A cidade é como uma casa para um corpo que vai se descobrindo no tempo e no espaço. É ao passo que nos relacionamos com o mundo, afinal, que construímos nossas alteridades e identidades. Como dizia o filósofo alemão Martin Heidegger, o ser humano é “à medida que habita”. Quantas cores, idades, gostos, trajetos, imaginários e exclusões habitariam, então, uma cidade? Pois esse foi o tema explorado pelas educadoras e artistas Livia Arnaut e Cibele Carvalho, convidadas ao CCBB BH para conduzir uma edição especial do Múltiplo Ancestral, celebrando o Dia das Crianças dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.

Muitas vezes, ao longo da infância, brincamos de construir pequenas cidadezinhas com peças de brinquedos diversos, colecionando ali os cantos mais conhecidos e interessantes das cidades onde vivemos. No decorrer desse processo, sentimentos e experiências se somam à descoberta e à representação da cidade: a praça como o lugar do lazer e do encanto; o caminho para a escola e a escola em si como lugares de aventura. A estrada, como o lugar da expectativa; e o cemitério, como espaço que dá vazão ao mistério e ao medo.

Nas cidades em que eu construía, entretanto, sempre existiram também alguns espaços que eu acreditava não serem para mim. Serviços básicos, por exemplo, ficavam distantes da minha casa e demandavam trajetos longos, feitos a pé. Grande parte dos pontos turísticos ou centros de cultura se situavam distante da periferia onde eu morava e não eram facilmente acessados nem mesmo se usássemos ônibus. Espaços com arquiteturas pouco acolhedoras não convidaram meus pais e tão pouco suas gerações anteriores; trajetos inseguros e insalubres, sem infraestrutura e total ausência do poder público prejudicaram a minha experiência na cidade, assim como as de outras crianças, em diferentes períodos da nossa história.

Apesar de esse não parecer um tema fácil para lidar com as infâncias, Livia Arnaut e Cibele Carvalho criaram em 2018 a revista digital Manga de Vento, que comunica e co-desenvolve discussões sobre variados conteúdos da atualidade para e com as crianças, que muitas vezes entram em contato com informações e temas importantes no decorrer do cotidiano e dos noticiários, mas nem sempre encontram adultos dispostos a dialogar.

Direito à cidade

Na edição 21 da revista Manga de Vento, o assunto foi o Direito à Cidade. Proposto em 1968 pelo sociólogo francês Henri Lefebvre, esse conceito define o acesso à qualidade e aos benefícios da vida urbana como essenciais a todos, convoca a ação cidadã coletiva e inspira o direito de cada um de nós a transformar a cidade, para que assim possamos transformar nossas próprias realidades. Posta essa discussão, Lívia e Cibele compartilharam a revista com o público da atividade e propuseram uma instalação temporária e participativa na Praça da Liberdade, espaço que remete à infância da cidade de Belo Horizonte. No corredor de escorregadores ondulados de pedras portuguesas situado entre o CCBB BH e o Edifício Niemeyer, colocamos algumas mesas e banquinhos coloridos. Nesse ambiente, variadas experiências urbanas trazidas pelos participantes alimentavam mapas e desenhos para uma nova cartografia cultural da cidade, a exemplo das brincadeiras que por vezes cultivamos na infância.

Além da revista impressa sobre o Direito à Cidade, fotos de várias épocas da Praça da Liberdade integravam o ambiente temporariamente criado, convidando participantes e transeuntes a investigarem o surgimento dos prédios e jardins da praça, assim como suas as transformações em sua ocupação ao longo dos anos. Especialmente às crianças foi disponibilizado um grande mapa da cidade de Belo Horizonte com carimbos coloridos e divertidos, que lhes permitia sinalizar as regiões onde moravam, assim como locais adequados para soltar pipa e brincar, espaços arborizados, ambientes em que se sentiam com medo, lugares que tinham curiosidade em conhecer e pontos muito poluídos, entre outras áreas. Muitas e muitos turistas também passavam por lá e tiveram a oportunidade de conhecer a cidade a partir dos olhares críticos e descentralizados dos pequenos.

Central de perguntas

Em outra mesa, funcionava uma pequena estação receptora de perguntas que as crianças gostariam de fazer ao prefeito da cidade, usando o formato de áudio. A grande demanda era evidente: que as ruas, praças e parques fossem equipados com mais recursos para a brincadeira e a livre fruição criativa.

No mesmo tom de reivindicação, cartas direcionadas aos moradores do Edifício Niemeyer, marco arquitetônico da cidade por suas curvas sinuosas, tensionaram as relações entre as dimensões pública e privada do patrimônio. Diante da impossibilidade de acessar o icônico prédio, as educadoras disponibilizaram aos participantes uma planta baixa dessa edificação, deixando que a imaginação do público o ocupasse com paredes, atribuísse funções aos espaços, e resolvesse o possível conflito entre os ângulos retos de móveis e eletrodomésticos e as orgânicas linhas externas projetadas pelo famoso arquiteto brasileiro. A esse respeito, surgiram ideias e desejos bastante interessantes sobre o que é individual ou coletivo, a exemplo de uma proposta que envolvia a construção de uma sala de cinema com muitos lugares dentro de um único apartamento.

A tarde tranquila de sol chamando chuva trouxe cerca de 60 pessoas à nossa instalação. Diferentes corpos, cores, origens e alturas circularam pelas possibilidades de intervenção abertas pelas artistas, criando um inventário participativo de significados, memórias e descentralidades para aquele território específico. No decorrer desse dia, inspirados pela fala das crianças, juntos pudemos acreditar que a cidade é de todos, que o lazer e o bem estar nunca deverão ser excluídos da experiência coletiva e que precisamos, por fim, visibilizar cada vez mais as lutas por moradia, mobilidade, cidadania e por que não, pela própria brincadeira.