Escrito pelo músico Raphael Moreira e apresentado em diferentes contextos há quase uma década, o espetáculo “Samba Menino” ocupou o CCBB RJ em dezembro de 2019 com uma “cantação” de histórias que visa resgatar as memórias daqueles que encontraram – e encontram – no samba um lugar de resistência, permanência e alegria.

Voltada ao público infantil, a cantação desbrava os momentos e personagens marcantes na história do samba, associada sobretudo às últimas décadas do século XIX e às primeiras do século XX. Nas vozes do próprio Raphael e da cantora Lu Fogaça, que impressionou o público presente, a narrativa passa por diferentes momentos da longa diáspora africana, destacando figuras como a cozinheira, costureira e mãe de santo baiana Tia Ciata, considerada por muitos como a matriarca do samba. Ao longo da montagem, também se fazem presentes o primeiro samba – ou maxixe? – composto em território brasileiro, intitulado “Pelo Telefone”, assim como elementos que se referem ao surgimento do Carnaval carioca, entre outras passagens dessa densa história.

Escolhido pelos artistas para encerrar a apresentação, o verso “O samba fica mais bonito assim!” ficou certamente marcado na memória de quem acompanhou a atividade. Cantadas repetidamente pelo elenco, em coro com as palmas e vozes do público presente, tais palavras ecoaram pelo térreo do CCBB RJ. Embaladas pelo clima festivo do espetáculo, as crianças foram então convidadas a colorir o espaço com serpentina, fazendo lembrar uma brincadeira comum nas ruas do carnaval carioca desde as suas origens.

O Cais do Valongo e suas memórias

Não podemos deixar de pontuar a importância simbólica de ter essa história cantada no CCBB RJ e na região portuária do Rio de Janeiro, um lugar tão significativo para a ancestralidade negra. É nessa região, afinal, que testemunhamos o peso de uma história de dor, materializada no Cais do Valongo, onde se ancorava navios lotados de pessoas sequestradas de suas terras na África. Foi nesse mesmo cais, aliás, que chegou ao Rio de Janeiro o protagonista da história de “Samba Menino”: o menino Semba.

Por conta da proximidade territorial entre o Cais do Valongo e o CCBB RJ, percebemos que a narrativa apresentada pelo espetáculo se cruza com a narrativa patrimonial e territorial do centro do Rio, região que hoje abriga o prédio do CCBB RJ, a rua Primeiro de Março e a Casa França Brasil, entre outros importantes marcos da cidade. Não por acaso, hoje em dia o Cais do Valongo é um lugar de lembrança, memória e resistência – e esse também é o lugar ocupado pelo espetáculo “Samba Menino”.

Agregados pelo samba

O samba aproxima todo o Rio de Janeiro, deixa tudo mais alegre, e é surpreendente perceber a reação do público diante das narrativas do povo afro-brasileiro. Ao ecoar pela rotunda, a música convidou tanto os funcionários do prédio quanto a população em situação de rua que frequenta a região, assim como uma família negra que passava por ali e, mesmo timidamente, se sentiu à vontade para entrar no edifício, sentar-se e desfrutar da apresentação. O samba agrega.

Falar de samba é falar do que é vivo na memória da classe trabalhadora e preta. O samba é o que toca no rádio da periferia e da favela, é a poesia que inspira e motiva inúmeros trabalhadores que diariamente se deslocam ao centro, para trabalhar. O samba que invadiu o CCBB RJ informa que a origem afro-brasileira não precisa nem deve ser negada.

Ao contrário do que se poderia pensar, o samba não é marginal: ele é cultural. E a presença do espetáculo “Samba Menino” no CCBB RJ, para além de legitimar essa manifestação cultural genuinamente brasileira, demonstrou a capacidade de unir a multiplicidade de pessoas que circulam pelo centro da cidade do Rio de Janeiro.