Há algumas fontes históricas que associam o surgimento da maior festa popular brasileira, o Carnaval, às importantes celebrações de colheitas que marcavam as civilizações pré-industriais, assim como a rituais de adoração aos deuses egípcios Apis, da agricultura, e Ísis, deusa da magia e do amor. Trazendo essas duas figuras como importantes influências para o desenvolvimento do Múltiplo Ancestral de fevereiro de 2020, no CCBB SP, a equipe do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação se inspirou na exposição “Egito Antigo – Do cotidiano à eternidade” para provocar um inusitado encontro entre a cultura egípcia e o mais conhecido festejo do Brasil.

Voltado à criação de adornos de cabeça e maquiagens que traduzissem significados individuais para a folia, o convite trazia tanto uma indagação sobre as origens de uma festa tão tradicional para tantos países, quanto apresentava uma pequena mostra de símbolos e alegorias utilizadas pelxs egípcios, combinada a uma reflexão sobre o uso de símbolos ligados à diferentes culturas e grupos, orientando o processo criativo do público na representação de suas próprias idéias.

Motivados pelas músicas que tomavam conta do mezanino do CCBB SP, muitxs dxs interessadxs já chegavam curiosxs para entender a função do espaço dentro da expografia da mostra de objetos e artefatos egípcios. Preparada pelo educador Pedro Ricardo, a playlist da ação era composta sobretudo por marchinhas de Carnaval, típicas dos anos 1930, e pelo axé music dos anos 1990: “Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil. Em vez de cabelos trançados, veremos turbantes de Tutancâmon”, diz a música “Faraó, divindade do Egito”, de Margareth Menezes, marcando a influência da fascinante civilização egípcia na cultura brasileira.

Cultura não é fantasia!

Após a chegada dos participantes, em sua maioria crianças com suas famílias e jovens com idade até 20 anos, conversamos sobre aspectos históricos da festa e memórias individuais relacionadas ao Carnaval, assim como sobre as expectativas em relação à programação de 2020. Falamos ainda sobre as fantasias produzidas em anos anteriores e também sobre as motivações para a escolha das fantasias mencionadas, dentre as quais prevaleciam sereias, unicórnios e super heróis. Bastante ligadas ao universo fantástico, a maioria das produções citadas fazia referência a personagens de animações, contos de fadas e filmes de aventura.

Daí em diante, o público foi convidado a um processo de criação de fantasias com enfoque em acessórios de cabeça, tais quais podemos ver em muitas imagens e objetos da história egípcia. Ao apresentarmos algumas de nossas pesquisas sobre a mostra de arte e história egípcia, buscamos gerar reflexões acerca dos diferentes significados e funções de um ornamento.

Para tanto, trouxemos alusões a peças e representações presentes na exposição, como é o caso do símbolo da cobra uraeus, representação do Olho de Rá. Geralmente anexada às coroas dos faraós, a peça servia para aterrorizar seus inimigos, ao mesmo tempo em que lhes proporcionava uma visão ampliada sobre o mundo. Outro ícone bastante vivo na mostra são as próprias coroas dos faraós, símbolos de poder e distinção social. Produzidos com diferentes finalidades, os objetos eram utilizados em ritos religiosos (atef), quando faziam menção aos deuses e recebiam adornos que remetem a animais, como chifres e plumas, ou ainda em momentos de conflito (kheprech), se assemelhando mais à capacetes. Um último acessório bastante frequente no imaginário sobre a civilização egípcia é o famoso nemes, um tipo específico de turbante presente nas esfinges, como se podia verificar em algumas peças da própria exposição, e também na preciosa máscara mortuária de Tutancâmon, que integra o acervo do Museu Egípcio, em Cairo.

A partir desse momento, o entendimento sobre o que poderia servir como fantasia e como poderíamos alcançar os resultados desejados era mediado pelxs educadorxs do programa, que interagiam com os visitantes do CCBB SP e da mostra “Egito Antigo – Do Cotidiano à Eternidade”, articulando diferentes repertórios, conceitos e técnicas manuais de produção. Parte das discussões se dedicaram também a entender o que poderia – ou não – ser utilizado como referência estética para criação de uma fantasia, trazendo questões como a apropriação de culturas. A esse respeito, lembramos aos participantes do encontro que muitas vezes aquilo que utilizamos como mero enfeite pode ter, originalmente, um significado bastante distinto, correndo-se o risco de desrespeitar religiões, culturas e ancestralidades.

O cuidado no uso de certos estereótipos relacionados a minorias políticas, como a população LGBTQI+, mulheres, negrxs e indígenas, entre outros grupos sociais, também foi trazido à reflexão, considerando as identidades e desigualdades enfrentadas por tais grupos. Pouco a pouco, estabeleceu-se um processo de conscientização do público sobre a importância do cuidado em relação à inferiorização e o desrespeito a tais culturas e segmentos sociais.

Terapia, pesquisa e criatividade

Dentre os materiais que poderiam ser utilizados pelo público, havia glitter, lantejoulas, pérolas, flores e folhas artificiais. A partir de uma estrutura feita com tiara de cabeça, folhas de plástico coloridas, cola quente e arame, os participantes puderam construir adornos de cabeça com diferentes elementos e inspirações. Surgiram, ao longo do processo, muitos símbolos ligados à fauna e à flora, assim como a personalidades marcantes como Frida Kahlo e Carmen Miranda.

A maioria do público participante era formado por famílias e grupos de amigxs, e muitxs delxs participavam pela primeira vez de uma construção como aquela, relatando o prazer e a descoberta em criar e utilizar acessórios e pinturas faciais para expressar aspectos da própria imaginação e identidade. Agradecido pelas dicas e provocações, um dos participantes comentou, ao final da atividade, que pretendia fazer a brincadeira sempre que pudesse. Em sua visão, além de terapêutica, a ação exigia pesquisa e criatividade – atitudes que, segundo ele, são essenciais à vida.

Em uma experiência essencialmente lúdica, coletiva e colaborativa, inspiradxs pela experimentação, pelo repertório de arte e estética egípcias e instigadxs pela curiosidade, xs participantes puderam criar, juntxs, em uma tarde de sexta-feira, outros modos de viver e de conhecer os próprios sonhos.