As grandes perguntas 

Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Estamos sozinhos no Universo? O que é a vida? De que é constituído o Universo? Há somente um universo? Essas são algumas das perguntas que nos acompanham há milênios, cujas respostas trazem implicações filosóficas, científicas (epistêmicas) e artísticas. 

A minha formação acadêmica básica é em física (graduação) e astronomia (pós-graduação), de forma que tenho articulado ao longo dos anos projetos de pesquisa, educação, divulgação e comunicação em ciências a partir do olhar telescópico da astrofísica, cujo clímax poético se intensifica no entendimento de como a luz — que vem de muito longe, dos variados objetos astrofísicos (estrelas, planetas, galáxias, entre outros) — interage com os átomos (matéria luminosa) — presentes na tabela periódica dos elementos químicos. É a partir da astrofísica que eu busco não apenas (i) colaborar com a compreensão de alguns dos grandes mistérios fundamentais da matéria (a formação e evolução do Universo, por exemplo), mas também (ia) entender o papel da ciência e da educação como ferramentas potentes de desenvolvimento científico, tecnológico e cultural, no sentido crítico e sensível que estas palavras nos trazem, conforme aprofundado no pensamento do quilombola Nêgo Bispo. Para ele, a ideia do desenvolvimento como arma que mata, fere e exclui é pouco explorada; e pouco se questiona a quem e a que serve o (des)envolvimento material e simbólico no Brasil do presente século. Entre tantos artistas, Gerhard Marx (África do Sul) e autores pensadores negros e indígenas brasileiros como Rosana Paulino, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e Jaider Esbell têm sido referências epistêmicas para me ajudar a pensar, pela educação em ciências e pelas artes, os diálogos entre as coisas do céu (escalas astronômicas) e as da Terra (escalas humanas e não humanas). Eles têm me ajudado, por exemplo, a repensar as bases históricas e epistemológicas da educação em ciências e sobre o poder do racismo científico, como pseudociência, na construção das nossas cosmologias e na cisão da nossa memória ao, historicamente, excluir as pessoas negras e indígenas dos processos oficiais de educação.

Dessa forma, a astrofísica e a arte têm me ajudado, em encruzilhadas epistêmicas, a compreender questões complexas de escalas, acessando mundos e ambientes que estão longínquos e que, da Terra, por vezes, apenas nos aproximamos pelas artes. Da mesma forma que a astrofísica expande o corpo humano no espaço, por meio do telescópio, e nos ajuda a materializar o tempo, as artes possibilitam interlocuções espaço-temporais em métricas cósmicas variadas. 

Afinal, o que são e para que servem as ciências e as artes em processos educativos? É possível o diálogo entre essas duas expressões da potência criativa humana? Se sim, de que forma? 

Educação em ciências e arte 

Embora ciência e arte sejam projetos históricos e, portanto, muito bem localizados no tempo e no espaço, há muitos debates quentes na literatura especializada sobre como defini-las e sobre quais são as possíveis formas de abordá-las. No contexto do que queremos provocar no presente texto, o projeto de educação em ciências (astrofísica) e artes, ambas pensadas enquanto construções humanas, nos ajuda a romper com a ideia de que estas são puras, ateóricas, ingênuas, politicamente neutras, incapazes de excluir e aprofundar desigualdades. No entanto, independentemente da forma como as encaramos, não nos resta a menor dúvida de que os processos de educação e divulgação das ciências e das artes se encontram nas encruzilhadas das razões sensíveis humanas, que elaboram sinapses de pensamentos complexos por meio da curiosidade, da indagação e da contemplação estética (potência ética). Essas características nos possibilitam enxergar que os processos de educação em ciências e artes estão também implicitamente atrelados às lógicas de opressão marcadas nos sistemas globais neocoloniais, capitalistas e patriarcais, por meio de bio-lógicas pautadas nas experiências masculinas, brancas, heterossexuais e cisgêneras de pessoas bem-nascidas, as quais tomam para si, a partir de relações extremas de poder, o papel etnocêntrico de ler, definir, interpretar, modelar e ditar o mundo (realidades). A conversa entre arte e educação em ciências me possibilita compreender o falso discurso da democracia racial e da meritocracia no país, entendendo o complexo processo civilizatório no Brasil em que se instaurou uma política de extermínio (ainda em curso) da história e da presença física negra e indígena, tendo o racismo científico (pseudociência) como principal referencial político-ideológico. 

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A Redenção de Cam. Tela de Modestos Brocos, de 1895. Ela sumariza as complexas relações entre o colonialismo e o racismo, e como se dá o processo civilizatório no Brasil a partir da tentativa de extermínio da população negra. Por meio da arte, uma forma potente de discutir a educação para as relações étnico-raciais no Brasil.  

Sendo assim, nos diálogos que busco trilhar entre educação e arte, as grandes perguntas da humanidade, em escala cosmológica e da ação antropológica sobre os ecossistemas, estão articuladas a partir de outra pergunta fundamental: é possível construir educação em ciências sem imaginação, poesia e estética e arte sem fatos, desconfiança e atitude científica? Nos meus movimentos, educação em ciências e artes são encaradas como expressões da nossa humanidade — lembrando o tempo inteiro que algumas pessoas (brancas) têm sido tratadas como mais humanas que outras (negras e indígenas) — que potencializam as possibilidades de modelarmos a Natureza e as formas com as quais com ela interagimos. Educação em ciências e artes passam, nesse paradigma, a ser interpretadas como leituras complementares do mundo de que somos parte – mundos estes que são visíveis ou invisíveis, em que as pessoas, as floras, as faunas e os ecossistemas definem cosmologias racializadas. Nessa chave de pensamento, tanto a educação em ciências quanto as artes são metodologias culturais, tecnologias sociais para nos ajudar a forjar, criar e recriar imaginários sociais coletivos e simbólicos e para nos propor outras experiências utópicas capazes de nos arrebatar da distopia flagrante, sem mordaças. Em outras palavras, busco me aproximar, pelo diálogo entre a educação, a ciência e a arte, com outras formas de desalienar, criticar a realidade com pensamento sensível para não naturalizar complexos processos de exclusão, desconectados das construções sociais, políticas e culturais corriqueiras.

Cosmologias racializadas: poética e estética 

No chão dos territórios quilombolas ou das aldeias indígenas com as quais tenho o privilégio de co-partilhar experiências e con-viver, seja na cidade ou no campo, tanto a educação em ciências quanto as artes, forjadas na perspectiva moderna e contemporânea do mundo, estão em permanente escrutínio e desconfiança. Há uma tensão cosmológica no chão desses territórios e, nesse sentido, o meu trabalho em torno da temática arte e educação me ajuda a estabelecer diálogos críticos de interculturalidades entre as várias formas de existir e explicar o mundo, embora nem tudo seja passível de explicação. E, vale destacar, isso acontece desde as escalas do mundo muito pequeno (subatômicas) e do autocentrado (antropológicas) até as escalas do mundo muito grande e distante (astrofísica). A arte, nesses territórios, é parte da vida em sentido ontológico. Há, presentes, funções político-sociais, estéticas, antropológicas e sagradas. A ancestralidade e os ritos de vida e morte (e esta última vista como continuidade da vida) são vividos pela arte — a flora, a fauna, a vida, o objeto, a pintura, a escultura, a oralitura, o oriki (saudação à cabeça, em Iorubá), a culinária, a criatividade, a espiritualidade, a dança, a música e o bem viver. Esses são os conceitos científicos da arte que acontecem nos territórios ancestrais/originários e que, muitas vezes, extrapolam as explicações racionais cartesianas. Essa é a essência da realidade que, por vezes, quer ser comunicada. 

Assim como a educação em ciências, a arte que busco articular é simbólica, porque ela imagina, cria e recria universos com tridimensionalidade espacial (x, y, z) e temporal (t), em que densidade (massa e volume), energia, cor (temperatura), forma (textura), ritmo (gesto, som) e palavra (movimento de energia vital) são metodologias que vibram e ampliam os horizontes científicos.

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Modelagens artísticas do Universo. À esquerda: cosmologia iorubana. A cabaça existencial, que explica a origem de tudo. Fonte: Hearst Museum of Anthropology. À direita: cosmologia moderna e contemporânea. Matéria escura, energia escura e matéria luminosa, ingredientes fundamentais da matéria, estão ali representadas. Fonte:  NASA/JPL-Caltech. Ambas são propostas cosmológicas, pautadas em seus arcabouços teóricos sensitivos. A arte, nos dois casos, traz verdades simbólicas sobre o que pensamos ser realidade (verdade) em cada caso. É possível hierarquizar?

Eu elaboro a astrofísica e as artes como princípios filosóficos e epistemológicos. As cosmologias racializadas têm passado a ocupar papel central nas minhas construções teóricas, práticas e observacionais na educação em ciências. Se filosofia é cosmologia para os gregos — que são referência para o nosso entendimento moderno e contemporâneo de ciência —, então as artes e a filosofia (cosmologia) juntas nos trazem poética e estética. Esses são os dois conceitos que busco (re)formular, inquirir,  interrelacionar e construir as formas como me movo nessas novas (e sempre velhas) encruzilhadas epistêmicas. Interessa-me, do ponto de vista artístico-científico, tensionar o tempo inteiro a ideia de que arte e ciência estão em lados opostos no ethos da modernidade. A poética da matéria, portanto, no âmbito das cosmologias racializadas — matrizes africanas e afro-brasileiras, indígenas e europeias —, não se resume apenas às palavras, às escritas, aos cantos, às danças, à poesia ou ao teatro de base grega e que foram trazidos para a contemporaneidade como regra de tudo o que existe no mundo. Não me interessa olhar para essas relações como se eu pudesse, a partir dessa poética, produzir artificialmente seres e, nesse processo, dar sentido à existência dos artistas-cientistas. Quero mais. 

Primeiro, reconheço que outras filosofias (cosmologias) existem e são anteriores à poética grega da matéria. E que essas outras formas de falar, escrever, cantar, dançar, teatralizar e poetizar a vida, com base em valores civilizatórios africanos, afro-brasileiros e indígenas, são potentes. Enquanto a astrofísica trabalha com espaços, tempos, grandezas físicas, relações e transformações, as artes também articulam corpos e movimentos, traços, sons, cores e formas. Ambas trabalham com alteridades, e com os lugares de debate e de escuta, em que pensamento e imaginação entram em cena. E, nesse sentido, as artes produzidas no âmbito das cosmologias africanas, afro-brasileiras e indígenas permitem que as culturas desses diferentes povos sejam reconhecidas e a diversidade plural da sociedade brasileira, garantida.

Nessas andanças, a astrofísica não existe apenas para estudar os objetos celestes; ela olha para o céu, mas sem perder de vista as pessoas e os não humanos; tampouco a poética da matéria existe apenas para localizar artistas como meros engendramentos dos seres humanos. Não há, portanto, lugar para um só método, norma, receituário ou qualquer prescrição rígida anterior capaz de comportar a força de expressão (ciência e arte) das cosmologias negras e indígenas diferenciadas.

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Educação em ciências e arte. Constelação do Homem Velho, da cultura Tupi. Créditos: Rodrigo Guerra. O céu é uma biblioteca pluriepistêmica e, nele, estão as artes dos povos variados que passaram pela Terra. Para muitos povos originários do planeta, o céu é arte e ciência, sem se desconectar da terra. 

Interessa-me revistar e perguntar: o que é arte para os povos Guarani Mbyá,  Kaingang e Charrua, povos originários marcantes do Rio Grande do Sul? O que é arte para as comunidades negras originárias? O que esses povos produzem são peças de arte? Artesanato? Ou seriam explicações cosmológicas sobre suas formas de ver, viver, estar, sentir e compor a Natureza? O que é arte para esses povos? Quais mistérios científicos (epistemes) estão guardados nessas encruzilhadas do pensamento? O que dizem suas esculturas, comidas, danças, línguas, ritos, cantos e histórias orais? Podemos, nesses casos, conciliar verdade científica e verdade artística?

A estética (forma), que entra em cena no projeto moderno e contemporâneo do mundo a partir do século XVIII, passa também a direcionar-me nos diálogos interculturais que tenho feito. Caminho rumo ao senso da cosmopoética (cultura), ou seja, à construção de outro sentido de beleza, com vínculos ancestrais ligados às cosmopercepções que envolvem não apenas os cinco sentidos (olfato, paladar, visão, audição e tato), mas a cabeça (orí, em Iorubá), como lugar de pensamento que se conecta ao coração. A est-ética artística presente nas cosmologias racializadas contra-hegemônicas pauta-se na construção da verdade a partir da ética do afeto, deixar-se afetar pelo outro para poder realizar transformação. E, para isso, o lugar nobre das encruzilhadas conceituais é inexorável, porque permite outras formas de expressar o que se diz, pensa e sente, sem ter que se prender às normas e aos padrões fixos de uma arte-ciência que é positivista, inclinada a homogeneizar e a desumanizar certas experiências e jeitos de ser e de viver; uma arte-ciência alienada, desconectada dos problemas da sociedade. Não há, aqui, lugar para a hierarquização dos gostos e tampouco espaço para a inferiorização das ciências-artes. Há ressignificação do conceito de belas-artes, vistas como princípio ético e compromisso ancestral dos povos da terra; belas, porque evocam ensinos e aprendizagens que são tecnologias ancestrais, em que a verdade segue em disputa a partir da recuperação da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena (Leis no 10.639/2003 e no 11.645/2008). A literatura (linguagem) acaba ocupando, nos meus movimentos com as artes, papel fundamental. O livro, o romance, o conto, a poesia são expressões artístico-científicas libertadoras, que se encontram nas encruzilhadas.   

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Pinturas clássicas celestes. À esquerda: pintura a óleo do artista francês Jean-François Millet. Vê-se o céu noturno escuro e atmosférico, com estrelas cadentes (meteoros). À direita: obra famosa (Noite Estrelada) do artista holandês Vincent van Gogh, 1889, admirador do trabalho de Millet.

Tropeçavas nos astros desastrada

Quase não tínhamos livros em casa

E a cidade não tinha livraria

Mas os livros que em nossa vida entraram

São como a radiação de um corpo negro

Apontando pra a expansão do Universo

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso

(E, sem dúvida, sobretudo o verso)

É o que pode lançar mundos no mundo  

Caetano Veloso, 1998

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Astrofísica e arte na encruzilhada. Diferentes obras literárias deste autor focadas na poética e na estética da matéria, colocando em diálogo a educação e a divulgação das ciências físicas com as artes. 

STEAM: arte + ciência = progresso? 

O campo de STEAM (do inglês: ciência, tecnologia, engenharia, arte e matemática) na educação em ciências tem sido cada vez mais articulado, pois se entende que as artes desenvolvem a cognição dos indivíduos em várias áreas do conhecimento, ajudando, inclusive, a desenvolver a capacidade de raciocinar sobre imagens e símbolos científicos, e a melhorar a capacidade de interpretação e inter-relacionamento de con-textos. A arte permite novas interpretações sobre o espaço, o tempo, a simultaneidade, a localidade e a causalidade, grandes temas da ciência e da educação moderna, pois nos ajudam a transitar entre os micro e macromundos. A interpretação do presente-passado e a re-imaginação do futuro (entropia e ancestralidade) são processos comuns da educação em ciências e das artes que eu articulo, porque educação, ciência e arte são, para mim, parte da cultura. Trata-se de mundos concretos-abstratos, em que a beleza da re-descoberta e da indagação crítica são iminentes, e suas fronteiras, fugazes, capazes de modelar a realidade de forma tensa e complementar por meio de diferentes metodologias. Por vezes, sem qualquer compromisso prático, imediato, mas sem perder de vista os valores éticos (atitude) e estéticos (forma) em seus processos de produção de verdades (realidades). Nessas encruzilhadas simbólicas, nem sempre a realidade dá origem ao imaginário, mas é ele que dá sentido aos universos possíveis. Portanto, não há espaço na minha relação educação e arte para a ideia tacanha e hegemônica de progresso. Educação, ciência e arte não são lineares. Tudo é dinâmico, na própria circularidade do tempo que, para a ciência e para a arte, é simbólico, e precisa acontecer junto às pessoas e aos ecossistemas necessários para garantir a vida na Terra. 

Sendo assim, o campo da educação STEM, que busco construir com a inclusão da Arte (STEAM), me proporciona  outro jeito de pensar os processos teóricos, metodológicos, observacionais e experimentais que a ciência me permite acessar, de(s)colonizando, racializando a educação em ciências. Ganho, consequentemente, uma camada muito mais profunda para seguir contando e ouvindo as histórias sobre a origem, a evolução e a morte do Universo, sem perder de vista a minha humanidade e as questões sociais, étnicas-raciais e de gênero em suas múltiplas intersecções que per-formam o cientista e educador que sou-sendo.

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Suleando o Brasil: o papel da educação, da ciência e da arte para re-inventar o Brasil, pela professora e artista visual Laura Castilhos (UFRGS).

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Educação em ciências e Artes: perspectiva do autor sobre como a educação em ciências (astrofísica) e as artes se encontram e reverberam no seu trabalho nas encruzilhadas epistêmicas e simbólicas a partir da chave conceitual cosmologias racializadas.

* Professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI)