Aos olhos de muitos e muitas, as contações de histórias parecem revestidas de uma aura nostálgica e leve. Há várias maneiras de narrar e, com intenção de compartilhar uma delas, o Programa CCBB Educativo – Arte & Educação convidou a atriz Eliana Carneiro para um encontro no Múltiplo Ancestral. Com sua personagem travestida de cores, Lia de ManaKá, a artista envolve de maneira afetuosa quem a escuta e a assiste.

Para o encontro no CCBB DF, Eliana trouxe o espetáculo “Lia de ManaKá e suas histórias”, voltado para “crianças de todas as idades” e realizado pela Cia. Os Buriti. Embaladas por composições da musicista brasileira Chiquinha Gonzaga, as palavras da personagem central da peça nos convidam a pensar em outros ritmos, abrindo espaço para fantasias e histórias sobre as origens dos mundos, passando por culturas populares, cosmologias indígenas e contos de fadas, sintetizados no que Lia chama de “histórias do outro lado de lá”.

Em meio às contações, nos foi apresentado o palhaço QuiriQuiri, habitante das terras “dali e daqui” que interage com o público e com a personagem principal, nos convidando a rever a origem de vários mundos de maneira divertida e flexível. O mundo desorganizado, colorido e barulhento criado para que Lia de ManaKá brinque e nos convide à brincadeira mostra que a infância é algo que vai além dos dois ou doze anos de idade: trata-se de uma ode à despreocupação, a possibilidade de se desconectar do cotidiano adulto e sisudo, a uma massagem nas costas ou então a um espreguiçar-se no final de um dia ocioso de domingo. Tudo perpassado por uma multiplicidade de interações com as crianças presentes, valorizando a forma como as pequenas e pequenos se relacionam com o todo ao redor.

“Lia de ManaKá e suas histórias” é um espetáculo-poesia que homenageia a maneira popular de se falar e contar as coisas e os causos, movido a sons e cores que também contam a história do Brasil e dos povos daqui, ressaltando a perspectiva infantil que se lê e se localiza como parte de um espaço compartilhado com outros seres – humanos ou não. No decorrer do espetáculo, Eliana Carneiro se apropriou do protagonismo, alcance e visibilidade oferecidos pelo Múltiplo Ancestral para nos conduzir ao trânsito entre situações reais e ficcionais.

Infâncias, fábulas e ancestralidades

Outrora eu já havia me contagiado e sido afetada pelo trabalho da Cia Os Buriti, com o espetáculo “Kalo, os filhos do vento”, apresentado dentro de um picadeiro montado no CCBB DF. Na época, como espectadora, e também agora, como colaboradora da atividade, me deixei levar pela beleza da trocação de histórias. Eliana e sua trupe sabem muito bem como contar as fábulas que criam e também as que nos são contadas ao pé do ouvido, quando ainda somos crianças, mas já iniciamos a criação de nossas memórias afetivas.

Se, desde 1995, Eliana se encarrega de partilhar suas contações, quantas não foram as crianças que conheceram narrativas a partir de suas personagens e criações? As pequenas e pequenos que participaram dessa edição do Múltiplo Ancestral foram também um pouco de Lia de ManaKá e contaram, de seus modos corajosos, as histórias do outro lado de lá. Tiveram também a liberdade de gritar bem alto para ajudar na busca do desordeiro palhaço QuiriQuiri, que fugiu da cena à certa altura do espetáculo e, mais adiante, puderam organizar o cenário a seu modo. A partir de uma simplicidade paradoxalmente grandiosa, no cenário, em destaque, via-se uma pintura em algodão cru, representando um homem e uma mulher. Essa imagem nos lembrou dos mitos em que o Sol e a Lua nasciam e se distanciavam no céu, evocando uma atmosfera encantadora e estranhamente reconhecível.

Em uma apresentação curta, Lia de ManaKá adentrou na memória familiar e afetiva de cada uma e cada um de nós. Quando ela nos fala, durante uma das narrativas do espetáculo, sobre a grande serpente de sete cores que gera o mundo e diz que essa história lhe foi passada por uma velha índia, ela valoriza cosmologias que resistem a históricos apagamentos, quase como um convite a pensar em nossas próprias trajetórias e ancestralidades, muitas vezes afogadas pelo atarefado cotidiano.