“Toda aula é matéria em movimento”.

(Gilles Deleuze). 

Movimentar pode ser mobilizar, ativar, mover, sacudir, abalar, cuidar. Estar em movimento é estar sempre em trânsito, deslocando-se. 

É no deslocamento entre a sala de aula e o espaço expositivo que este texto caminha: um relato de percursos, de idas e vindas e também de pontes, nessa fronteira que é uma zona de intersecção e de fricção entre a arte contemporânea e a educação.

É sobre ser professora, promovendo experiências, e ser artista, propondo relações educativas. E vice-versa.

Esse lugar “entre” que se estabelece nas práticas de artista e professora também fornece alimento para minha produção pessoal de arte, me devolvendo constantemente ao desejo de, como artista-professora, me colocar no lugar da aluna; e como professora-artista, pensar a aula pela lógica da arte, fazendo com que a inventividade e o estado de criação acabem por borrar as fronteiras entre esses campos. 

Gosto de pensar na figura do “ARTISTAS-ETC” como nos traz Ricardo Basbaum (2013, p.167) referindo-se a essa figura múltipla do artista, advertindo para sua distinção no vocabulário, acerca do que ele chama de “ARTISTAS-ETC”: 

[…] Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico, etc.).

  A busca por interlocução e trocas com outros e outras “etecéteras” me levou a integrar o grupo “Práticas Compartidas”, idealizado pelo artista Fábio Tremonte, um programa formado por uma série de encontros pós-disciplinares entre artistas, pesquisadores, educadores e outros profissionais das artes que buscam compartir saberes, formas de fazer e encontrar coletivamente construções e possibilidades tanto para a produção artística quanto para pensar o lugar das artes na construção e na composição de saberes na sociedade contemporânea.

FOTO LOUSA 

Legenda: GRIMALDI, Ana Helena. Diagrama de Práticas Compartidas, 2021.

Giz sobre lousa. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1vwmaQidPPgf-l0ojc3-0tYVhXCjUwUbP

Acredito na potência do encontro para coletivamente construir e desconstruir saberes, por meio do entusiasmo em aprender, em conhecer; e também em desaprender, desprender, desapegar de ensinamentos e histórias que se mostram colonizadoras, limitadoras. Nesse movimento, desaprender o que não mais nos serve seria aprender ainda mais fortemente aquilo em que acreditamos.

Quantos movimentos cabem nesse trânsito? Quantas matérias se movimentam?

Traço de minha experiência um mapa de (sobre)vivência com trilhas entre a sala de aula e o espaço expositivo; entre ser artista e ser professora; entre propor ações educativas para alunos, alunas e professores e experimentá-las nas próprias aulas; entre levar os alunos e alunas até as instituições e trazer a obra de arte para perto da sala de aula.

Movimento #1: (Sala de Aula –> Instituições)

As visitas a instituições culturais são parte geralmente integrante do programa das aulas de artes e proporcionam não só o encontro dos alunos e das alunas com as obras, mas a vivência de experiências diversas, que muitas vezes escapam do seu planejamento e do universo da arte, evidenciando contextos, surpresas, frustrações, encantamentos. 

São experiências “que nos passam, que nos acontecem, que nos tocam” (BONDÍA, 2002, p. 21) e vão muito além dos objetivos iniciais de aprendizado de um estudo do meio. Esse movimento não se inicia dentro das instituições, mas, sim, na sala de aula, no pátio, no ônibus, no momento do lanche.

Ao conhecer uma exposição antes da vista com a escola, minha atenção acende para todos os detalhes das obras e dos artistas: conceitos, procedimentos e poéticas são observados e sentidos de uma forma diferente daquela sem o compromisso educativo.      

Nesse estado de atenção, a chance de a obra – que inicialmente poderia ser vista de passagem – captar, envolver tende a aumentar. A chance do espanto e do encantamento; de diferentes conexões acontecerem se intensifica – e também a vontade de compartilhar e dividir a experiência.

E de volta à sala de aula, surgem muitas questões. Como preparar os alunos e alunas para uma visita? Quanto revelar (ou não) sobre uma obra ou exposição de modo que a visita se enriqueça e a experiência não se esvazie?  Como planejar o trajeto, as paradas e o tempo de deslocamento, para que esses momentos sejam de encontro potente e não de desgaste e cansaço?

Organizar um estudo do meio de artes é uma operação complexa. É preciso mobilizar a escola, o(a)s aluno(a)s e as famílias, fazer a ponte com a instituição, negociar o tempo da visita e a quantidade de alunos por turma, aceitar que a visita muitas vezes dura menos que o deslocamento da escola até a instituição e tentar potencializar e desdobrar esse tempo o máximo possível para que ele seja suficientemente significativo. 

Trata-se de correr riscos: de que o(a)s aluno(a)s não se afetem pela experiência, de que o(a) educador(a) da instituição não acolha a turma, de que não seja possível passar por “aquela obra” tão aguardada.  

É sempre uma trilha instável: ansiar pelo prazer da visita e ao mesmo tempo acolher o desconforto que algumas situações ou obras acabam por despertar. É preciso administrar os silêncios e acolher também o próprio incômodo.

Jorge Menna Barreto acredita na “sobrevivência do espanto” e compara os efeitos que as obras podem nos causar e a forma como as ações educativas podem “agir” sobre eles a uma picada de cobra e seu tratamento:

É assim também que os soros anti-ofídicos funcionam no caso de uma mordida de cobra. A cura (reação) não está na supressão, facilitação ou diluição do conflito presente em uma obra, mas na intensificação do sintoma, na concentração, na potencialização. Gosto de pensar que as boas obras são aquelas que nos picam e inoculam um veneno que não nos deixa dormir, que alteram o nosso eixo de equilíbrio. E se deixássemos o nosso público ir para casa insatisfeito, com indigestão, irritado e se sentindo traído na sua expectativa de “quero ir pra casa satisfeito”? Acho importante pensarmos um projeto educativo que garanta a sobrevivência do espanto e do incômodo, que acredito serem os dois maiores capitais pedagógicos, pois podem (sem garantia) ativar o antigo “desejo de querer saber mais”, base de toda a filosofia. (BARRETO, 2014, p. 210).

Busco com a observação atenta e o registro dessas experiências possibilitar que elas se alarguem, se estendam, para todos nós: alunos, alunas, professores e também para a instituição e seu chamado setor Educativo, por meio da devolutiva espontânea dos relatos desses processos. 

E nesse movimento de ida e volta, de levar e trazer, proporcionar e receber, novas possibilidades e desdobramentos viraram destinos para outros caminhos.

Nasce desses movimentos meu interesse pela Educação em Museus e Instituições Culturais.

Movimento #2: (Instituições –> Sala de Aula)

Após a visita, costumo investigar com os alunos e alunas, como forma de avaliar a visita, o registro de alguns aspectos vividos pela turma, incentivando a conversa sobre as seguintes situações (já esperadas): espanto, encantamento, incômodo e dúvida. 

Fazemos isso por meio de palavras e imagens (conversas, textos, desenhos, colagens, etc.).

Desdobrar os recursos educativos elaborados pela instituição também amplia a experiência, principalmente quando adaptados e multiplicados, tendo em vista o contexto e a realidade vivida em classe: conhecimentos prévios dos alunos e das alunas, faixa etária, programa das aulas de artes e outras disciplinas, projetos interdisciplinares da escola.

É um trabalho de parceria, de apropriação e de imaginação. É também a possibilidade de um mapa de roteiro, um ponto de partida para novos movimentos.

Os processos e resultados podem ser tão ricos, que, assim como as obras visitadas, pedem por exposição e partilha. O público dessa nova “exposição” passa a ser não só a escola, mas também a própria instituição e os autores desses materiais, por meio de um movimento que me dá muito prazer: retornar por essa ponte e compartilhar experiências.

Meu interesse por esse movimento vem do desejo não só de partilhar os sucessos, mas também de dividir incertezas, comemorar os encontros e rever os trajetos.

Em sua publicação, intitulada Diário do Busão: visitas escolares a instituições artísticas (2017), o artista Diogo de Moraes discorre sobre os “erros” que podem acontecer nessa relação entre instituição e público como “desvios semânticos, profanações comportamentais e gestos oposicionais”. Ele explica:

Entende-se que dessa encruzilhada – aquilo que as instituições difundem versus os usos que os públicos fazem disso – podem advir reações imprevistas, saberes outros e agendas não coincidentes, capazes de fornecer elementos simbólicos para um exercício de desconstrução de discursos unidirecionais e hegemônicos. A atenção a essa contraface da oferta justifica-se pela tentativa de deflagrar situações em que as próprias instituições e seus agentes se vejam reendereçados por seus públicos, sendo convocados a também aprender com eles. (MORAES, 2017, p. 3).

Esse interesse pela mediação e pelas publicações educativas agregado à minha experiência em sala de aula me deu a oportunidade de participar de forma colaborativa da elaboração de materiais e ações educativas como os da 31ª e da 32ª Bienal Internacional de São Paulo e da 1ª Trienal Frestas, do Sesc Sorocaba.

Vieram, em seguida, livretos da exposição Gravado, que itinerou por diversas unidades do Sesc, mapas de percurso para exposições da artista Paula Almozara, na Casa de Eva, e da artista Rosilene Fontes, no Espaço Marco do Valle, sendo essas duas últimas instituições na cidade de Campinas (SP).

Publicações Educativas como Matérias em Movimento 

Minha exploração de materiais educativos me levou a conhecer o Convite à Ativação do CCBB Educativo, coordenado pelo JA.CA Center: um dispositivo que, ao mesmo tempo que dialoga com as obras das exposições, propõe experiências e criações que partem desses conceitos para muitas vezes expandi-los.

Investiguei essas publicações não só pelo meu interesse como professora, mas também como artista: os Convites costumam se transformar em pequenos objetos artísticos, uma vez que o material físico pode ser montável, dobrável, rasgável, adesivável; ele é, ao mesmo tempo, a matéria e a ideia de uma experiência lúdica e criativa, conectando forma e conteúdo em sua concepção.

Convite a convidar

Ser convidada a participar em parceria com o JA.CA Center do desenvolvimento de novos Convites à Ativação foi uma experiência que me colocou mais uma vez num movimento de ir e vir:  entre participar e propor, entre aceitar o convite e passar a convidar. 

 O primeiro Convite à Ativação que desenvolvemos em parceria foi o da exposição Abraham Palatnik – A Reinvenção da Pintura. A oportunidade possibilitou idealizarmos um “Manual de Instruções” para a construção de uma engenhoca, uma “engenharia de papel”. O material se transforma em uma pequena escultura pop-up que proporciona, a partir de sua construção, experiências com a cor e o movimento, tão caros ao artista.

Vieram em seguida os Convites à Ativação das exposições: Brasilidade Pós-Modernismo, Ideias – O legado de Morandi, Leandro Erlich – A tensão e Armorial 50 anos. Nesses materiais desenvolvemos um segundo caderno: “Para saber mais”, contendo textos mais amplos sobre os artistas e os conceitos principais das mostras, úteis para os professores e professoras se aprofundarem nas questões norteadoras das mostras.

O desenvolvimento desses materiais possibilitou simultaneamente o planejamento, a criação e a vivência de suas ativações, tendo minha sala de aula como um laboratório vivo, onde essas proposições foram experimentadas e até mesmo “testadas”.

FOTOS CA ERLICH

Legenda: maquetes criadas pelos alunos e alunas das turmas de 9º ano a partir dos estudos de instalações propostos no CA LEANDRO ERLICH – A Tensão.  Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1gZFh_LR2iaYix-3ZJzMEgWXRUr7m3JMn

Por ser um trabalho colaborativo, a concepção dos Convites é um exercício de fazer junto, de trazer ideias e possibilidades e também de acolher e problematizar os olhares a partir de todos os pontos de vista: da coordenação educativa e pedagógica, dos artistas, da curadoria, do design, da edição.  Acredito que meu envolvimento com esse trabalho tenha me colocado em um dos lugares “entre” mais potentes de concepção e criação: ser propositora e participante.

 FOTOS e Vídeo  MORANDI

Legenda: participação no Congresso da Escola, relatando os desdobramentos do estudo da obra de Morandi com os alunos e alunas das turmas de 8º ano, a partir do CA  Ideias – o Legado de Morandi. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1N5uFVNjWl1hVJeWBo2sM20Fm2ci3hYWP

Convites nas Escolas

O mais recente movimento com os Convites à Ativação foi o de explorar outro sentido. Não só disponibilizá-los na instituição (fisicamente ou por meio do site) para retirada, mas levá-los diretamente para escolas, acompanhados de uma formação com os professores e professoras e uma proposição direta com alunos e alunas. 

O convite para esse movimento me permitiu viver outras realidades escolares, com alunos e alunas de contextos e idades diferentes dos meus, a partir de proposições de outros convites, não somente aqueles dos quais participei da elaboração e na concepção.

Minha experiência na educação é marcada por minha atuação como professora de escola particular, mas também carrega a memória de ter sido aluna de escolas públicas, realidades muito diferentes.

Ouvir os professores convidados a participar, escolher em parceria com eles o Convite “ideal” para as turmas, pensar a conexão com o programa escolar, com o melhor momento do período letivo, com a poética que poderia se construir ali, foi uma experiência de muito prazer e afeto.

Na  Escola Técnica Estadual ETECAP (Etec Conselheiro Antônio Prado), em Campinas, a professora Luciene Coli escolheu o diálogo com a obra de Palatnik, por sua conexão com o programa das aulas das turmas do 1º  e do 2º  anos do Ensino Médio sobre cores, formas, abstração e o recente estudo dos azulejos da arquitetura do prédio, tão característicos da escola.

Os alunos se envolveram e, mais que isso, se divertiram com as possibilidades de criação. O que mais desejávamos aconteceu: a partir de uma mesma lógica, eles se apropriaram dos conceitos, mas subverteram as próprias sugestões contidas no material, fazendo com que as “engenhocas” ficassem muito diferentes entre si.

FOTOS CA PALATNIK /ETECAP

Legenda: distribuição e ação educativa com os alunos da ETACAP Campinas a partir do CA Engenharia de Papel da exposição Abraham Palatnik – A Reinvenção da Pintura. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1glRfndRBXEO-bKwtgN2VT36I5I6cgA4r

O desejo de trabalhar com a Educação Infantil nos conectou à Escola Municipal de Ensino Infantil Alceu Maynard de Araújo. Localizada no bairro Bom Retiro, em São Paulo (SP), a EMEI recebe crianças de 4 a 5 anos. Em nossos encontros de planejamento, decidimos pela utilização do Convite à Ativação – Jean-Michel Basquiat, com proposições do artista mineiro Desali, por seu potencial lúdico e pela possibilidade de conversar com as crianças sobre a coragem, tema do livro A Vida Não Me Assuta, com poemas de Maya Angelou, ilustrado com imagens de obras originais do artista Basquiat. As crianças criaram máscaras da coragem para personagens que não se assustam! Essa ação foi realizada juntamente com a artista educadora Ana Letícia Penedo, minha parceira no Ateliê Imaginário, e a professora da EMEI, Tatiana Breit, que terminou o encontro com um desfile das crianças e suas máscaras pela escola e o registro da turma debaixo de uma árvore centenária, onde todos costumam brincar e lanchar.

FOTOS CA BASQUIAT/EMEI

Legenda: distribuição e ação educativa com as crianças da EMEI Alceu Maynard de Araújo ETACAP, em São Paulo, a partir do CA da exposição Jean Michel-Basquiat, com proposições do artista Desali. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1gRknEquGEmLOr5Tn334rFBTkrASoqqZT

O movimento gerado por essas ações tem sido o de materializar as experiências propostas, vivendo-as in loco, o que, para os propositores, é como viver uma festa. É como se preparássemos “quase” toda a matéria da festa, mas, ao entrarmos em contato com o local, os convidados e as convidadas, percebêssemos que a experiência só será genuinamente significativa se todos e todas, quem convida e quem aceita o Convite, acabarem de prepará-la juntos.

Movimento #3: (Professora –> Artista)

Gosto de pensar no planejamento de uma aula como uma curadoria, ou várias ao mesmo tempo: qual questão será disparadora das ideias e conversas? Quais artistas podem ajudar a respondê-la ou podem gerar mais perguntas para ampliar a investigação? Que fatos, textos, poesias, músicas e obras potentes podem gerar interesse e desdobramentos? Como aproximar tudo isso? Que materiais educativos desenvolvidos por instituições podem agregar ideias de proposições e aproximações?

América Latina em pé

Em um projeto interdisciplinar sobre a América Latina, as conversas com os alunos e as alunas demonstraram o interesse sobre a resiliência e a resistência do povo latino-americano a processos complexos como colonização, escravização, ditaduras, desigualdade social. E trouxeram a Cordilheira dos Andes – a espinha dorsal do continente – como sua paisagem simbólica.

É possível aproximar esses interesses e relacioná-los à arte contemporânea? 

  Nessa investigação, usei como conceito principal a nossa coluna como símbolo de resistência. Pesquisei a verticalidade em criações de artistas contemporâneos latino-americanos e trouxe para nossas conversas diversos trabalhos, como: Dois pesos, duas medidas (2016) e Coluna Infinita (2011), da artista mineira Lais Myrrha; Ruína de Charque (2003), da artista carioca Adriana Varejão; Alto retrato (1978), do artista pernambucano Paulo Bruscky; Brasil (2013), do artista mexicano Héctor Zamora (México); Deserto (2015), da artista guatelmateca Regina Galindo; Muro Ciudad Juárez (2010), da artista mexicana Teresa Margolles; Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira (1978/1979),  do artista baiano Rubem Valentim; Coluna de Cal (2010), do artista paulista Nuno Ramos (Brasil); Plegaria Muda (2011), da artista colombiana Dóris Salcedo (Colômbia); e Me Gritaron Negra, da artista peruana Victoria Santa Cruz.

São trabalhos em que estruturas, colunas e corpos em pé confrontam força e resistência a impermanência e instabilidade.

Pesquisando por materiais educativos, encontrei no Convite à Ativação da exposição Construções Sensíveis – a experiência geométrica latino-americana na coleção Ella Fontanals-Cisneros a proposição: “Como esculpir cartografias em 8 passos”. A partir de quatro pranchas com mapas da América Latina, somos convidados a dobrá-los, rasgá-los, juntá-los, montá-los, de forma a fazer do novo mapa uma escultura que se sustente de pé. Essa operação cria novos pontos de contato entre países e territórios que podem ser observadas, como as interrupções e as sobreposições.

O Convite complementou a curadoria do projeto de forma rica e propositiva: Quantas Américas Latinas são possíveis? Uma operação artística pode ser capaz de colocar simbolicamente o continente em pé? A Cordilheira dos Andes pode ser uma escultura? O que a atenção ao meu corpo e à minha própria coluna me ensinam sobre resistência?

Todos investigaram a própria coluna, por meio de exercícios físicos e de desenho. Nossas conversas geraram uma coleção de palavras que foram associadas aos gestos que criaram inúmeras possibilidades de construir novas configurações do continente.

Durante todo o processo de construção desse projeto, a preocupação estética e conceitual esteve presente: na montagem da apresentação, na escolha e na disposição dos materiais, nos registros dos processos e na exposição dos trabalhos.

FOTOS CA CONSTRUÇÕES SENSÍVEIS

Legenda: trabalhos dos alunos das turmas do 8º ano, a partir do CA Construções Sensíveis da exposição Construções Sensíveis – a experiência geométrica latino-americana na coleção Ella Fontanals-Cisneros. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/18DIXpUCfh2MksLCdQRe3dsFzYbUknD0g

O que é privilégio?

Essas “curadorias” acabam sendo sempre afetadas por outros afetos: obras, exposições e materiais com os quais tenho forte conexão. Nesse movimento de escolhas, não é raro que os alunos e as alunas se surpreendam com a forma próxima com que me refiro aos artistas, seu processo criativo, sua trajetória.

Você conhece esse artista? Ele é seu amigo? Você foi a essa exposição? 

É interessante perceber que o que nos afeta tende também a afetar mais os alunos e as alunas e aproximá-lo(a)s da arte e dos artistas.

Essa proximidade aumentou imensamente em uma experiência recente, com a oportunidade de levar para a escola um trabalho do artista contemporâneo campineiro Kauê Garcia.

O artista se tornou um grande interlocutor para minhas práticas como artista e professora, ampliando sempre meu repertório de arte contemporânea, estimulando o movimento de borrar as fronteiras entre a arte e a educação. Seus trabalhos são recorrentes em minhas “curadorias” com as turmas. Sua pesquisa, situada na intersecção entre arte e vida, é conceitual e contundente, mas ao mesmo tempo lúdica e relacional, provocando e envolvendo o público. 

Em um movimento de várias negociações entre instituição e escola, uma proposição de sua autoria se materializou na praça ao lado da nossa sala de aula: um lugar de experiências e relações. Ali foi “instalada” temporariamente sua obra Distraídos Perderemos, uma mesa de pingue-pongue triangular, exposta anteriormente no Sesc Pinheiros, na mostra Estamos aqui.

Distraídos Perderemos tem a potência de despertar diversas inquietações: que relações a arte pode provocar entre as pessoas?  O que a arte pode me ensinar sobre o outro?

A curadora Érica Burini escreve sobre a obra e a dificuldade do jogo na mesa alterada:

Esta dificuldade fabricada sugere uma conexão ao “jogo da vida real” e a necessidade de estar atento às estruturas as quais somos submetidos, pois através delas estamos encaminhados à derrota. É assim que surge a alusão à obra de Paulo Leminski, Distraídos Venceremos. O artista manipula o título do livro de poemas como intervém no jogo de ping-pong, apresentando ceticismo em relação às construções que se apropria, assinalando a desigualdade de direitos, já de início, que compele a partidas desequilibradas. 

A “obra” é a própria experiência que ela proporciona em uma proposição que nos convida ao jogo e também a nos relacionarmos com as outras pessoas. 

Em nosso estudo sobre a Estética Relacional, vimos que as obras que se identificam com essa tendência artística podem acontecer dentro de atividades e contextos cotidianos, geralmente fora do ambiente de instituições artísticas. 

Minha proximidade com o artista e uma vontade muito grande de proporcionar essa vivência aos alunos e alunas possibilitaram que a obra chegasse até a escola e fosse “exposta” ao lado de uma mesa tradicional de pebolim.

Termos essa obra ao lado da sala de aula é um privilégio? E estudar em uma escola particular? 

É disso mesmo que se trata a obra! Seu formato triangular sugere uma relação com a organização da pirâmide social e todas as suas consequências. O jogo nos coloca em contato direto com a desvantagem e o privilégio. Viver e jogar promoveu uma fruição diferente! Quando perguntados e perguntadas de que lado preferiam jogar, as respostas da turma foram diversas:

– Quero jogar do lado menor, vai ser mais fácil! Vou ganhar!

– Eu prefiro jogar do lado maior. Se eu ganhar com ajuda da mesa, não vai ter graça, vão dizer que levei vantagem.

– Esse jogo não é justo!!! Não dá pra jogar assim!

Além de nos colocar por meio da arte em contato com um jogo de cartas marcadas, quantas outras matérias podem se apropriar dessa experiência? A Matemática pode fazer o cálculo do privilégio, medindo as áreas da mesa e as chances dos jogadores. E as relações que podem se estabelecer em História, Geografia, Educação Física, Sociologia?

FOTOS MESA

Legenda: Distraídos Perderemos, de Kauê Garcia. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/17zWBdTPO3nkQiuXYSE16pEs6vzZOtcvE

Outro aspecto que mobilizou a escola foi a preocupação com o “objeto de arte”, questões sobre as quais o próprio artista investiga: E se alguém riscar a mesa? Uma obra pode ficar aí mesmo? Em que momentos será possível jogar? Quem pode jogar? Vai ser só durante as aulas de Artes Visuais?

Experimentar essa obra nos deu a oportunidade de viver a arte em sua conexão mais direta com o cotidiano, nos proporcionou a vivência da desigualdade, do privilégio e nos fez refletir sobre as dinâmicas da vida. 

Ter a sala de aula como ateliê, pensar nas proposições como obras, ver os alunos e alunas como parceiros de um coletivo, pensar os espaços comuns da escola como uma galeria e ter os artistas próximos e amigos como referências, tudo isso é colocar matéria e afeto em movimento.

Movimento #4: (Artista –> Professora)

Em minha produção atual, pesquiso a construção de poéticas a partir da apropriação e do deslocamento de instrumentos, dinâmicas, mobiliário, matérias e dispositivos oriundos e/ou gerados em situações voltadas ao ambiente escolar. Tenho investigado também as formas de aprendizado diversas e do currículo oculto, ou seja, aprendizagens que acontecem de forma implícita ou nas entrelinhas das relações que se estabelecem no ambiente escolar.

Muitas vezes, a construção dessas obras denota uma forma de crítica e problematização em relação à instituição escolar em seu aspecto normalizador e normatizador. O trabalho agrega, na sua construção, a experiência como professora e a memória de ser aluna.  

Gosto de pensar sobre o protagonismo entre os papéis aluno/professor. Lembrando Paulo Freire, “educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la, e assim criticamente conhecê-la, mas também no ato de recriar este conhecimento.” (FREIRE, 2014, p.77-78).

Obras que propõem práticas colaborativas e relacionais que criam zonas (mesmo que temporárias) de aprendizado e criação são, para mim, fontes de inspiração e investigação, como a obra Poipoidrome, do artista francês Robert Filliou, realizada em colaboração com o arquiteto Joachim Pfeufer, a partir de 1963, que propunha uma reflexão sobre o que é a arte e quem são os artistas. Aproxima-se, assim, do conceito da TAZ, uma zona autônoma de aprendizado e criação:

A TAZ existe em algum lugar. Ela fica na intersecção de muitas forças, como um ponto de poder pagão na junção das misteriosas linhas de realidades paralelas, visível para o adepto em detalhes do terreno, da paisagem, das correntes de ar, da água, dos animais e, aparentemente, sem qualquer relação um com o outro. (BEY, 2011, pp. 35-36).

FOTOS: ZONA DE APRENDIZADO TEMPORÁRIA

Legenda: GRIMALDI, Ana Helena. ZAT – Zonas de Aprendizado Temporárias. 2019. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/14Dw6tLCg-wKEHpmKitY4dSjAY3LcDQMd

Por fim, interessa-me pensar o deslocamento de sentidos a partir do lugar de instalação das obras, alterando-o ou sendo por ele alterado, provocando fricções, reflexões e debates que podem evidenciar a singularidade do mesmo, seja ele o espaço urbano ou o espaço expositivo. O artista e pesquisador Jorge Menna Barreto refere-se a essa operação por meio do termo “respons(h)abilidade“: 

Entender o termo responsabilidade a partir da ideia de habilidade de resposta – respons(h)abilidade – enriquece a reflexão sobre a metodologia site-specific, pois coloca o artista em uma posição dialógica diante da situação na qual trabalha. A construção da sua expressão/voz não parte, assim, de uma interioridade, uma identidade intrínseca que mora em algum lugar do seu cérebro ou corpo, mas de uma exterioridade, sempre incapturável, que estabelece o norte da operação artística. (BARRETO, 2018, p. 57).

Na exposição coletiva Depois do Fim, no Ateliê Casa Campinas (2021), o diálogo estabelecido entre meus trabalhos, a produção dos artistas (Alexandre Silveira, Estefania Gavina e Kauê Garcia) e a curadora Érica Burini trouxe a possibilidade de pensar o fim como um ponto de partida. Apresentei trabalhos que buscaram tensionar as formas tradicionais do sistema educacional, como a sala de aula fechada e a lousa como elemento central. 

FOTOS CARTEIRAS 

Legenda: GRIMALDI, Ana Helena. Matéria em Movimento, #1 a #6. 2021. Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1uzNXBC9uJASdZktTQCyF-NW1iez6x92I

Matéria em Movimento, 2020-21, traz o deslocamento das carteiras escolares, símbolos de uma educação tradicional, para outros contextos como ruínas e construções, mas amplia esse contexto para outras paisagens, apostando sempre em uma educação mais livre e propondo o desejo de processos educacionais com outras fontes de aprendizagem e novas maneiras de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Jorge M. Menna. Anotações sobre intervenção urbana no Brasil e as práticas site-specific. Vazantes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Cultura e Artes da Universidade Federal do Ceará – vol. 2, no. 1, Ceará: 2018. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/vazantes/article/view/32917/72985 . Acesso em: 28 fev. 2021.

BARRETO, Jorge M. Menna. A sobrevivência do Espanto. Livro da 31ª Bienal Internacional de São Paulo – Como (…) coisas que não existem. Idioma: português. Fundação Bienal de São Paulo, 2014.

BASBAUM, Ricardo Roclaw – Manual do Artista-ETC. Beco do Azougue Editorial, 2013

BEY, Hakim – TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Editora, 2001.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n.19, 2002.

DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. A série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2014

KWON, Miwon. “One place after another: Notes on Site Specificity”. In: October 80, EUA, 1997.

KWON, Miwon. One place after another: Notes on Site-Specificity. In: SUDERBURG, Erika (Ed.). Space, Site, Intervention: Situating Installation Art. Minneapolis, EUA: University of Minnesota Press, 2000, pp. 38-63. MORAES, Diogo de. Diário do Busão – visitas escolares a instituições artísticas. Disponível em: https://diogodemoraes.net/index.php/textos/diario-do-busao/ Acesso em: 28 maio 2022.