Publicada em 1883, a obra “As aventuras de Pinóquio” conta a história de um carpinteiro solitário que resolve fabricar um boneco de madeira para lhe fazer companhia. Após ser encantada pela Fada Azul, a criação ganha vida, passa a se chamar Pinóquio e aspira ser transformado em um menino de verdade, se sujeitando a uma série de confusões ao ignorar os conselhos do Grilo Falante. A narrativa escrita pelo italiano Carlo Collodi segue a lógica dos contos de fadas, apresentando um final moralizante que, embora tenha sido escrito no final do século XIX, pode ser interpretado como uma maneira de afirmar princípios basilares que regem, ainda hoje, a educação formal no Brasil. 

Quem defende essa tese é o professor e escritor Renato Noguera, convidado da edição de outubro do curso Transversalidades, no CCBB RJ. Autor de literatura infantil e roteirista de desenhos animados, ele explica que a clássica história de Pinóquio pode ser entendida como uma alegoria sobre a educação como um antídoto para a desumanização. “A transformação do garoto de madeira em ser humano só se torna possível se ele seguir a voz maternal incorporada pelo Grilo, se submeter às regras da sociedade e passar pela experiência escolar, negando o país dos brinquedos – antítese da escola –, onde pode usufruir do lazer e do ócio”, comenta. 

Ele acredita que a escola “moderna, iluminista e positivista” é responsável por colonizar o tempo e “suspender a autonomia” de quem aprende, sendo entendida como um espaço para que as crianças superem a infância e se tornem, enfim, “meninos e meninas de verdade”. “A minha crítica, a partir de um embasamento teórico-filosófico, é em relação à falta de escuta e envolvimento das crianças no processo educativo. A partir dessa perspectiva, perguntas como ʽO que você vai ser quando crescer?ʼ caem por terra, pois devemos considerar que as crianças – e também os jovens – já são alguma coisa, independente da ocupação profissional que pretendem ocupar”. 

Essa perspectiva, em sua visão, nos permite pensar as crianças enquanto prisioneiras políticas. “Em todas as instâncias da sociedade, há uma gritante ausência de fala infantil. É necessário que ela seja inserida, e que seja anulada a ideia de que, na escola, devemos todos falar a mesma língua. Efetivamente, as crianças deveriam ser as protagonistas do processo educativo, e a escola, abandonar a ideia de superação da infância, abordando vários sentidos de mundo, por meio da exploração da experiência estética, da arte e da cultura”, defende.

Afroperspectividades

Como exemplo de uma narrativa que aborda, de forma alegórica, o protagonismo da infância, Renato Noguera nos apresenta a “Kiriku e a Feiticeira”. Trata-se de uma animação do francês Michael Ocelot que, sob uma afroperspectiva, destaca um protagonista investido de infâncias e capaz de se ocupar com questões que muitos de nós desconhecemos. 

Por exemplo: ainda no ventre da mãe, o menino Kiriku ordena seu próprio nascimento. Em resposta, a mãe diz que, se ele pode pedir para nascer, é porque tem capacidade de realizar isso sozinho. Ele nasce, corta o próprio cordão umbilical e anuncia: “Meu nome é Kiriku”. Àquela altura, ele nem sequer alcança os joelhos de um adulto, mas sua coragem e curiosidade são incomuns. 

“O filme tem como base uma lenda da África Ocidental sobre um menino que nasce andando e falando, e descobre que sua aldeia está sendo colonizada pela feiticeira Karabá, responsável por matar os homens quando eles atingem a idade adulta. O herói, que é uma criança superdotada, consegue derrotar a algoz por meio da sabedoria de seu povo”, conta. 

A infância como experiência

Para Renato Nogueira, o que fica da história é o entendimento da infância como experiência. “O que Kiriku nos ensina é a compreensão de que a criança está vivendo sob um estado, um sentido de mundo. E estar investido por esse sentimento é compreender que elas podem ser capazes de tudo o que está a seu alcance, inclusive de participar do processo educativo de forma altiva, sem a necessidade de serem guiadas por um adulto, mas colaborando com ele”, defende.  

Segundo o pesquisador, isso abre espaço para brincadeiras, contações de histórias e uma série de outras formas de educar que não necessariamente fazem parte do currículo escolar universal. “O estado de infância é uma abertura para os mundos, animando o professor e mudando a relação que se estabelece dentro da escola. Esse tipo de educação requer uma escuta ativa e empática de todas as partes envolvidas, tornando, assim, a infância em um modo de habitar a vida e compreender os outros.”

Percebendo uma lacuna de produções que apresentam a cultura afrobrasileira para crianças, Renato Noguera idealizou o projeto “Nana & Nilo”, em parceria com o ilustrador Sandro Lopes e a designer Cris Pereira. Nele, dois irmãos gêmeos negros – uma menina e um menino – vivem aventuras na companhia de um passarinho e de uma árvore milenar. Em uma série de livros, os personagens protagonizam histórias que exaltam a importância da identidade negra, bem como do brincar livre, da consciência socioambiental e da empatia. O objetivo, segundo Renato Noguera, é principalmente oferecer referências positivas da identidade e do protagonismo negro para as crianças. Não por acaso, essa preocupação começa já nos próprios nomes da dupla, que evidenciam nossa ancestralidade africana e indígena.