A primeira edição do Múltiplo Ancestral de 2020 no CCBB BH contou com a presença do projeto Samba de Terreiro, criado em 2002 pelo músico, dançarino, educador e agitador cultural Camilo Gan. Segundo suas palavras, o projeto traz canções e histórias com o compromisso de levar ao conhecimento da sociedade os elementos essenciais que originaram o samba: reza do corpo, ritmos, tambores, improvisação vocal e interatividade. Reverenciando a ludicidade do samba, proveniente dos diversos terreiros onde sua energia se manifesta, o Samba de Terreiro tem como principais objetivos a valorização da mulher e o empoderamento da força feminina, intenção que se concretiza com a presença marcante de algumas dançarinas que integram o grupo, chamadas de Sambadeiras.

A base instrumental do Samba de Terreiro é estruturada nos tambores, além de estarem presentes o cavaquinho e o trompete. Grande parte do repertório é composta de cantigas de domínio público, representadas em linguagens musicais fundamentadas no samba dos encantados, samba de roda, samba de velho, samba de senzala, samba de parelha, samba duro, samba caipira e também composições próprias. O convite é para que façamos uma viagem, diz Camilo: “uma viagem de volta às origens do samba”.

Vai buscar quem mora longe

O samba é uma das frestas pelas quais podemos observar as contradições da construção do que chamamos “identidade brasileira”. A esse respeito, é valioso trazer as palavras do professor e pesquisador carioca Luiz Antonio Simas, para quem o samba é muito mais do que gênero musical ou bailado coreográfico: “(…) o samba é elemento de referência de um amplo complexo cultural que dele sai e a ele retorna, dinamicamente. Nos sambas vivem saberes que circulam; formas de apropriação do mundo; construções de identidades comunitárias dos que tiveram seus laços associativos quebrados pela escravidão; hábitos cotidianos; jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, amar, matar, celebrar os deuses e louvar os ancestrais. Reduzir o samba ao terreno imaginário onde mora a alegria brasileira do carnaval é um reducionismo completo”.

Então é isso: há sempre uma dimensão do samba que extrapola e se esconde em mistérios que estão para além do som que chega aos nossos ouvidos e dos movimentos que nossos corpos tentam, mais ou menos timidamente, ensaiar. A impressão que se tem, a partir da fala de Camilo, é que, para sambar, é preciso toda uma vida.

O músico nos lembra de que existe uma gramática do samba e do tambor, mas ela foi alienada de nós. O tambor, em sua visão, sintetiza um modo de tradução entre os domínios imateriais e materiais de uma cultura diaspórica. O que estaríamos prestes a experimentar juntos, então, não era só uma uma introdução à história do samba ou uma vivência coletiva desse ritmo. Pelo contrário: tratava-se de uma experiência que comprova o samba como muito mais do que isso. Conforme destaca o pesquisador Luiz Antônio Simas, “o tambor vai buscar quem mora longe, e isto é muito sério”.

O som ainda ressoa

Camilo começa sua palestra cantada trazendo a origem da palavra “samba”, que o músico associa ao Kimbundu. Língua originária da região de Luanda, em África, o Kimbundu traz o termo “Samba” como referência à Samba Kalunga, divindade das grandes águas, isto é, dos mares e oceanos. Samba Kalunga é a divindade angola equivalente a Iemanjá na nação Keto. “Eminente, grande, incomensurável, infinito, massa líquida que circunda os continentes, uma das três deusas que fiavam e cortavam o fio da vida”, como consta no dicionário Kimbundu-Português, de Assis Junior.

Segundo a tradição daquele lugar, quando Samba Kalunga toca a areia na beira da praia, o mar não está nem bravo nem calmo demais: as águas abraçam a areia, ambos se recebem. Kalunga chega após o chamado dos atabaques – os ungoma –, e sua chegada é sinal de gratidão a esse chamamento. Quem os toca é Kiluminu, entidade que faz o intermédio entre as divindades e os homens – fruto de sua criação. Kiluminu é um ribombo, um ruído subterrâneo, eco forte e estrondoso, comparado a um trovão – e esse estrondo ainda hoje ressoa nos tambores. “A partir desse dia”, conclui Camilo, “todo ser humano que toca tambor ouve uma divindade”.

Samba Kalunga é uma divindade feminina, e por isso as Sambadeiras contam a mesma história, sem dizer nenhuma palavra. Quando começam a sambar, repetem os movimentos feitos por Kalunga: movimentos leves, como se estivessem deixando aqueles rastros que ficam na borda do mar quando este se recolhe no fim de uma onda. Com seus braços aventurosos, fazem movimentos que ressoam nos tambores. Camilo diz que os tambores lêem uma partitura que está no corpo – no caso, corpos que foram trazidos de África. “Os negros escravizados, nos navios só trouxeram o corpo, o axé e a força. O corpo é uma partitura na qual a figura rítmica é substituída pelo corpo. Tudo nasceu no corpo”.

Dessa forma, o ritmo e o ritual se afirmam como formas de amenizar a experiência aniquiladora que corresponde precisamente ao arrancamento dos negros das comunidades que os definiam. Trata-se, portanto, de uma possibilidade de reconstituir experiências que o povo negro teve que abandonar. O que os tambores fazem, então, é uma leitura desses corpos: uma tradução.

A partir dos corpos das Sambadeiras, podemos entender que corpo e tambor são traduções: são pontes que ligam as divindades e o ser humano. Os corpos não executam só uma coreografia, nem os tambores, uma partitura. Camilo nos lembra de que esses tambores foram, ao longo da história, agregando outras sonoridades e falas, novamente relacionadas à experiência da diáspora. Pouco a pouco, foram reunindo também referências indígenas e ampliando sua gramática, como se pode perceber, por exemplo, no samba de caboclo e na incorporação de instrumentos caipiras.

Os tambores não mentem

É importante destacar o contexto em que recebemos o Samba de Terreiro para esse encontro no CCBB BH. Era um sábado da última semana de janeiro de 2020, encerrando um período marcado por violentas chuvas. Diante desse contexto, a preocupação com o público era patente. Onde realizar a ação? As pessoas viriam? Sairiam de suas casas durante aquele apocalipse anunciado?

A primeira solução encontrada foi usar um dos espaços internos do edifício. Mas isso afastaria o público? Tiraria do samba sua potência? As respostas, no entanto, vieram somente com a presença dos nossos convidados. A banda coloriu o foyeur do teatro, o público foi aparecendo e respondendo aos tambores. Quem estava sentado, pouco a pouco se levantou e alguns até mesmo entraram na roda.

Comparados até mesmo a uma chuva de trovoadas, os tambores que chamam Samba Kalunga sempre vão causar efeitos. É essa, aliás, a sua função: tornar manifestas coisas que estavam à espera de um chamado.

Penso, então, sobre o quanto perdemos quando não aprendemos a tocar tambores, desde pequenos, na nossa alfabetização. “Há uma sofisticada pedagogia do tambor”, afirma, categoricamente, o pesquisador Luiz Antonio Simas. Com Camilo, por outro lado, aprendemos que essa sofisticação é vasta e complexa a ponto de caber numa roda de samba. Cerca de cem pessoas estiveram, naquela tarde de sábado, com Camilo e as Sambadeiras. O sol apareceu do começo ao fim da ação, trazendo tons de azul ao céu antes tempestuoso. Se o samba é uma entidade, o fato de que sua força se mostre de forma quase mística não deveria nos surpreender.