Em entrevista recente, o artista multimídia, professor, curador e crítico Ricardo Basbaum conta ao curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Ulisses Carrilho, sobre suas experiências como propositor de obras que envolvem a participação dos públicos, perfazendo um caminho que reconhecemos, na maioria das vezes, como um intercâmbio entre os campos da arte e da educação. 

Diante de uma prática considerada “relacional” – para usar um termo que historicamente tornou-se conhecido para referir-se a proposições que muitas vezes convidavam à participação ou à cooperação – Basbaum expõe, além de muitos pensamentos sobre o que considera próprio do campo “artístico”, uma necessidade ética da pergunta e a indagação contínua dos públicos como única maneira de habitar e compor novos espaços com as diferenças e com os antagonismos presentes no espaço público. Ainda nessa mesma entrevista, diz o artista: “Construir-se necessariamente em público, em coletivo. Eu entendo que a palavra artista quer dizer exatamente isso: a construção de si em público” .

Essa fala traz consigo uma abordagem da arte e de artistas como atores indissociáveis do espaço público. Sabemos que as linguagens artísticas no Ocidente constituíram-se diante dos públicos e, mesmo que um objeto esteja apenas destinado à exibição numa vitrine sem a presença do artista, há algo em sua produção que parte da vida para a ela retornar. Nesse sentido, se, como diz Basbaum, o artista se constrói em público, ao produzir uma obra que se constitui de maneira expandida no espaço social e com a interferência de outros, tal ação criaria também a possibilidade de construir uma espécie de microesfera pública ela mesma a partir dos vários enunciados que partilham desse espaço em construção. E ao construir esse espaço, se criaria, simultaneamente, a possibilidade de imaginar e produzir memória do que foi vivido. 

As décadas de 1960 e 1970 foram cruciais para colocar em xeque muitos dos valores e instituições sobre os quais se assentava um mundo capitalista do pós-Guerra e, entre eles, os sistemas que sustentavam a base da produção simbólica – e também de controle social –, como a cultura e a educação. A partir de um momento de fraturas na ordem vigente e de movimentos que exigiam revisões e transformações profundas na sociedade, as fronteiras que antes separavam esses campos passam a se dissolver, possibilitando novas performatividades sociais para artistas, ativistas e educadores numa acepção ampliada do que antes era reconhecido de maneira separada de arte, política ou educação. 

Essa absorção por parte do sistema de arte de processos e experimentações que possibilitaram, inclusive, uma produção artística, curatorial e educativa de crítica institucional faz parte das contradições que compõem a fisiologia liberal e que passaram a redesenhar, a partir dos anos 2000, também os mecanismos de fomento das políticas culturais. A educação passa a ser considerada uma das mais vantajosas contrapartidas para o investimento privado na cultura, tendo em vista o elevado público atingido por instituições e financiadores, o que se converteu, em parte, na proliferação de programas públicos e megaexposições que passaram a ser vistos a partir de seu grande potencial mediático. 

É conveniente apontar que a história dos equipamentos culturais coincide com a criação de um sistema de memória e de uma noção de patrimônio assentados sobre uma visão eurocêntrica da formação das coleções e dos acervos. Logo, se apoia sobre a compreensão hierarquizada da ideia de Cultura e na conquista colonial, firmando-se e consolidando-se junto à formação dos Estados-Nação e da noção de monumento como instrumento de invenção e manutenção da memória coletiva. É notório, e talvez ainda mais nos países do sul global, como a absorção desse sistema de ordenação da memória contribuiu para a manutenção de desigualdades estruturais e para o apagamento das memórias de muitos povos originários que partilham do mesmo território. Desse modo, iniciativas institucionalizadas que começam a propor mudanças na estrutura vertical, racista e hierarquizante que jaz na origem do sistema de arte são também muito recentes. 

Desde o início do século XX vimos artistas envolvidos com programas que excediam a prática dentro de seus ateliês. Os questionamentos dos cânones e paradigmas artísticos reverberaram junto a questionamentos da ordem social, política e econômica e, algumas vezes, vimos as linguagens próximas de programas políticos revolucionários. 

Desde a fundação de escolas livres a serviço da invenção de subjetividades modernas ao sul do Equador, como foi La escuela del Sur, do uruguaio Joaquín Torres García, ou a criação de uma escola-cidade-universidade-poética de arquitetura, como foi a Ciudad Abierta, em Valparaíso, no Chile, ao engajamento na luta contra as ditaduras, como o fez o Teatro do Oprimido, do brasileiro Augusto Boal, ou ainda Tucumán Arde, uma série de ações urbanas realizada por um grupo de artistas argentinos em Rosário, na Argentina, ao florescimento de inúmeros programas de arte-residência nas décadas de 1990 e 2000, as mobilizações artísticas que extrapolam um sistema produtivo-expositivo tornaram-se vitais para pensar, tensionar e produzir novos espaços de atuação da arte na vida. A percepção do potencial  transformador de uma nova agência ética e estética passa a valer-se também de um valor comunicacional da arte ao produzir visibilidades para os discursos dissidentes, buscando evitar o apagamento do dissenso e da diferença pelos discursos dominantes. 

Ao recuperar parte dessa memória artística, pedagógica e experimental de resistência e transformação, gostaria de tecer algumas considerações sobre a ação do JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia, espaço independente de criação e residências artísticas, fundado em 2010 e localizado em Minas Gerais, como agente deflagrador da proposição educativa em larga escala que ocupou os programas educativos do Centro Cultural Banco do Brasil entre os anos de 2018 e 2022 em quatro cidades brasileiras. 

Durante quatro anos de atuação institucionalizada, as ações educativas do CCBB foram pensadas e dirigidas, em grande parte, por agentes culturais independentes que vinham de experiências que remontam a processos que se situam neste atravessamento entre a prática artística como prática educativa e a prática educativa como prática artística. As aproximações do JA.CA com os campos da tecnologia, da arquitetura, do urbanismo, da comunicação e do design, para além do campo das artes visuais, também posicionam suas iniciativas neste lugar híbrido em que suas ações não podem ser situadas exclusivamente num circuito convencional de arte ou de educação.

A entrada desse grupo de pessoas, que vinham de uma experiência auto-organizada como um programa público patrocinado pelo Banco do Brasil, criou, necessariamente, uma estrutura muito mais robusta de profissionais ligados ao campo específico da mediação cultural a fim de compreender e implementar um projeto educativo em larga escala e que pudesse, de fato, dialogar com as cenas culturais locais e consolidar uma relação com os mais diversos públicos em cada cidade.

Possui papel estruturante nessa tarefa o diálogo entre as coordenações pedagógicas gerais do programa, a coordenação geral e as coordenações locais na busca por um pensamento programático-conceitual integrado e bem fundamentado para garantir seu funcionamento mediante novas instâncias institucionais e por uma compreensão ainda mais abrangente dos públicos. Por um lado, profissionais experientes no campo da pesquisa e da prática em educação e mediação cultural ocuparam as coordenações pedagógicas gerais e as coordenações pedagógicas locais, enquanto a coordenação geral do projeto e as quatro coordenações locais foram integradas por profissionais de perfis híbridos que trafegavam entre a prática das artes, da curadoria, da gestão e da educação. A formação dos educadores das equipes era bastante variada, buscando criar diálogo com diversas áreas de conhecimento que tangenciavam a ideia de cultura. A busca pelo intercâmbio mais horizontal entre essas áreas fazia parte do intento de desierarquizar saberes e pesquisas, o que esperávamos que fosse também refletido nas programações propostas pelo programa. 

Tal posicionamento diante do circuito, bem como a formulação de uma proposição artístico-pedagógica-curatorial coerente com esses postulados críticos não são inéditos nas experiências latino-americanas. No entanto, situam essa experiência educativa institucional, sua escala e sua implementação em âmbito nacional num momento crítico da política brasileira em que ações dessa natureza começavam a se inviabilizar, especialmente no contexto das políticas federais para a cultura. 

Apoiado sobre um projeto político-pedagógico que valorizava a cultura em todas as suas formas de expressão, o Programa CCBB Educativo Arte & Educação foi implementado como um projeto de educação patrimonial, transversal e se propunha a dialogar não apenas com a área de Artes Visuais da instituição, mas também com as outras áreas patrocinadas pelo Banco do Brasil: Cinema, Música, Teatro e Dança. 

Diante de uma panorama muito diferente das ações localizadas em um único território e da gestão das residências artísticas realizadas pelo JA.CA anteriormente, o projeto buscou criar em quatro cidades um programa público de ações alinhavadas por um eixo programático único, mas que contemplava as diferentes cenas culturais de cada território no qual se inseriam os CCBBs, convidando diferentes agentes para a realização de atividades junto aos públicos do centro cultural. 

Sabemos que essas escolhas implicavam diretamente uma discussão estética, ética e política e que desenvolver um projeto como esse num centro cultural com tanta visibilidade poderia significar uma experiência estratégica, porém arriscada, diante da centralidade de um governo de extrema-direita radicalmente contrário ao debate das políticas públicas. De maneira geral, e apesar do contexto politico que se instaurava, a programação buscou unir e dissolver, num mesmo espaço, as fronteiras que definiram por muito tempo as noções de centro e periferia na cultura num intercâmbio constante de saberes.

Essa forma de pensar e compor a programação foi, certamente, um ponto altamente assertivo no que tange ao objetivo de tornar mais complexa a teia das atividades que ocupavam o espaço da instituição. A possibilidade de discutir tanto o que estava presente quanto o que estava ausente no espaço era uma possibilidade que só se dava através das programações do educativo. Foi uma oportunidade privilegiada de afirmar a legitimidade dessas produções artísticas e culturais locais, estabelecendo a possibilidade de um ambiente aberto à participação, à criação, à pesquisa e ao pensamento livre. 

A consciência de que os agentes/gestores de projetos educativos não são os únicos detentores de conhecimento nas ações artístico-pedagógicas também foi essencial para que se formasse um dispositivo de fomento cultural paralelo dentro do programa na medida em que o JA.CA contratava a participação de muitos outros artistas, educadores e agentes culturais locais, convidados a realizar ações junto aos públicos. A partir dessa maneira de viabilizar a participação de muitos outros agentes externos à equipe dentro do programa, afirmávamos o compromisso com outros protagonismos, com outras redes comunitárias, corpos e subjetividades diversas como maneira de dar sentido a uma proposta de educação patrimonial pautada numa visão transformadora da educação e do próprio meio da arte. 

A atuação de muitos agentes situada entre esses campos da arte, da educação, da pesquisa, da gestão e da curadoria expressa também, em parte, as insuficiências e contradições presentes no sistema, no mercado e nos espaços formativos da arte. É notável também que o enfraquecimento das políticas públicas para a cultura e a educação vieram soterrando esforços anteriores fundamentais à constituição de uma noção democrática de memória e de patrimônio artístico e cultural.

A obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas afro-brasileira e indígenas nas escolas possui pouco mais de 14 anos, e enfrenta ainda muitas dificuldades para sua implementação. Ao mesmo tempo, vemos no presente uma presença muito mais efetiva de lideranças indígenas nos movimentos sociais, no circuito de arte, na comunicação, nas universidades. As questões relacionadas às diásporas negras e ao apagamento da memória africana no Brasil também se manifestam com muito mais assertividade na esfera pública e estas manifestações têm se tornado muito mais visíveis com o uso das mídias sociais. Há um processo contínuo de revisão e reparação histórica em curso que mobiliza afetos profundos na sociedade, independentemente de que produza também resistências em setores mais conservadores e autoritários. 

Tais considerações surgem com o intuito de pensar que tanto a escola quanto a universidade, quanto o meio da arte e da política necessitam do intercâmbio contínuo entre seus atores para que se possa seguir produzindo vocabulários para a esfera pública e novos imaginários nos quais esses muitos mundos possam coexistir. Essa produção simbólica está em andamento e é um trabalho coletivo, fruto de muitas experiências anteriores e da participação política de vozes diversas na construção desse espaço. 

Dessa maneira, retornamos ao ponto de princípio deste texto em que um artista-educador evoca a necessidade de constituir-se em público, em coletivo como um imperativo para a produção da linguagem e da vida comum. Como, em meio a tantos desmanches, nos reconectar com a vida comum através da arte, da educação e da política? Como nos manter próximos da produção da linguagem e de todo o seu potencial generativo para garantir a existência de múltiplas subjetividades e formas de vida?

Ao longo do tempo, essa experiência no programa educativo do CCBB nos apontou a necessidade da importância de seguir nutrindo as redes de pessoas e pensamento; de aprender com mestres e mestras, pajés, benzedeiras, com as tecnologias, os professores, artistas, arquitetos, construtores, com a cidade e o campo, com o terreiro, com a floresta, com os jogos e brincadeiras, com as crianças. 

Talvez, porém, ainda nos falte aprimorar nossa capacidade para desaprender a lógica de construção de verdade erigida pelo Ocidente na hipervalorização da racionalidade que nos trouxe até aqui. Para dar seguimento a um processo de construção simbólica a partir dessas experiências e novas aprendizagens, o tempo nos exige recalcular rotas. Torna-se necessário, então, abrir espaço à desorientação da antiga bússola como método (ou a-método). Aceitar criar espaços para a imaginação a partir do não saber, do não domínio, do não poder. Seria esse o caminho para um aprendizado do avesso da modernidade?

Para tanto, é preciso ainda aceitar o fato de que nem todo conhecimento é passível de tradução, que nem tudo poderá existir dentro das formas de saber instituídas por uma civilização dominante. Faz-se indispensável aceitar que a opacidade produzida pela diferença de uma forma de vida, como já reivindicado por Édouard Glissant, não lhe deveria retirar o direito e a possibilidade de existência genuína, pelo contrário, deveria colaborar para a coexistência de universos de saberes múltiplos e de uma vida pública aberta a essa variedade de horizontes e futuridades.

Entendemos que os caminhos abertos para a construção coletiva da linguagem e da vida a partir das experiências artísticas e/ou educativas nos últimos anos depende da presença de todas as instâncias, pessoas e instituições que se compreendam como parte desse agenciamento em torno da memória, da garantia da igualdade de direitos e da imaginação. Ser em coletivo será sempre político.