Para além de acervos e exposições temporárias, tais instituições vêm se constituindo também como espaços para encontros face a face, seja a partir de visitas guiadas, palestras, oficinas e muitas outras atividades que têm como potência a possibilidade de efetiva troca e coexistência.

Com ações diárias voltadas a estudantes, professores e os mais diversos públicos, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação vem investigando, desde abril de 2018, possibilidades de articulação entre cada uma de suas sedes e as populações das cidades que lhe servem como contexto. Como forma de compartilhar realizações, desafios e imaginar juntos sobre o próprio programa, o Dia Internacional dos Museus, celebrado em 18 de maio de 2019, motivou uma edição especial do curso Transversalidades, na qual sete coordenadores e uma ex-coordenadora do programa se encontraram, em diferentes cidades, com os públicos de cada unidade.

Participaram dessa reflexão as coordenadoras gerais do programa, Francisca Caporali e Samantha Moreira, as coordenadoras pedagógicas Gleyce Heitor, de 2018, e Valquíria Prates, de 2019, e ainda os coordenadores locais Mateus Mesquita, Yana Tamayo, Pablo Lafuente e Márcio Harum. Divididos entre Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, os coordenadores do programa ressaltaram, entre outras questões, a importância de considerar os diferentes contextos – e desafios – a que estão vinculados cada um dos centros culturais.

Gestão de contextos

“Uma parte da pesquisa e da trajetória do JA.CA é entender o território. Considerando as quatro cidades, são contextos muito diversos: os públicos são diferentes, as dinâmicas de trânsito das pessoas são distintas, assim como a estrutura, a arquitetura, a relação com patrimônio e ainda a existência de espaços públicos onde a gente possa ampliar as ações para fora do CCBB. Essas eram questões que nos interessavam muito, e, depois de um ano, conseguimos entender o que é próprio de cada lugar”, contextualiza Francisca Caporali, uma das coordenadoras gerais do programa e também fundadora da organização civil que o realiza, o JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia, sediado em Nova Lima (MG).

Com atividades distribuídas entre as quatro sedes do CCBB no país, o programa tem frequentemente se estendido para além dos edifícios que abrigam a instituição, ocupando, por exemplo, a rua da Quitanda, no hipercentro de São Paulo, e a Praça da Liberdade, pólo cultural da cidade de Belo Horizonte. Também a partir desses diálogos, as ações realizadas têm abordado tanto o universo das artes visuais quanto outros campos do conhecimento, incluindo as variadas heranças que fundam a cultura brasileira. “Quando a gente começou a desenhar o programa, havia a ideia de trazer a questão do patrimônio. Não só o patrimônio arquitetônico, mas também algo do patrimônio imaterial. Queríamos pensar sobre ancestralidade, heranças e tradições; pensar em outros saberes e em outras formas de troca: a música, a comida, a vestimenta, outras línguas, outras culturas, assim como o próprio estar junto e a diversidade”, enumera Samantha Moreira, também integrante do JA.CA e coordenadora geral do programa.

Citando como exemplos duas atividades realizadas no CCBB DF, a saber, um encontro de Dia das Mães com a Escola de Benzedeiras de Brasília e uma visita conduzida pelo rapper Gog à exposição “Jean-Michel Basquiat – Obras da coleção Mugrabi”, a coordenadora local Yana Tamayo ressalta a importância de incorporar práticas e saberes não-hegemônicos aos ambientes museais. “Essa troca de saberes é muito importante para potencializar uma forma mais integrada de produzir conhecimento. Quando a gente traz esses outros saberes para a instituição, a gente espera criar espaços de chancela e legitimação de todos os saberes. Esperamos fazer ainda com que as pessoas reconheçam aqui como um espaço para guardar as próprias memórias”, defende.

Atual coordenadora pedagógica do programa, Valquíria Prates destaca a complexidade do momento histórico atravessado pelo país, chamando atenção à importância de superar ausências históricas e incorporar à programação as múltiplas vozes que, sobretudo nos últimos tempos, vem emergindo em nossa sociedade. “Dentro de tudo o que a gente vivencia nos nossos lugares de trabalho, é preciso estar atento às escolhas feitas e a quem vem participar. São pequenas coisas que a gente precisa prestar atenção, pois a sociedade de agora é bem mais complexa do que há 15 anos. É importante que as pessoas de fato se sintam parte daquilo que foi preparado para todo mundo fazer parte”, defende.

“O futuro das tradições”

A cada ano, o Dia Internacional dos Museus é conduzido por um tema específico que visa provocar reflexões específicas em torno das instituições e do seu funcionamento. Em 2019, o tema escolhido foi “Os museus como eixos culturais: o futuro das tradições”, fazendo com que o conceito de tradição também se estabelecesse como um dos eixos das conversas. Tendo como referência um documento divulgado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Samantha Moreira e Márcio Harum ressaltaram, por exemplo, a existência de tradições que valorizam a vida, mas também de outras, que a ela se opõem. Diante desse contexto, que tradições gostaríamos de levar para o futuro? E quais seriam, nesse sentido, os papéis de escolas e centros culturais nesse processo?

Para a historiadora Gleyce Heitor, coordenadora pedagógica do programa durante seu primeiro ano de atividades, é importante considerar a dinâmica bastante exclusivista que durante séculos orientou o funcionamento das instituições culturais. “Os museus não foram abertos a vida inteira: são instituições que surgem fechadas, como espaços das coleções dos reis para o desfrute dos seus pares. Mesmo quando o museu vai se pensar aberto e público, nem todo mundo era considerado público. Isso não incluía os negros, os ex-escravizados, as mulheres, os trabalhadores etc. Ir ao museu era muito mais uma situação de distinção do que uma situação de educação para todos. Se, nos anos 1990, a gente falava sobre poder entrar no museu, hoje se fala sobre a possibilidade de expor no museu”, analisa a historiadora, apontando à superação de uma “cultura do silêncio” que começa, agora, a ceder lugar a emergentes reivindicações de mulheres, povos negros e povos indígenas, entre outros grupos sociais historicamente marginalizados.

A esse respeito, também a noção de público convocou algumas reflexões entre os convidados e participantes das conversas. O que significaria, afinal, ser público e acessível? Para além da acessibilidade dos espaços e da tradução de algumas atividades para a Língua Brasileira de Sinais, é preciso considerar a acessibilidade das linguagens usadas em instituições culturais ao estabelecer relações com o público. Coordenador local do programa no CCBB RJ, o pesquisador e curador Pablo Lafuente ressalta a importância da mediação e da horizontalidade para que se potencializem as experiências proporcionadas por essas instituições. “O museu não é só um lugar onde você tem coisas e conserva essas coisas, mas é uma máquina de contar, uma máquina de escrever histórias. Só que as pessoas que escrevem essas histórias são as pessoas erradas, pois elas têm privilégios que as impedem de enxergar. A história da arte brasileira não conta nada do que o Brasil é, mas isso pode ser desfeito”, afirma o curador, reverberando críticas direcionadas a um regime cultural e artístico que ainda restringe a produção de conhecimento e discurso a especialistas, relegando ao público a única função de consumir essa produção.

Como possível antídoto a esse quadro, no entanto, Gleyce apresenta a ideia de democracia cultural, apontando à substituição da supracitada “cultura de silêncio” por uma “cultura de acesso e participação”. Nesse sentido, em vez de distribuir para muita gente aquilo que pouca gente produz, seria importante, em sua visão, distribuir recursos, agendas e plataformas para que mais gente possa produzir e distribuir os resultados de suas próprias práticas culturais.

Museus, escolas, comunidades

Entendido pelos convidados como potente estratégia de transformação social, o estabelecimento de relações mais próximas entre escolas e instituições culturais também ganhou força ao longo das conversas, sobretudo no que se refere às atividades do programa que se inspiram em datas especiais também presentes no calendário escolar. “Se as escolas têm a necessidade de celebrar as datas comemorativas, o programa também tem essa necessidade, visando aproximar o público e abrir espaço para novos públicos, novos visitantes e possíveis frequentadores. Todo mundo no Brasil tem a lembrança das datas comemorativas ao longo de décadas, e nossa ideia tem sido trabalhar com práticas artísticas e educativas que tenham ressonância no calendário escolar”, explica o curador Márcio Harum, coordenador local do programa no CCBB SP, fazendo referência a momentos como o Carnaval, o Dia das Mães e também o Dia dos Povos Indígenas. Não por acaso, portanto, algumas das ações realizadas dentro do programa têm buscado contribuir justamente para a ressignificação e a reinvenção dessas tradições. Do luto à luta, sem se restringir à ideia de festividade, tais ações por vezes se constituem como potentes reflexões em torno de conhecidos marcos comemorativos, convidando seus diferentes públicos a revisitarem as próprias memórias e experiências, construindo, quem sabe, novas associações, mais críticas e inclusivas, relacionadas às mesmas datas.

Para além dessas datas, no entanto, grande parte da atividades do programa tem como foco justamente atrair professores e estudantes, reiterando o entendimento de museus e escolas como núcleos culturais que podem – e devem – funcionar em constante diálogo. Seja a partir de recorrentes visitas mediadas ou ainda de eventos especiais conduzidos por profissionais ligados a múltiplos campos de saber, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação vem, gradualmente, estimulando a constituição de comunidades e rotinas de encontro em cada um dos contextos onde atua. “Mesmo que hoje a gente tenha muitos outros conceitos, como transversalidades, redes e rizomas, a ideia de um elemento nuclear que não existe sem o que está em volta ainda é uma coisa muito cara, sobretudo para pensar espaços como os museus e os centros culturais. São espaços que reúnem determinados saberes, e nossa tentativa é trazer outros saberes para dentro desse caldeirão”, analisa Mateus Mesquita, integrante do JA.CA e coordenador do programa em Belo Horizonte.

Entre as estratégias para fomentar tais comunidades, seja em torno de escolas ou centros culturais, como é o caso do CCBB, foram mencionadas ações de formação a longo prazo, abrindo espaço à criação de redes e possíveis parcerias entre educadores vinculados a diferentes instituições, assim como entre esses educadores e outros agentes sociais. No caso do CCBB RJ, por exemplo, foram destacadas consistentes parcerias entre a instituição, abrigos, escolas para jovens e adultos e também instituições voltadas à primeira infância, reconhecendo a importância de não somente propor novas atividades, mas também fortalecer ações afins realizadas por outras instituições. A partir de iniciativas como essas, centros culturais passam a ser entendidos como lugares de experimentação, interlocução e troca de experiências, assim como espaços para se estar junto, aliando experiências artísticas à práticas de convivência, escuta, diálogo, participação e comunhão. O que, afinal, a arte pode ensinar à educação? E o que a educação pode ensinar à arte?

Tendo em vista um contexto no qual ensinar e aprender frequentemente se apresentam como práticas simultâneas, as discussões realizadas entre os coordenadores do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação ressaltaram a importância de se entender educadores e educadoras como agentes de distribuição e redistribuição de capital cultural. Ao substituir meras pautas de aprendizagem por ações que supõem o encontros de saberes, abre-se espaço para o estabelecimento de processos que visam a descentralização das possibilidades de se aprender e ainda a capacidade de lidar com experiências e sujeitos culturais não reconhecidos pela escola e as instituições formais, como indígenas, quilombolas, contadores de histórias e até mesmo frequentadores de baile funk. Superando uma noção de educação que normatiza a relação com produtos culturais, o que se estabelece, a partir das reflexões compartilhadas ao longo das conversas, é o fortalecimento de práticas educativas que evocam a amplitude do sentido de experiência cultural, convocando-nos a olhar, sobretudo, para os usos e vivências concretas de cada contexto. E assim seguimos.