Em outubro de 2019, durante mais uma edição do curso Transversalidades, a pesquisadora Mara Pereira dos Santos propôs, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, uma discussão sobre a relação entre artes visuais, infâncias e questões étnicos-raciais. O encontro reuniu professores e educadores, além de outros públicos interessados, e ocorreu em meio às comemorações de aniversário de 30 anos da inauguração do primeiro CCBB, no Rio de Janeiro, em 1989.

“Comecei a frequentar o centro cultural em 1992 e a trabalhar em 1999”, conta Mara. “Trabalhei aqui em diferentes momentos, primeiro em uma exposição temporária, depois em uma equipe permanente e, por último, como coordenadora pedagógica da ação educativa. Portanto, o CCBB é um lugar muito importante para a minha formação pessoal e profissional”, acrescenta. 

Doutoranda na área de educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ela atualmente pesquisa a cultura visual e a produção de imaginários, relacionando essas duas categorias às artes visuais. Considerando essa perspectiva, um de seus maiores incômodos, se dá em relação às instituições de arte no Brasil e também em outras regiões do mundo, as quais ela classifica como essencialmente “brancas”, refletindo a própria estruturação da sociedade como um todo, desde a experiência da colonização.  

“É necessário falar disso. No livro ‘O movimento negro educador: Saberes construídos na luta por emancipação’, Nilma Lino Gomes nos ensina que, a partir do momento que vivenciamos determinadas situações e passamos a nomeá-las como racismo, passamos a ter uma outra perspectiva da realidade que nos cerca. Isso acontece porque o racismo não é uma possibilidade; não é algo que está aqui e não está ali. Ele é a estrutura da nossa sociedade e nós, enquanto educadores, temos que assumir uma postura de pleno combate contra essa estrutura”, pondera. 

Racismo e infância

Evidentes situações de discriminação racial, segundo ela, acontecem dentro da sala de aula, a partir do momento em que, por exemplo, um professor ou uma professora trata alunos negros de forma diferenciada. “A gente tem uma série de estudos nesse sentido. No livro ‘Do silêncio do lar ao silêncio escolar: Racismo, preconceito e discriminação na educação infantil’, por exemplo, Eliane dos Santos Cavalleiro reúne uma série de relatos de crianças e professores sendo racistas. São falas que devem nos fazer questionar todo o sistema educacional e a maneira como enxergamos as crianças. Nós, enquanto educadores, deveríamos adotar uma postura antirracista desde o momento que estamos preparando um plano de aula, até o momento em que saímos da sala.”

Para tanto, Mara defende que devemos nos desfazer a ideia de infância cunhada no século XIX, sob a égide do Cristianismo, que considera as crianças como indivíduos vazios que serão preenchidos ao longo do crescimento. Outra categoria refutada por ela é a ideia de estágios de desenvolvimento que, em geral, é associada a ideia de criança. Se não cumpre determinado requisito, ela passa a ser considerada como problemática e atrasada. 

“Na linha de pensamento em que eu me insiro, as crianças são sujeitos que interferem na sociedade, aprendem em casa, mas também aprendem entre si, dentro da relação social intensa que acontece nas escolas”, pontua. “Dessa forma, elas aprendem a ser racistas entre si, e também a partir das relações sociais que elas observam. Uma criança sabe ler as hierarquias que a sociedade nos impõe”, observa.

Grada Kilomba e Yhuri Cruz

Durante o encontro, Mara Pereira dos Santos cita a escritora Grada Kilomba e o artista Yhuri Cruz como importantes vetores por uma abordagem antirracista nas artes visuais. “No texto ‘A Máscara’, Grada, que transita entre o trabalho teórico e artístico, aborda a história enquanto um projeto de extermínio não só dos corpos, mas que também engendra um epistemicídio, ou seja, a morte de modos de pensar e fazer de toda uma sociedade da diáspora. Os corpos de crianças negras carregam essa ancestralidade, essa desterritorialização, que é intensamente reiterada pelas instituições de ensino e também pela sociedade no geral. Essas marcas estão na legislação e estão na maneira como lidamos com a educação no Brasil.”

Com o objetivo de desestabilizar narrativas hegemônicas, o trabalho do artista brasileiro Yhuri Cruz aparece na fala de Mara para exemplificar a maneira como imagens utilizadas nas salas de aula reproduzem valores racistas, como é caso da escrava Anastácia, cuja imagem se popularizou por conta da obra “Castigo de Escravos”, do pintor francês Jacques Etienne Arago (1790-1854). Na obra, “Monumento à voz de Anastácia”, ele atualiza a figura de Anastácia, a colocando como santa. 

“O que esse artista faz é empreender um processo de cura. O resultado é muito poderoso e mostra essa mulher que fala, é liberta, faz o que quer. Yhuri borra com o imaginário, esfacela com ele. Rasga todos os nossos livros didáticos, toda a produção, a iconografia, com esse trabalho. O santinho da Anastácia, que foi distribuído em duas exposições, traz também uma oração a ela, agora uma mulher livre”, conclui.