Para o curso Transversalidades de setembro de 2018, o CCBB SP recebeu o professor Fábio de Sá, que abordou o ensino de Libras para crianças surdas. Quais os desafios e métodos mais eficientes? O quanto a socialização em uma comunidade surda ajuda no desenvolvimento de uma criança? Ao longo da conversa, Fábio apresentou um breve retrato da cultura surda, assim como alguns desafios para que de fato nos tornemos uma sociedade mais inclusiva.

Ainda durante a apresentação do professor, é mencionado o marco do congresso de Milão de 1880. Há mais de duzentos anos, esta resolução tomada na Europa ainda reverbera e prejudica a comunidade surda. Por isso são tão fundamentais ações como o Setembro Azul, um mês inteiro de luta no qual a comunidade de surdos se reúne para divulgar e fortalecer a cultura surda.

O que é cultura surda?

Para o senso comum, inclusão significa a presença de um tradutor para língua de sinais em espaços culturais, estudar Libras na faculdade e ser capaz de compreender esta língua. Fábio afirma que antes de se defender ou seguir os passos acima, precisamos, enquanto sociedade, aprender a cultura surda.

Por exemplo: os surdos não usam telefone. Isso não faz parte da cultura deles. Eles se comunicam por vídeo chamada. A imagem e tudo o que é visual têm extrema importância para quem é surdo. A visão é um sentido muito desenvolvido, e é a forma principal de apreensão do mundo. Identificar e reconhecer isso é o primeiro passo para lidar com crianças que nascem surdas, por exemplo. O contato visual é fundamental, e mantê-lo o todo o tempo, enquanto nos comunicamos com um surdo, é primordial, além de ser um sinal de respeito. Na cultura surda, o desvio do olhar demonstra desinteresse, uma vez que a comunicação é um momento de atenção e intensa troca. 

A língua de sinais é um idioma com regras e gramática próprias, reconhecidas por lei. Os cursos de Libras exploram essa gramática, que ainda inclui uma série de expressões faciais e formas de envolver todo o corpo no momento da comunicação. Isto é tão fundamental à compreensão quanto sinais de acentuação e vírgulas na escrita de um texto. Ao abordar a cultura surda, Fábio pondera: “Como vamos trabalhar a inclusão de forma real? Como trabalhar e aprender a língua de sinais e a gramática para além dos manuais de cursos?”. Para ele, a resposta é relativamente simples: “convivendo com a comunidade surda”. O surdo pode ser amigo do ouvinte, mas o ouvinte tem que ter respeito, entender seu mundo e ter empatia.

A identidade surda

O universo dos surdos é distinto daquele dos ouvintes, e as sociedades em que vivemos priorizam significativamente a oralidade. A maioria das crianças que nascem surdas se sente isolada dentro da própria família, e a construção da identidade surda é um ponto delicado no desenvolvimento dessas crianças. É comum, por exemplo, que se sintam sozinhas e excluídas porque os ouvintes geralmente não dão a mesma importância ao contato visual durante a comunicação. Socialmente, não somos educados para uma efetiva comunicação tête-a-tête, olho-no-olho.

Se, por exemplo, uma criança ouvinte pode até não notar expressões faciais e gestos de impaciência vindos de seus pais, a surda seguramente perceberá. A criança surda tem a referência do olhar. Se ninguém se comunica com ela por Libras, ela se distancia dessa família e prefere o contato com a comunidade surda. Para Fábio de Sá, a maior dificuldade é o fato de família e pessoas próximas não terem esta percepção e, consequentemente, a empatia necessária.

Crescer sem um referencial é um dos grandes traumas que uma criança surda pode carregar para a vida adulta, o que contribui para a baixa autoestima, um problema grave entre eles. A falta de alguém que se comunique bem com ela, assim como de um adulto referencial (que seja como ela poderia ser), frequentemente gera problemas de identidade muito sérios.

Expressões faciais + contato visual

A comunicação se dá por várias expressões. Entre os surdos, o corpo fala ainda mais. Envolver todo o corpo na comunicação é fundamental.  Olhares, expressões faciais e gestos bem marcados são formas imprescindíveis de comunicação. Na gramática de Libras, estas expressões bem marcadas são os sinais que demonstram intensidade, desejo e vontade, entre outros sentimentos. Por exemplo: um sinal interligado a uma expressão facial diferencia uma pergunta de uma afirmação.

Ensino, literatura surda e formação profissional

Como acontece a aquisição da língua materna? Para um bebê surdo, a primeira língua é a língua de sinais, e ela deve ser ensinada desde cedo. É ela que dará auxílio para a aquisição da L2, o português. Mas isso não significa que as crianças, depois de terem aprendido o português, possam se sentir plenamente incluídas em uma escola tradicional.

A literatura surda, a contação de histórias e até o humor dos surdos são diferenciados, por tudo o que já foi dito sobre cultura e identidade surda. Para profissionais da áreas de Libras, é fundamental o contato com este material e a introdução de metodologias específicas em escolas, especialmente as que tenham alunos surdos.

A cultura surda e o ensino

O surdo tem a potência de se comunicar e perceber tudo através do olhar. Se um ouvinte muda minimamente a expressão do rosto, se está triste ou agitado, o surdo logo percebe. O olhar é muito valioso. As expressões visuais de boca, olho e rosto constituem um sistema de comunicação bastante discreto, rápido e eficiente. A intensidade da expressão e mesmo dos sinais sempre significam muito.

Portanto, a diferença a ser reparada na educação do surdo não é o conteúdo do aprendizado. A forma de ensinar que é diversa. A contação de histórias é a mais importante ferramenta no aprendizado do surdo. O ensino não envolve somente a Língua Brasileira de Sinais, mas todo o espaço físico da sala de aula e sua espacialidade. A questão da localização espacial, afinal, facilita a visualização. É um tempo diferente, que envolve pensar na localização visual, na encenação com o corpo, nas expressões. Exige-se dos professores empatia para compreender que os aspectos acima citados garantem a eficácia da comunicação. Isso é parte da vivência da comunidade, para além de saber reconhecer a língua.

A literatura surda precisa ainda ser incentivada. É urgente que a comunidade ouvinte, ao lidar com o surdo, entenda que um livro em português não inclui a comunidade surda. Ser escrito (e não oral) não significa que aquela literatura não pertença à cultura oral. No Brasil, há ainda uma lacuna de editoras especializadas em literatura surda. Fábio de Sá indica a Editora Arara Azul para referência de material didático e literatura de qualidade, alertando que a produção destes materiais deve ser mais estimulada, inclusive a partir de professores que motivem crianças a produzir textos e história voltadas para surdos.