Para a edição do Múltiplo Ancestral de dezembro de 2019, o CCBB DF recebeu pela primeira vez a palhaça Matusquella, personagem criada já há alguns anos pela atriz Manuela Castelo Branco. “Matusquela”, àqueles que por ventura não saibam, é uma palavra que em sua definição mais literal remete a “quem não é bom da cabeça”.

Receber Matusquella representa, portanto, mais do que um simples contato com o mágico mundo da palhaçaria. Sua presença nos confronta também com a loucura daqueles e daquelas que falam o que ninguém ou poucos têm coragem de dizer, daqueles que expõem seus medos e inseguranças, partilhando a condição do ridículo em nossa humanidade.

Quando essa condição é ocupada por um corpo feminino, ainda minoritário entre os palhaços, a questão tende a ficar ainda um pouco mais complexa. Sem desconsiderar esses lugares de confronto, memória ancestral e resistência, construímos com Matusquella um elo em que a palhaçaria, a mágica e o encanto foram construídos em coletividade.

Palhaçaria, infância e imaginação

Pensadora da área de contação de histórias, Gilka Girardello traz uma reflexão interessante em artigo intitulado “Imaginação: arte e ciência na infância”, a partir do qual provoca deslocamentos em relação ao que geralmente se entende por imaginação. A pesquisadora nos lembra que a imaginação, na sociedade contemporânea, está intimamente relacionada ao mundo infantil: ouvimos muitas vezes “crianças são imaginativas”, nos familiarizamos com a expressão “mundo infantil” ou ainda associamos, frequentemente, a situação de “devaneio” ao comportamento de crianças. O que muitas vezes não consideramos é que esses devaneios e encantamentos são necessários para a construção do mundo simbólico dentro de nossas cabeças, assim como os prejuízos de, depois de adultos, deixarmos de lado, ou em segundo plano, o tempo dedicado a devaneios e divagações.

E de que modo os conceitos de imaginação, palhaçaria e infância podem se mostrar convergentes em relação a essa discussão? A imaginação, como apresenta Gilka Girardello, não é um resultado de estímulos visuais, sonoros ou táteis, sim, o resultado de construções. Ou seja: a imaginação precisa ser construída, tijolinho por tijolinho. A palhaçaria, como performance artística, leva tanto ao público adulto como ao infantil uma série de esses estranhamentos em relação a percepções de mundo. Por meio do humor e do inusitado, sensibilizando nosso olhar a determinados aspectos do cotidiano que, vistos pela ótica da palhaçaria, passam a nos parecer engraçados.

Não raro, vemos na palhaçaria recursos de ilusionismo, de modo que o cômico se concentra tanto na possibilidade de rir de si e do outro quanto na atenção a fenômenos como desaparecimentos, equilíbrios e contorções. Entre os palhaços e palhaças, exercita-se ainda a imaginação. O que acontece dentro dessa cartola? Será que ela pode ler pensamentos?

A partilha da alegria

Mestre em Artes Cênicas pela UnB, criadora do Festival Palhaças do Mundo e ainda coordenadora do CiRcA Brasilina, primeiro picadeiro feminino do Brasil, Manuela Castelo Branco não por acaso trouxe uma presença muito instigante ao CCBB DF. Logo na chegada, a palhaça Matusquella já arranca risos e atenções, cativa, ri e brinca, criando intimidade com o público até mesmo a partir de olhares.

À medida em que caminha a apresentação, o clima de familiaridade entre ela e o público progressivamente se afina e se intensifica. O ridículo, como já dito, nos aproxima. E nos aproxima mais ainda o riso, a partilha da alegria. No decorrer do encontro, Matusquella usou e abusou de recursos da mágica, do ilusionismo e de canções cacofônicas, constantemente provocando e convocando adultos e crianças a participarem de suas peripécias – participações, inclusive, bastante disputadas, uma vez que muitas crianças já conheciam a personagem e a esperavam ansiosamente.

Alguns pensadores e pensadoras dizem que a infância é o constante estado de pergunta, descoberta e encantamento com o presente. O ilusionismo, a brincadeira e a partilha do riso se confirmam, então, como ferramentas que nos levam a esse lugar, uma vez que também, nós, adultos, ficamos encantados, curiosos e imaginativos diante dos saberes da palhaçaria.