No mês de junho de 2018, durante a exposição comemorativa aos 100 anos de Athos Bulcão no CCBB BH, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação recebeu a artista, pesquisadora e curadora Fabíola Moulin. Para abordar as transversalidades entre a obra de Athos e o contexto urbano, Fabíola traz para o centro da discussão o conceito de “pele da cidade”, que se traduz nas fachadas dos edifícios dos grandes centros urbanos. 

A pele é um elemento cheio de significados simbólicos. Os povos indígenas, assim como ancestrais do mundo todo, usam a pele como superfície para transmitir mensagens. A pintura corporal indígena carrega e expressa diferentes símbolos da cultura de um povo.  Um exemplo disso são os povos Wayana, os melhores desenhistas de acordo com Darcy Ribeiro. Na tradição desse povo, as pinturas corporais marcam questões fundamentais, tais como a diferenciação entre humano e animal, a identidade dos Wayana e também a recuperação da imortalidade, que no mito da criação foi perdida. Portanto, pintar o corpo é parte de rituais que marcam a existência do povo, e que permitem o renascimento e expressam a passagem das fases da vida.

A pintura corporal indígena é uma forma de expressão artística que implica ações éticas relacionadas às crenças e costumes de um povo. De forma parecida, hoje tatuamos nossos corpos criando um elemento que significa e simboliza, algo que nos identifica – seja como grupo, como vínculo, como crença pessoal.

Fachadas: pele da cidade

No âmbito da arquitetura, a pele da cidade está nas fachadas que trazem em si a expressão do simbólico e, ao mesmo tempo, do espírito da cidade. O tipo de revestimento que recebem revela uma narrativa própria. Elementos geométricos e formas abstratas conformam uma simbologia estética carregada de uma narrativa ética, a exemplo da pintura do corpo indígena. 

A obra de Athos Bulcão está inserida no contexto do modernismo brasileiro, marcado por uma retomada estética da azulejaria. A tradição que herdamos de Portugal renasce com a vontade de um novo projeto de nação. O modernismo almeja e acredita na “obra de arte total”, na interconexão de todas as artes: pintura, arquitetura, artesanato. O artista é o ser capaz de redimensionar todo o espaço urbano, inclusive no sentido do seu uso social. Por meio da arte, revela-se o ideal modernista de um espaço urbano comum e livre de conflitos, apaziguador. Na música, por exemplo, a bossa nova dá o tom que embala esse projeto. 

No Brasil, cidades planejadas como Brasília e, em BH, o bairro da Pampulha, são crias do modernismo. Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Cândido Portinari, João Ceschiatti, Athos Bulcão dentre outros são artistas deste contexto. A obra de Bulcão é por essência uma construção da narrativa modernista, das fachadas e obras que trazem em si o projeto de nação e união de todas as artes. De fato, arquiteto e artista trabalham juntos, os painéis de azulejos estão presentes desde a concepção dos projetos arquitetônicos. No site da
Fundação Athos Bulcão
 há uma galeria de imagens que permite uma análise deste aspecto constitutivo do revestimento nas fachadas de edifícios.

A estética em disputa

Na pós-modernidade, passada a crise da ditadura militar, a pele da cidade é ocupada pelas reivindicações de grupos sociais que estiveram fora do projeto modernista. O espaço urbano das fachadas é onde se inscreve a disputa. O grafitti e o pixo são as duas formas de expressão majoritárias. Movimentos como o punk, o funk, o rap e o hip-hop na música e cultura popular reforçam o confronto da cidade com o que ela sempre excluiu. Aqui, a estética e a rebeldia andam juntas.

Há ainda expressões de artistas que devolvem projetos que reúnem estética e ética como forma de ressignificar o espaço urbano. Mônica Nador, que em 2003 criou o projeto JAMAC – Jardim Miriam Arte e Clube, na periferia de São Paulo, é uma artista que trabalha neste sentido. Em 2011, trouxe para Belo Horizonte o projeto Paredes Pinturas, que, como no JAMAC, transforma fachadas da periferia através de pintura com estêncil. Os padrões para as pinturas são criados pela própria comunidade. A construção que se almeja aqui é o resgate da identidade dentro do espaço urbano.