Sobre a etnomatemática

A etnomatemática pretende ver a matemática em diversos contextos culturais, seja uma sociedade muito longe da nossa, seja um grupo de profissionais (como costureiras ou anestesistas). Como Luane escreve em seu blog, este é um “campo de pesquisa que estuda os saberes e fazeres chamados por nós de tecnológicos e matemáticos como modos de conhecimento vinculados, estritamente, a cada sociedade”. Ubiratan D’Ambrósio foi quem levantou a proposta da etnomatemática, entendendo que essa não é uma disciplina única, que em vários lugares do mundo as pessoas pensam matematicamente de forma distinta. Este campo de estudo “se debruça em identificar os modos como os seres humanos em cada cultura lidaram com seus problemas cotidianos e encontraram estratégias criativas para resolver”.

Não devemos esquecer que nascemos em uma sociedade capitalista – será que nossa noção de acúmulo é a mesma que a de outras sociedades? Muitos valores matemáticos, bem como a matemática em si, são políticos: eles se encontram em diálogo com o próprio sistema econômico que a gente vive.

Algumas experiências

O professor Ubiratan foi ao continente africano dar aulas para estudantes de engenharia. Ele conseguiu perceber que às vezes o fenômeno matemático é o mesmo, mas que a linguagem se difere. Os estudantes conheciam o que estava sendo mostrado, através de formas distintas das que ele apresentava. Outras vezes a situação matemática já se mostrava muito mais rebuscada em temas sobre os quais a matemática ocidental não tinha muito conhecimento desenvolvido ainda. A ideia de uma matemática ocidental, europeia e branca é, então, muito frágil para cogitar-se considerar a possibilidade de ser a única matemática existente. Todo ser humano faz matemática em seu cotidiano, em diversos momentos – seria impossível vivermos sem matemática. Apenas a forma como aprendemos matemática se liga a um currículo que vem de cima e não mostra essas culturas que permeiam a matemática.

A pesquisadora Gloria Gilmmer foi a um salão e ficou observando como as trançadeiras faziam. Foi a primeira autora que Luane estudou em seu mestrado, intitulado “Para além da estética: uma abordagem etnomatemática para a cultura de trançar cabelos nos grupos afro-brasileiros”. Gilmmer entende que na natureza temos padrões, como a casca do abacaxi, a colmeia de abelhas… e a humanidade tende a repetir os padrões que encontra na natureza. Nas culturas afro-diaspóricas, isso é quase uma obsessão, positivamente falando. A trança abacaxi estudada por Gilmmer já era utilizada pela mãe e avó de Luane. No estudo de Gilmmer, ao construir um penteado, pode-se utilizar da rotação, translação e reflexão de imagens. A translação seria a repetição de desenhos com intervalos regulares, como na trança nagô modelo reta. A rotação seria um giro em relação à trança, ao desenho original, como se estivesse mudando de posição, como na trança triangular. Já a reflexão seria uma trança igual à outra, com intervalos regulares, presente em todas as tranças simétricas. As trançadeiras tendem a entender seu conhecimento como algo quase tácito, natural, inserido na cultura. Muitas nem mesmo desenham o que pretendem fazer, sai direto da cabeça.

Luane pensa que a abordagem matemática a partir de outros referenciais, presentes nas culturas de matriz africana, poderia ser uma forma de ensinar que não traumatiza. Fractais são formas geométricas que se repetem com o mesmo padrão de semelhança, sendo encontrados facilmente na natureza. Eles também estão presentes na organização da sociedade: a geometrização está presente em múltiplos campos. As tranças nagô têm padrões fractais. A progressão aritmética é abordada nas escolas a partir de temas como as eleições, os anos, etc. Esta é uma matéria que poderia ser facilmente abordada a partir das tranças. Desenhos Lusonas são desenhos feitos no chão (na areia) muito presentes nas culturas moçambicana e angolana. Com esse desenho seria possível ensinar Teorema de Pitágoras, mínimo divisor comum, entre outros. Os conteúdos poderiam ser ensinados dessa forma, coisa que os etnomatemáticos estão falando há algum tempo.

Presença na escola

As questões abordadas na aula de Luane são bastante invisibilizadas no contexto educacional brasileiro, esses autores são reconhecidos apenas por parte dos estudiosos da educação matemática. A ideia de poder ensinar alunos do ensino fundamental a partir de um conhecimento que vem de seu contexto cultural permitiria a muitos um reconhecimento de si mesmo nas matérias estudadas, facilitando o aprendizado, e, como lembra Luane, para além disso, um dos principais alvos de discriminação no Brasil é o cabelo e a cor; poder mostrar outras questões sobre esse cabelo é positivo, pois trabalharia a autoestima dos alunos.

Pensando na presença de outras matemáticas em livros didáticos, Luane já viu alguns professores procurando sugestões para o MEC, mas é necessário considerar que o currículo das escolas é um lugar político, alvo de disputas consideráveis, abrindo espaço para a inserção da perspectiva étnica como extensão ou projeto, não como uma pauta. Além disso, para cada área de conhecimento o MEC já dispõe de livros específicos, preparatórios para o vestibular e o Enem, deixando pouco espaço para se pensar e ponderar as questões culturais.

A ideia de formar professores de matemática com um campo de atuação mais largo também é alvo de disputas. Recentemente, a UFABC aprovou uma disciplina obrigatória de Afro-etnomatemática. Apenas dessa forma será possível formar professores que saibam que em África existe matemática feita lá. A nova disciplina recebeu, segundo Luane, um chuva de críticas – o que mostra que essa é uma disputa política. Para a professora, o aprendizado a partir do reconhecimento de maiores questões culturais também seria um fator de equidade para a sociedade – um modo de ampliar o conhecimento – e não existe um interesse real que pessoas de áreas de trabalho não exatas se apropriem desses conhecimentos, mantendo a desigualdade nas disputas políticas que já existe hoje.